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Mariana Yante

Pesquisadora do Instituto de Estudos da Ásia/UFPE e Visiting Researcher na Shanghai JiaoTong University.

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Recordar é viver, mas celebrar é esquecer: o direito à memória pelo golpe de 1964

A iminência de comemorações pelo aniversário do golpe militar no Brasil, no próximo 31 de março, incitadas por recomendações de Jair Bolsonaro ao Ministério da Defesa, revelou que a relação entre nosso país e a ditadura está longe de ser passado, sob a ameaça de ser subvertida, ressignificada e, eventualmente, revivida

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A iminência de comemorações pelo aniversário do golpe militar no Brasil, no próximo 31 de março, incitadas por recomendações de Jair Bolsonaro ao Ministério da Defesa, revelou que a relação entre nosso país e a ditadura está longe de ser passado, sob a ameaça de ser subvertida, ressignificada e, eventualmente, revivida.

Apesar do comunicado da ONU Direitos Humanos, assinado pelo Relator Especial sobre a Promoção da Verdade, Justiça, Reparação e Garantias de Não-repetição do órgão, para que o presidente reconsiderasse sua decisão, e da decisão da juíza da 6ª Vara Federal do Distrito Federal, determinando que a ordem não fosse cumprida pela União porque a celebração dependeria de lei aprovada pelo Congresso Nacional, a mera ideia de que isso se tornou tangível demonstra as fragilidades do país quanto ao direito à memória e à não-repetição das violações perpetradas.

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No Chile, a Comissão da Verdade e Reconciliação (Comisión Nacional de la Verdad y Reconciliación) foi estabelecida em abril de 1990, e teve seu trabalho intenso de nove meses concluído por um relatório (Informe Rettig) que, além de reconhecer 2.279 vítimas de violência política, deu origem, em 1992, à Comissão Nacional de Reparação e Reconciliação (Corporación Nacional de Reparación y Reconciliación), que encerrou seus trabalhos em 1996. Apesar disso, a população chilena enfrentou durante a mesma década a impunidade do general e, mais recentemente, teve disputas de narrativa similares às que vêm ocorrendo no Brasil. Um exemplo foi a tentativa de seu Conselho Nacional de Educação, em janeiro de 2012 (primeiro governo Sebastián Piñera), de modificar os livros escolares, que foram orientados a utilizar a terminologia "regime" e não "ditadura" militar, abandonada no mesmo mês após intensos debates, embora ambas coexistam no sistema educacional chileno atualmente.

Por certo, o reconhecimento geral das violências cometidas pelo General Augusto Pinochet entre 1973 e 1990 levou ao processamento de denúncias contra 1372 agentes públicos até 2017, e à Corte Suprema chilena a decidir, desde 1998, que sua Lei da Anistia (criada no regime ditatorial, em 1978) não poderia ser aplicada em violações aos direitos humanos. Além disso, a pressão popular foi determinante para que o governo Michele Bachelet, em 2014, anulasse tal instrumento (que já não era aplicado), que impedia a responsabilização pelas violações ocorridas entre 1973 e 1978, como ato simbólico de repúdio à ditadura.

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Foi provavelmente o valor coletivo ao direito à memória que transformou as 48 horas da visita da delegação de Jair Bolsonaro ao Chile numa sucessão de incidentes, que abrangeram desde a entrega de uma carta por parte de um grupo de parlamentares da Frente Ampla ao Palácio do Governo chileno, solicitando que o Presidente Sebastián Piñera o declarasse como persona non grata, até manifestações nas ruas que levaram à intervenção policial. Bolsonaro tem diversos episódios de apoio a Pinochet, como o frustrado telegrama que pretendia ter enviado pelo Itamaraty a seu neto quando da morte do general, cumprimentando-o pela grande contribuição ao "elevado índice de desenvolvimento humano desfrutado pelos irmãos chilenos", e a entrevista na qual afirmou que Pinochet fez o que tinha que ser feito para retomar o país.

No Brasil, a Comissão Nacional da Verdade- CNV foi estabelecida apenas pela Lei n. 12.528/2011, e durou dois anos e sete meses. Apesar das investigações e constatações importantes, e de haver elaborado recomendações, os impactos do trabalho da CNV, frente à ausência de medidas para implementá-las e à impunidade dos responsáveis, parece estar fadado ao plano abstrato. Ao contrário do que ocorreu com países como o Chile e a Argentina, que lograram associar a transição democrática às punições pelo regime ditatorial que a antecedeu, o Brasil, até hoje, optou por manter o período à deriva do presente, sob o fetiche de que, para o recomeço, melhor o perdão.

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Assim é que, a despeito de a Constituição Federal não admitir a anistia para crimes de tortura (artigo 5º, XLIII), a Lei da Anistia Política (Lei n. 6.693/1979) não apenas permanece vigente para perdoar "a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais". Ela foi ampliada, em 2002, para abranger todos o período compreendido entre 18 de setembro de 1946 e 05 de outubro de 1988.

O fato de que a lei menciona também prisioneiros(as) políticos(as) e as punições com fundamento nos Atos Institucionais do período faz com que suas defensoras e defensores argumentem que a legislação é conciliadora e permite o perdão e o recomeço, de ambos os lados. Mas não por acaso esse instrumento foi promulgado em pleno governo Figueiredo. O texto excetua da anistia todos(as) os(as) condenados(as) por terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal – acusações à época muito comuns contra aqueles(as) que buscavam "subverter a ordem". Além disso, previa benefícios aos militares, como o retorno ao serviço, inclusive de suas esposas, vinculado, evidentemente, à aprovação de uma comissão composta pela própria Administração.

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Se, após a retomada dos processos eleitorais e das instituições, a Lei da Anistia também beneficiou civis e eventuais exilados(as) e insurgentes do período ditatorial, é inegável que seu principal objetivo foi o desserviço ao direito à memória e à reparação das vítimas.

A fragilidade em investigar e prevenir a reiteração das lesões aos direitos humanos ocorridas nesse período fez com que o Brasil fosse condenado no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos reiteradamente, como no "Caso Herzog e outros vs. Brasil" (2018) e no "Caso Gomes Lund e outros vs. Brasil" (2010), este relativo à Guerrilha do Araguaia. As duas sentenças determinam a reabertura das investigações pelo Estado brasileiro e a adoção de medidas para apurar a responsabilidade pelos fatos ocorridos e repará-los, reconhecendo o dever do Brasil de promover um a educação em direitos humanos que não permita que tais atrocidades tenham lugar novamente.

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A Lei dos Desaparecidos Políticos (Lei n. 9.140/1995), e sobretudo as alterações da Lei n. 10.536/2002, ambas de autoria do Ministério da Justiça do então presidente Fernando Henrique Cardoso, reconhece como mortas as pessoas desaparecidas que participaram ou foram acusadas de participar em atividades políticas e detidas por agentes públicos entre setembro de 1961 e outubro de 1988. No entanto, tais documentos estabeleceram um prazo de apenas 120 dias para que parentes de até quarto grau fizessem o requerimento perante os órgãos oficiais, inclusive para efeitos de reparação por indenização.

No último 28 de março, o Deputado Edmilson Rodrigues (PSOL/PA) propôs o PL n. 1.835/2019, que visa à vedação no âmbito da Administração Pública Federal, direta e indireta, de celebrações e comemorações ao golpe militar. No Senado, o PL n. 71/2018, de autoria do Senador Ivan Valente (PSOL/SP) e destinado à vedação de que bens públicos federais recebam o nome de responsável por atos atentatórios às liberdades e direitos fundamentais durante a ditadura, encontra-se desde junho de 2018 aguardando relatório da Comissão de Educação, Cultura e Esporte. Em 2007, um Projeto de Lei mais amplo (PL n. 326/2004), do Senador João Alberto (MDB/MA), pretendendo que a proibição se desse para todos os bens públicos, e em relação a quaisquer agentes que exerceram cargos públicos executivos e não eletivos durante aquele período, foi arquivado.

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Em maio de 2018, foi aprovada a criação da Subcomissão Parlamentar Memória, Verdade e Justiça, requerida pela Deputada Luiza Erundina (PSOL/SP), para acompanhar as Recomendações da CNV, devendo atuar perante a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. No Senado, porém, a Subcomissão Permanente da Memória, Verdade e Justiça operou somente entre abril de 2013 e março de 2015, havendo sido substituída pela Subcomissão Permanente de Justiça de Transição, encerrada pelo final da legislatura em 2018.

Diante dos lentos e, muitas vezes, atravancados passos do Estado, o engajamento da sociedade civil mostra que o direito à memória pertence ao coletivo e deve ser por este reivindicado. Assim, iniciativas como a Comissão Camponesa da Verdade-CCV, que reuniu múltiplos indivíduos e entidades até 2014, apurou as violações de direitos no campo entre 1946 e 1988, e trouxe à tona como a violência ocorreu em todos os cantos e contra os diversos povos do país.

Mais recentemente, em maio de 2018, depois de revelado pelo Bureau of Public Affairs do Departamento de Estado dos Estados Unidos um memorando de 1974 que revelava que o governo militar autorizava execuções sumárias, o Instituto Vladimir Herzog peticionou perante o Freedom of Information Act do governo estadunidense para que fossem disponibilizados todos os documentos sobre a ditadura que estivesse sob a posse da Central Intelligence Agency (CIA). Na ocasião, os ainda presidenciáveis Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão questionaram a veracidade das alegações constantes no documento.

Dessa forma, é preciso ressaltar que a luta entre verdade e falácia é a mesma batalha entre memória e esquecimento, e por um futuro que quer aprender, e não ignorar, os erros de um passado tão recente. Um país apenas pode escrever sua história se aceitar, de antemão, abrir mão, ao menos por alguns instantes, do mito do homem cordial para reconhecer que a ditadura civil-militar teve lugar no Brasil e deve ser investigada e reparada, porque o enfrentamento é intrínseco ao social, mas a história não pertence apenas a quem, por um momento, venceu.

Essa reparação, que jamais vai ser integral ou proporcional aos danos causados, deve, no mínimo, reconhecer que os valores democráticos e do Estado de Direito não foram outorgados, mas conquistados à custa de dor e de vítimas. Assim, negar a apuração de fatos e a responsabilização por eles, dentro e fora das instituições, é não permitir que a sociedade como um todo faça a escolha pela democracia e pelo que esta representa substancialmente, hoje e amanhã.

Criamos um tabu em torno da ditadura, e se existe algo positivo nessa deprimente iniciativa de Jair Bolsonaro e de quem o apoia é a oportunidade de trazer a questão à tona novamente. O discurso conciliatório, que se legitima pela retórica da paz e da união, esconde uma posição narrativa e de poder privilegiada daqueles e daquelas que não tiveram suas vozes silenciadas. É a mesma retórica que autoriza que a história ainda tão desconhecida e pouco estudada da ditadura seja esquecida e apagada dos livros, das universidades e demais instituições. É a mesma retórica que leva à possibilidade de que hoje, mais de cinquenta anos depois do golpe, sejam cogitadas celebrações e modificadas terminologias. É o discurso que não apenas ofende as vítimas indiretas e diretas do regime por negar-lhes o direito de haverem existido como sujeitos, mas que perpetua a possibilidade de que novas ofensas sejam perpetradas sob o mito de que anistia não implica esquecimento.

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