Respeito ensinado aos meninos liberta o futuro das meninas
Pesquisa Serenas – Livres para Sonhar? expõe que a violência contra meninas começa no recreio, não no boletim policial
O relatório “Livres para Sonhar?”, da Serenas, não é daqueles que se folheiam com neutralidade acadêmica. Ele chega como batida urgente na porta — dessas que interrompem o jantar e devolvem a consciência ao lugar de onde nunca deveria ter saído. E pergunta: quando começamos a fracassar com as meninas?
O documento revela salas de aula em que corpos pequenos carregam medos grandes, e o futuro — esse conceito repetido em discursos oficiais — começa a se encolher antes mesmo de entender a tabuada. Onde a mochila pesa menos que a vergonha. Onde apelidos ofensivos circulam com a naturalidade de bilhetes passados no fundo da sala. Onde a menina aprende cedo demais a administrar o próprio silêncio como estratégia de sobrevivência.
A violência que explode nos noticiários — feminicídios, agressões domésticas, desaparecimentos — não começa no crime adulto. Ela germina nos corredores escolares, onde não ousamos arrancar a raiz.
A repercussão jornalística existe, mas ainda é tímida. O Lunetas relatou meninas que evitam ir à escola para não serem avaliadas como objeto. O Brasil, acostumado a conviver com tragédias como quem convive com trânsito lento, precisa romper o ciclo da naturalização.
Porque o relatório da Serenas não fala de incômodos pontuais: fala da primeira estação de um caminho que pode terminar em violência, humilhação e, em casos extremos, morte. E não é exagero dizer que o feminicídio começa quando ensinamos uma menina a se encolher e um menino a se sentir dono do espaço.
Somos um país que cobra boas notas, mas não ensina respeito. Que exige compostura das meninas, mas chama insulto de “brincadeira de menino”. Que vê telejornais exibirem mortes de mulheres noite após noite — e a repetição converte horror em paisagem.
Quem cresce assistindo à dor feminina como manchete recorrente pode acreditar que sofrimento é destino. E isso não pode continuar.
Se queremos transformar o Brasil em um lugar seguro para suas mulheres, precisamos começar pelos meninos.
Educar meninas para se proteger é importante — mas educar meninos para não ferir é indispensável.
1. Respeito como conteúdo escolar obrigatório.
Consentimento não é assunto tardio. É alfabetização emocional básica. Meninos precisam aprender que o corpo da menina não lhes pertence, nem como piada, nem como toque, nem como comentário.
2. Protocolos de denúncia reais — não burocráticos.
Toda escola deve acolher denúncias com seriedade. Meninas não podem ser revitimizadas.
3. Formação contínua de professores.
Educadores bem preparados reconhecem sinais e interrompem abusos. Escola que acolhe transforma trajetórias.
4. Participação ativa das famílias — com homens envolvidos.
Pais precisam ensinar aos filhos que força é proteção, não imposição. Exemplo masculino educa mais que discurso isolado.
5. Mídia como agente de consciência.
Feminicídio não pode ser item de entretenimento trágico. Cada caso é um fracasso coletivo e deve gerar debate — não anestesia.
E, no fim, tudo se resume a uma pergunta simples e poderosa:
que tipo de homem estamos formando?
Se o menino cresce achando que meninas são “de aguentar”, se ninguém lhe diz que limite existe, se a dor alheia é normalizada, o ciclo se repete. E a vida se perde.
Mas existe fresta.
Quando a escola decide proteger, a cultura muda.
Quando o professor escuta, a menina floresce.
Quando o pai conversa, o filho se humaniza.
Quando a sociedade reage, o medo diminui.
O relatório da Serenas não é apenas diagnóstico — é ponto de virada, convocação moral.
Não basta saber. É preciso agir.
Não basta indignar-se. É preciso educar.
Não basta legislar. É preciso cuidar.
O título do documento traz dúvida: Livres para Sonhar?
E estamos longe de garantir essa liberdade.
Mas há um texto que ainda podemos escrever como país. Um trecho que começa nas famílias, passa pela escola e termina nas políticas públicas: o trecho em que meninas crescem inteiras — e não em alerta permanente.
Livres para viver. Livres para crescer. Livres — sem medo.
Esse deve ser nosso compromisso.
Sem hesitação.
Sem reticências.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




