Reminiscências do amanhã
Ao Moacyr, ao Edu, ao Morcego
Fui uma menininha da periferia do Rio de Janeiro, morava em Cordovil, perto da Cidade Alta, que hoje está na circunscrição do Complexo de Israel. Àquela época o abandono do Estado já entregava uma comunidade inteira nas mãos do tráfico e do “deus dará”. Os conjuntos habitacionais da Cidade Alta tiveram sua gênese na Favela do Pinto que ficava entre a praia do Leblon e a Lagoa, nos anos de 1950/60. Com a especulação imobiliária, os governantes da época expulsaram os moradores da orla do Rio de Janeiro e jogaram uma legião de pessoas em locais distantes do cartão postal carioca, em blocos de apartamentos construídos para essa limpeza social; os que resistiam à mudança tinham os seus barracos incendiados pela máquina do governo da época. O Estado alocou famílias inteiras nessas novas moradias, mas depois as esqueceu, fazendo com que os poderes paralelos tomassem conta do local. E assim, até hoje, a localidade passa de mão em mão, de fuzil em fuzil do poder paralelo; loteada pelas milícias e pelo tráfico. Caso eu queira rever alguns amigos que ainda resistem por lá, preciso pedir licença aos novos “donos” do lugar.
Todas favelas da cidade do Rio de Janeiro, sem exceção, são consequências da ausência do Estado, e não só, do eterno apartheid que existe no Rio de Janeiro. Quem mora ou morou nas periferias da Cidade Maravilhosa, sabe o ranço que a classe média tem dos territórios periféricos, sabe o peso da divisão Zona Sul e Zona Norte, transfigurado em preconceitos explícitos ou olhares de desdém.
Lembro-me perfeitamente da curiosidade que os meus colegas de transporte escolar tinham quando adentrávamos na Cidade Alta. Quase sempre o local e seus moradores eram alvos de piadas de graça duvidosa, saídas da boca de crianças tão pequenas, mas já tão hostis. O condomínio em que vivíamos encontrava-se no meio desses blocos de apartamentos e os nossos colegas de infância eram, também, as crianças da Cidade Alta. Brincávamos de queimado, pique esconde, pique bandeira, amarelinha e toda sorte de passatempos que podíamos; andávamos de bicicleta, skate e patins, na quadra do condomínio em que morávamos; eram meninos de toda cor, filhos de militares, comerciários, de empregadas domésticas, de bancários, de desempregados, de profissionais liberais, juntos, se divertindo e aproveitando a meninice, enquanto a dura realidade da vida adulta não nos assaltava.
Havia um posto policial situado há poucas quadras do nosso apartamento, e cotidianamente presenciávamos situações de racismo, de violência policial contra os jovens pretos, daquele lugar. Cito duas que carrego como tristes lembranças até hoje. Uma vez estava no ônibus junto à minha mãe, quando a polícia, numa blitz, para o veículo em busca de “algo ou alguém”. Os policiais subiram armados e tiraram do veículo todos os homens pretos que também deveriam estar indo à escola ou ao trabalho. Todos foram obrigados a descer do ônibus para que passassem por vistorias. Quando desceram, os policiais e os homens, minha mãe percebendo o meu olhar curioso e espantado me disse: “Sabe o que é isso? Racismo.” Depois da inspeção pelas mãos do Estado, em que bolsas e corpos eram tocados, os homens voltaram ao ônibus, humilhados. Enquanto nós, eu e minha mãe, não os olhávamos para não os deixar mais constrangidos.
Em outro momento, estávamos na janela do apartamento quando passam na rua, final de tarde, vários jovens amarrados pelo pescoço com uma única corda-para que assim evitassem fugas- escoltados por policiais armados. Se eram culpados ou inocentes, não sabíamos; entretanto, a cena chocante era tal e qual a do meu livro de História do Brasil que ilustrava os dissabores dos negros que aqui foram escravizados. Parecia que a ilustração havia saído da página para nos lembrar que nos oitenta anos do século XX, a chaga da escravidão continuava purulenta e ainda o é, no século XXI.
Você pode estar se perguntando: Mas por que trazer essas reminiscências? Porque a cena que estampa os jornais de todo o Brasil e do mundo, nas últimas horas; da Chacina do Alemão, com as vítimas desse massacre, mortas e enfileiradas, lembrou-me de cada um dos meus amigos; crianças, outrora, cheias de sonhos de um futuro promissor, longe da ausência do Estado e do preconceito pelo qual viveram uma vida inteira. Alguns conseguiram fugir à sina predestinada. Outros, ficaram no meio do caminho, cooptados pelo crime, pela pobreza ou pela religião.
O triste evento que mancha mais uma vez a imagem do país foi patrocinado pelo governador do Rio de Janeiro, Claúdio Castro. No primeiro momento, no calor dos acontecimentos, o chefe de estado apontou o governo federal como o culpado pela lamentável carnificina; mesmo o governador tendo se negado a acolher a PEC da Segurança, o que poderia ter evitado desastrosa operação. Logo depois, o mandatário carioca negou veementemente à ministra Gleisi Hoffman que tivesse responsabilizado o governo; mas passado o susto da repercussão negativa, com o cinismo e a arrogância que lhes são peculiares, o dirigente sai com a pérola de que a “operação foi um sucesso e os policiais mortos foram as únicas vítimas”.
Diante do trágico acontecimento, é imprescindível que as autoridades competentes adotem medidas imediatas para investigar e responsabilizar o governador por sua possível participação ou omissão nesse episódio trágico. A autorização de ações que resultam na morte de civis fere frontalmente os princípios constitucionais da dignidade humana e do direito à vida.
A sociedade carioca e brasileira não pode permanecer em silêncio diante de tamanha barbárie; é dever do Estado garantir justiça, transparência e reparação às famílias das vítimas. Somente com a punição exemplar dos responsáveis e a revisão urgente das políticas de segurança será possível restabelecer a confiança da população nas instituições públicas e reafirmar o valor inegociável da vida humana, para que não vejamos, mais uma vez, o futuro repetir o passado.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

