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Ruy Conde

Jornalista e estrategista em comunicação. CEO da It Comunicação Integrada

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Reputação: de ativo estratégico a refém da cultura do cancelamento

Passos centrais para a gestão de reputação em tempos de cancelamento

Reputação: de ativo estratégico a refém da cultura do cancelamento (Foto: Ilustração/IA)

Durante muito tempo, a reputação foi considerada um ativo intangível importante, mas de difícil mensuração. Esse cenário mudou. Na era digital, reputação é valor real: influencia eleições, derruba governos, define carreiras, afeta a vida de pessoas comuns e, claro, determina também o futuro das empresas.

A cultura do cancelamento ampliou esse impacto. O que antes se restringia a crises pontuais de imagem, hoje se traduz em riscos concretos.Uma denúncia sem provas ou uma narrativa distorcida pode circular em minutos, ganhar tração em redes sociais, ser amplificada pela imprensa e corroer a credibilidade de anos de construção. O dano é imediato, e o processo de recuperação, quando possível, é lento e custoso.

A reputação como ativo mensurável

Nos últimos anos, o mercado passou a mensurar reputação com indicadores objetivos: relatórios de confiança, pesquisas de engajamento, índices de sustentabilidade e até algoritmos capazes de medir sentimento nas redes. A ideia era transformar em números aquilo que antes parecia imponderável.

O trabalho de Charles Fombrun, criador do Reputation Institute, já apontava, desde os anos 1990, para a necessidade de sistematizar a reputação como ativo corporativo de valor mensurável. Em sua obra Reputation: Realizing Value from the Corporate Image (1996), ele demonstrou que credibilidade não é apenas percepção subjetiva, mas variável diretamente conectada ao desempenho financeiro.

A partir dessa visão nasceram metodologias como o RepTrak, que passaram a avaliar a reputação em múltiplas dimensões — qualidade dos produtos, inovação, ambiente de trabalho, governança, cidadania e desempenho financeiro. Essa estrutura reforçou a noção de que reputação é multidimensional e deve ser monitorada de forma contínua, como um patrimônio tão relevante quanto ativos tangíveis.

Mais recentemente, estudos como o Edelman Trust Barometer ampliaram esse horizonte, mostrando que confiança e legitimidade são fatores determinantes na sobrevivência de organizações e governos. O levantamento de 2024 destacou que empresas percebidas como “neutras” diante de grandes debates sociais perdem relevância mais rapidamente, enquanto aquelas que comunicam valores claros tendem a ganhar resiliência em momentos de crise.

Esse movimento se conecta diretamente ao avanço dos relatórios de ESG (Environmental, Social and Governance). Hoje, reputação não é apenas narrativa: ela impacta diretamente a atração de investimentos, a fidelização de clientes e a permanência em carteiras de fundos. Companhias vistas como ambiental ou socialmente negligentes sofrem desvalorização imediata, não apenas simbólica, mas financeira.

A tecnologia acrescentou ainda outra camada. Ferramentas de análise de sentimento, big data e inteligência artificial permitiram diagnósticos quase em tempo real sobre como empresas, líderes e instituições são percebidos. Mas essa sofisticação trouxe também uma armadilha: quanto mais imediatista a métrica, maior o risco de capturar apenas ondas de indignação passageiras, em vez de refletir consistência reputacional no longo prazo.

O jornalista britânico Jon Ronson, em So You’ve Been Publicly Shamed (2015), foi um dos primeiros a analisar de forma sistemática o impacto dos linchamentos digitais na vida de indivíduos e organizações. Segundo ele, os linchamentos digitais transformam deslizes pontuais em sentenças definitivas, corroendo reputações de forma imediata e desproporcional.

O efeito corrosivo do cancelamento

Essa lógica tornou as métricas vulneráveis à cultura do cancelamento. O que deveria medir solidez e credibilidade de longo prazo passou a ser distorcido por narrativas frágeis, denúncias circunstanciais e crises fabricadas. Empresas sólidas, instituições respeitadas e lideranças consistentes podem ser arrastadas para rankings negativos ou perder valor de mercado por ruídos digitais efêmeros.

O risco é confundir crises fabricadas com problemas estruturais e acabar medindo menos a reputação e mais a capacidade de resistir ao barulho.

Rever essa métrica é essencial. Precisamos de parâmetros que diferenciem erros pontuais de falhas sistêmicas, que não tratem narrativas frágeis com o mesmo peso de fatos consistentes. Caso contrário, continuaremos reféns de um modelo que transforma reputação em espetáculo.

Redes, imprensa e a lógica do espetáculo

Muito se discute sobre a necessidade de regulamentar as redes sociais, mas pouco se fala em definir limites claros para a imprensa, que passou a emular exatamente o mesmo padrão. A busca por velocidade, manchetes impactantes e narrativas prontas para viralizar se tornou rotina. O resultado é que, em vez de cumprir seu papel de aprofundar o debate e oferecer contexto, parte significativa do jornalismo reforça a lógica do cancelamento.

Notícias transformam-se em espetáculo, e a função informativa cede espaço à indignação instantânea. Esse movimento tornou a mídia não apenas mediadora, mas agente ativa da indústria do cancelamento. E sem uma discussão séria sobre responsabilidade, corremos o risco de naturalizar um modelo em que tanto redes quanto veículos operam sob a mesma lógica de exposição e destruição, sem accountability proporcional.

Nesse cenário, a neutralidade deixou de ser um abrigo seguro e se tornou um risco. Instituições, lideranças e organizações precisam compreender que não basta agir nos bastidores: é necessário se posicionar, comunicar com autenticidade e construir confiança de forma contínua.

Reputação como patrimônio coletivo

Reputação não é apenas um bem das empresas. É patrimônio de pessoas, instituições e da própria democracia. Proteger esse ativo significa preservar a credibilidade, a confiança e a possibilidade de diálogo em uma sociedade cada vez mais polarizada.

É também uma lição para o mundo dos negócios: investir em reputação não é luxo, mas pilar de sustentabilidade. Assim como governos precisam de legitimidade e lideranças políticas precisam de confiança, as empresas só permanecem relevantes quando conseguem manter sua credibilidade.

O ponto central é mais amplo: se aceitarmos que a reputação seja medida apenas pela lógica do cancelamento, estaremos renunciando à ideia de justiça e à busca por consistência. Viveremos em um ambiente em que a gritaria vale mais do que os fatos, e em que a indignação momentânea tem mais peso do que a trajetória construída.

Passos centrais para a gestão de reputação em tempos de cancelamento:

• Monitoramento contínuo: acompanhar redes sociais, imprensa e stakeholders em tempo real.

• Transparência ativa: comunicar antes que a narrativa seja sequestrada.

• Diferenciação entre crise fabricada e estrutural: calibrar a resposta de acordo com a gravidade.

• Treinamento de porta-vozes: preparar lideranças para posicionamentos claros e consistentes.

• Rede de apoio institucional: construir alianças que reforcem credibilidade em momentos de crise.

• Planos de resposta rápida: agir preventivamente, com estratégia e constância.

Na era digital, reputação é patrimônio, mas em permanente risco de ser corroído pela superficialidade. Proteger esse ativo exige coragem para enfrentar narrativas frágeis, rever métricas distorcidas e cobrar responsabilidades. Caso contrário, não será apenas a reputação das organizações que estará em jogo, mas a própria capacidade da sociedade de distinguir verdade de espetáculo.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.