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Alfredo Attié

Doutor em Filosofia da USP, Titular da Cadeira San Tiago Dantas e Presidente da Academia Paulista do Direito, autor de Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito

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Revolução Constitucional Ignorada

Pela Constituição, desde 2022 a igualdade a ser considerada deve ser material: é dever do Estado e sociedade erradicar a desigualdade em todos os aspectos

Jacarezinho, Rio (Foto: Reprodução/TV Globo)

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Rompendo com a tradição do direito brasileiro, a Constituição de 1988 quis deixar claro que, de todas as matérias constitucionais, a que considerava mais importante era a do tratamento dos direitos humanos, sua declaração e garantia. Abriu o texto com a relação de direitos e declarou que não eram os únicos a merecer força constitucional – isto é, que pairariam acima de qualquer outra lei e circunstância da vida pública e privada: assegurava solenemente que qualquer direito declarado em convenção ou tratado internacional firmado pelo Brasil passaria a compor o próprio texto da Constituição.

Sociedade e Estado, porém, resistiram muito a aceitar essa mudança fundamental. Sobretudo o Judiciário, que deixou de cumprir a determinação constitucional, interpretando-a de modo inadequado. Isso levou, na reforma constitucional da emenda 45 de 2004, à introdução de uma nova redação do artigo 5º, para dizer que passariam a compor o texto da Constituição somente os tratados e convenções aprovados pelo Congresso com o quórum exigido para Emendas Constitucionais.  Foi uma mudança que tirou muito da energia constitucional original na afirmação de direitos. Criou, ainda, uma confusão bastante danosa para a sociedade brasileira: a possibilidade de inserção de direitos humanos no direito brasileiro sujeitos a mudanças, restrições e revogações por norma infraconstitucional. Isso ocorreu, para dar um exemplo grave e fundamental, com a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, cujo texto foi promulgado pelo Decreto 4377 de 2002.

 A reforma de 2004, porém, não impediu que a pressão da sociedade - brasileira e internacional -, pela expansão da proteção de direitos dos povos e dos grupos discriminados, não levasse a vitórias importantes, marcadas, recentemente, pela aprovação de duas Convenções, uma internacional (Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, Decreto 64949 de 2009) e outra regional (Convenção Interamericana contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação e Intolerância, Decreto 10932 de 2022).

 Os dois documentos ingressaram no direito brasileiro como emendas constitucionais, ou seja, passaram a fazer parte do texto da Constituição de 1988.

Isso significou uma verdadeira revolução constitucional, pela qualidade dos direitos e mecanismos estabelecidos em tais convenções, que alteraram profundamente o espírito da Constituição brasileira, a extensão dos direitos por ela protegidos e dos deveres relativos a políticas públicas – pelos três Poderes, nas três esferas da federação brasileira: União, Estados e Municípios - e a mudanças nas relações privadas. Mas sociedade e Estado parecem ter ignorado essa revolução.

Da perspectiva do que vinha ocorrendo com a nossa Constituição – mutilada por inúmeras emendas, que restringiram sem piedade direitos sobretudo sociais, e posta de lado por quatro anos de um regime francamente anticonstitucional -, a presença de tais convenções no atual texto representa uma reviravolta extremamente importante para a construção do Estado Democrático de Direito.

Dou apenas alguns exemplos daquilo que passa a existir em nossa Constituição.

A par da proteção integral às pessoas com deficiência, definindo sua condição e os mecanismos necessários para a consecução da determinação de sua integração na sociedade, com dignidade e independência, nas esferas pública e privada, a convenção corrigiu a ambiguidade na adoção e adaptação de todas as outras declarações internacionais de direitos, conseguindo inseri-las, de modo indireto, no texto constitucional. Os direitos da mulher e das crianças, consagrados em outras convenções internacionais, passaram a ter status constitucional por força da aprovação da Convenção sobre Pessoas com Deficiência.

No caso da Convenção Interamericana contra qualquer Forma de Discriminação, as definições que passam a compor o texto da Constituição abrangem o racismo institucional e estrutural, além da questão fundamental da interseccionalidade, a que a Convenção dá o nome de discriminação agravada ou múltipla, em que vários aspectos da configuração discriminatória do modo como uma sociedade desigual como a nossa opera, excluindo classes, povos negros, originários, periféricos, pessoas com deficiência, e todos os gêneros. A Convenção torna constitucionais as políticas afirmativas e reparatórias, impondo o dever de que permaneçam e não sejam suprimidas até que as desigualdades sejam efetivamente superadas. A partir da vedação da intolerância, todos os aspectos educacionais, culturais, incluindo as religiões, passam a ter um tratamento constitucional contundente, impedindo, por um lado, que discriminações ocorram, e incentivando, por outro, a multiplicidade de expressões, às quais o Estado, por seus três poderes e por todas as unidades da federação, deve não só proteger como incentivar, mesmo coibindo que ocorram discriminação e intolerância na vida privada, na família e na empresa.

 Finalmente, saliento um aspecto fundamental da revolução constitucional trazida por esses instrumentos – e que, até aqui, tem sido solenemente ignorada pelos Poderes públicos e não tem sido objeto do tratamento e das reivindicações e empoderamento da sociedade – a mudança da concepção constitucional da igualdade.

 É estranho que tal Convenção venha sendo ignorada, sobretudo porque ela foi resultado do protagonismo internacional do Brasil nas primeiras gestões do Presidente Lula, responsável por patrocinar sua redação e seu trâmite no sistema interamericano de direitos humanos, graças ao trabalho dos Ministérios das Relações Exteriores (Celso Amorim) e da Igualdade Racial (Matilde Ribeiro).

Até aqui, os direitos, deveres e políticas públicas vêm sendo tratados apenas como indutores da igualdade formal: mera igualdade perante a lei. A partir de fevereiro de 2022, porém, quando a Convenção Interamericana passou a fazer parte da Constituição, a igualdade a ser considerada deve ser a material: o dever do Estado e da sociedade é fazer erradicar a desigualdade em todos os aspectos, do econômico ao cultural, do povo brasileiro. Numa palavra, a Constituição, em sua revolução, determina que se leve a sério a cidadania, de modo integral e absoluto.

 É um desafio para o novo Governo Democrático recuperar a energia que caracterizou sua passagem pelo poder. A Constituição, iluminada por essas Convenções, aponta o caminho a seguir. A sociedade espera a implementação dessa revolução.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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