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Aquiles Lins

Aquiles Lins é colunista do Brasil 247, comentarista da TV 247 e diretor de projetos especiais do grupo.

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Questões espirituais não deveriam governar o mundo

Religião deve ser vivência íntima, não instrumento de guerra, espoliação ou poder. A política precisa de razão, justiça e direitos, escreve Aquiles Lins

Genocídio na Faixa de Gaza (Foto: Reuters)

Por milênios, a humanidade estruturou sociedades, forjou impérios e travou guerras movida por crenças espirituais. As religiões serviram de bússola moral, de sustentação cultural e emocional para indivíduos e comunidades. No entanto, a história também mostra que, quando esses sistemas de fé deixam de ser uma dimensão íntima e passam a reger políticas públicas, decisões geopolíticas e comandos militares, o resultado costuma ser devastador.

A aliança entre religião e poder político tem sido responsável por algumas das maiores tragédias da humanidade. Cruzadas, inquisições, terrorismo, perseguições étnicas, guerras santas: a lista é longa. O genocídio em Gaza, onde civis palestinos são massacrados sob uma narrativa de direito divino à terra, é mais uma demonstração de como argumentos religiosos ainda legitimam, no século XXI, a eliminação sistemática de um povo e a negação de seus direitos fundamentais. O conflito, travado também no campo simbólico da fé, mostra como a religião pode ser instrumentalizada para justificar o inaceitável.

No plano cotidiano, o avanço do chamado capitalismo religioso tem promovido a alienação e a espoliação de fiéis, especialmente em países da América Latina e da África. Igrejas transformadas em empresas, com estruturas de marketing agressivas e presença em esferas de poder, exploram a fé como mercadoria. O compositor paraibano Totonho captou com precisão esse fenômeno na música Tem mais Igreja do que Supermercado, em que canta: “E a graninha do pacote de feijão / É a mesma grana pra obter a salvação”. A letra denuncia o uso perverso da espiritualidade como mecanismo de controle social e econômico. Quando a fé é negociada, vira farsa. Quando a salvação custa o valor de um alimento básico, a religião se torna parte da engrenagem de miséria.

Se existe ou não uma entidade superior, é uma pergunta que diz respeito ao foro íntimo de cada pessoa. Não deveria ser, portanto, um motor da geopolítica, das leis ou das políticas públicas. Estados que mantêm essa separação entre o sagrado e o institucional têm mais condições de garantir direitos, pluralidade e desenvolvimento. A China, por exemplo, embora objeto de críticas por seu suposto autoritarismo, construiu uma das economias mais pujantes do planeta com base em uma estrutura estatal laica e controlada pelo Partido Comunista. O país não se orienta por mandamentos espirituais, mas por diretrizes estratégicas — que, acertadas ou não, são decididas no campo da política, e não da fé.

É verdade que desassociar religião e Estado não significa eliminar a espiritualidade das sociedades — e nem deveria. A fé é um componente importante da experiência humana, oferece conforto, sentido e coesão. Mas ela deve permanecer no campo pessoal. Quando assume a função de governar povos e impor normas coletivas, torna-se perigosa. Transforma-se em dogma, exclui quem pensa diferente e inibe o debate racional.

O mundo de hoje, tão complexo, interconectado e ameaçado por crises climáticas, desigualdade social e conflitos armados, precisa de soluções práticas, científicas, humanas — não de mandamentos escritos em livros milenares ou ditados por líderes autoproclamados profetas. A política deve ser regida por princípios como justiça, equidade, liberdade, não por interpretações particulares do divino.

Separar religião e política não é negar a importância da fé, mas protegê-la — e proteger também a sociedade do autoritarismo travestido de espiritualidade. Para prosperar, o mundo precisa ser guiado por valores universais e decisões racionais, não por dogmas religiosos. A história mostra o preço da confusão entre altar e palácio. O futuro exige, com urgência, outra direção.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.