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Pepe Escobar

Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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Samarcanda na encruzilhada: de Timur à ICR e à OCX

Desde as antigas Rotas da Seda até o programa ICR chinês, o Uzbequistão está destinado a permanecer como um dos principais nós geoeconômicos da Ásia Central

(Foto: The Cradle)
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Por Pepe Escobar, para o The Craddle

Tradução de Patricia Zimbres para o 247

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SAMARCANDA – A suprema cidade da Rota da Seda, localizada em uma inigualável encruzilhada de rotas de comércio, é o local ideal a partir de onde examinar  o rumo a ser tomado, a partir de agora, pela aventura das Novas Rotas da Seda. Para começar, a próxima cúpula de chefes de estado da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) terá lugar em Samarcanda e meados de setembro.

A antiga cidade maravilhou Alexandre o Grande em 329 BC e enlouqueceu a dinastia Tang com a doçura de seus pêssegos dourados. Samarcanda era um centro cosmopolita que abraçava o culto ao fogo zoroastriano e chegava a flertar com a Cristandade Nestoriana, até que os conquistadores árabes, sob a bandeira do Profeta, chegaram em 712 e mudaram tudo para sempre.

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No século XIII, os mongóis irromperam em cena com seu proverbial estrondo. Mas então Timur, o conquistador turco-mongol, fundador da dinastia Timúrida em fins do século XIV, dedicou-se a embelezar Samarcanda, transformando-a em um diamante resplandecente, atraindo artistas de todas as partes de seu vasto império  – Pérsia, Síria, Índia – para fazer dela "menos um lar que um troféu maravilhoso".  

Mesmo assim, como o consumado nômade que era – Timur morava em luxuosíssimas tendas cercadas por jardins nos arredores de sua joia urbana.  

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A frenética atividade comercial da Rota da Seda desapareceu no século XVI, depois de os europeus terem finalmente "descoberto"  sua própria Rota da Seda marítima.

A Rússia conquistou Samarcanda em 1868. A cidade, por um breve período, foi a capital da República Socialista do Uzbequistão (depois transferida para Tashkent), e a partir daí afundou em invisibilidade até 1991.  Agora, a cidade se prepara para reviver sua antiga glória, como importante nó do Século Eurasiano.

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O que Timur pensaria de tudo isso?

"Conquistador do Mundo"

Timur nasceu em uma pequena aldeia na periferia de Samarcanda, em um clã de mongóis turquicizados, apenas um século após a morte de Gengis Khan. Atingido por flechas no ombro e quadril  quando tinha apenas 27 anos, ele ganhou o apelido pejorativo em persa Timur-i-Leme (Timur o Manco), mais tarde latinizado para Tamerlane.

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Da mesma forma que com Gengis, ninguém haveria de querer pegar uma briga com Timur. Ele imbuiu-se da ideia fixa de se tornar o "Conquistador do Mundo", e não fez por menos.  

Timur derrotou o Sultão Beyazid em Ancara (não diga isso aos turcos), destruiu a Horda Dourada nas estepes cazaques, bombardeou os exércitos cristãos em Smirna (hoje Izmir) com balas de canhão feitas com cabeças decepadas.  

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Em Bagdá, em 1401 – as pessoas ainda se lembram nitidamente, como fiquei sabendo em 2003 – seus soldados mataram 90.000 habitantes da cidade e cimentaram suas cabeças em 120 torres. Timur dominou todas as rotas de comércio de Delhi a Damasco, e inspirou poema de Edgar Allan Poe, peça de Christopher Marlowe, ópera de Vivaldi.

O coletivo ocidental zumbificado e politicamente correto zombaria de Timur, vendo-o como o autocrata proverbial, ou um "ditador" como Vladimir Putin. Bobagem. Timur foi islamizado e turquificado,  mas nunca foi um fanático religioso como os  salafi-jihadistas de hoje. Ele era analfabeto, mas falava persa e turco fluentemente. Ele sempre mostrou um imenso respeito pelos eruditos. Aqui tínhamos um nômade, sempre em movimento, que supervisionou a criação de uma das mais deslumbrantes arquiteturas urbanas da história mundial. 

Todas as noites, às 9 horas, sob a iluminação psicodélica que envolve o tesouro arquitetônico do Registão ("lugar arenoso), originalmente um bazar situado em uma encruzilhada comercial, entre os sons indistintos da conversa de famílias de Samarcanda, as palavras de Timur ainda ressoam: "Que aqueles que duvidam de nosso poder contemplem nossos edifícios". 

Timur morreu em 1405 em Otrar – hoje situada no sul do Cazaquistão – quando planejava a Mãe de todas as Campanhas: a invasão da China Ming. Esse é um dos maiores "e se?" da história". Teria Timur sido capaz de islamizar a China confucionista? Teria ele deixado marcas, da mesma forma que os mongóis, que ainda estão fortemente presentes no inconsciente coletivo russo? 

Todas essas perguntas rodopiam em nossa mente quando nos vemos frente ao túmulo de Timur – uma espetacular lápide de jade negro no Gur-i-Mir, na verdade um santuário muito modesto, cercado por seu conselheiro espiritual  Mir Sayid Barakah e membros de sua família, como seu neto, o astrônomo Ulug Beg.

De Timur a Putin e Xi 

Xi Jinping e Vladimir Putin não podem ser comparados a Timur, e menos ainda o atual presidente uzbeque Shavkat Mirzoyoyev.

O que chama a atenção agora, como vi ao vivo na fervilhante cidade de Tashkent, e em seguida na estrada para Samarcanda, é o quão habilmente Mirzoyoyev vem lucrando tanto com a Rússia como com a China com sua política multivetorial voltada a transformar o Uzbequistão e uma potência centro-asiática – e eurasiana – até a década de 2030.

O governo vem investindo pesadamente em um enorme Centro da Civilização Islâmica, próximo ao marco que é a praça Khast-Imam, onde se localiza o influente Instituto Islâmico al-Bukhari. Está também sendo construído um novo complexo empresarial nos arredores de Samarcanda, onde terá lugar a cúpula da Organização de Cooperação de Xangai.

Os americanos investiram em um centro empresarial em  Tashkent, contando com um novíssimo e ostentatório Hotel Hilton. A um quarteirão de distância, os chineses estão construindo sua própria versão. Os chineses participam também da construção de um importante corredor de transportes  da Nova Rota da Seda: a ferrovia Paquistão-Afeganistão-Uzbequistão - Pakafuz - , também conhecida como a Ferrovia  Trans-afegã, com investimento de 5 bilhões de dólares.

O Uzbequistão não comprou a ideia – pelo menos ainda não – da União Econômica Eurasiana (UEEA), que pede livre trânsito de mercadorias, pessoas, capitais e serviços. O país privilegia sua própria autonomia. A Rússia aceita essa postura porque as relações bilaterais com Tashkent continuam fortes, e não há possibilidade de o Uzbequistão se aproximar da OTAN. 

Portanto, da perspectiva de Moscou, é altamente necessária uma aproximação com  o Uzbequistão pós Islam Karimov, mas sem forçar o país a se juntar às instituições de integração eurasiana. Isso talvez venha com o tempo, não há pressa. A Rússia tem altos índices de aprovação no Uzbequistão – embora não tão altos quanto no Tajiquistão e no Quirguistão.  

Cerca de 5 milhões de migrantes dos "istãos" da Ásia Central estão trabalhando na Rússia – principalmente uzbeques e tajiques, embora eles agora também busquem emprego no Golfo Pérsico, na Turquia e na Coreia do Sul.

Moscou vê a Ásia Central como uma de suas principais  esferas de influência "garantidas" e como parceiros da maior importância, parte de um projeto de uma Eurásia consolidada que contrasta totalmente com suas fronteiras ocidentais e com a Ucrânia hoje em rápida desintegração.

Todos os caminhos levam à ICR 

O ângulo chinês definido pela ambiciosa Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) é muito mais nuançado. Para toda a Ásia Central, a ICR significa desenvolvimento de infraestrutura e integração  nas cadeias de fornecimento globais. 

O Uzbequistão, tal como seus vizinhos, sob o Presidente Mirziyoyev, vinculou sua estratégia de desenvolvimento nacional à ICR: isso está incluído no documento oficial "Estratégia de Ações em Cinco Direções de Desenvolvimento Prioritárias" O Uzbequistão também é membro oficial do Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura (BAIIEIB).

A relação da China com a Ásia Central se inspira, é claro, na era soviética, mas também leva prudentemente em conta divisões territoriais e estarrecedoras questões de fronteira.  

O colapso da URSS viu, por exemplo, um rio, um canal de irrigação, um pequeno bosque ou até mesmo um monumento brutalista situado à margem de uma estrada serem de repente convertidos em fronteiras externas de novas nações soberanas – com resultados imprevisíveis.

Na era da Antiga Rota da Seda isso não fazia o menor sentido. Timur conquistou tudo, do Norte da Índia até o Mar Negro. Hoje, é difícil encontrar alguém em Tashkent que consiga levá-lo para o Turquestão, do outro lado da fronteira, via Shymkent – ambos agora no sul do Cazaquistão – e fazer o caminho de volta com um mínimo de burocracia de fronteira. O Sultão Erdogan quer fortalecer a reputação do Turquestão proclamando-o capital de todos os povos túrquicos (o que é altamente discutível, mas essa é uma outra e longa história).  

E não estamos nem falando do caldeirão do vale de Fergana, ainda susceptível à influência de jihadistas fanáticos do tipo Movimento Islâmico do Afeganistão (MIA).

Tudo isso já vinha fervilhando há três décadas, uma vez que que cada um desses países centro-asiáticos tinha que articular uma ideologia nacional distinta, acoplada a uma visão de um futuro progressista e secular. Sob Karimov, o Uzbequistão rapidamente recuperou Timur como seu eterno herói nacional e investiu pesadamente na ressurgência de toda a glória do passado timúrida. Nesse processo,  Karimov não poderia perder a oportunidade de, habilmente, assumir a postura de um Timur moderno vestido de terno. 

 

De volta aos holofotes geoeconômicos 

A OCX mostra que o enfoque chinês à Ásia Central é definido por dois vetores centrais: segurança e desenvolvimento de Xinjiang. Os estados regionais mais fortes negociam tanto com Pequim como com Moscou, usando sua política externa multivetorial e cuidadosamente calibrada.  

O mérito de Pequim foi o de, habilmente, se posicionar como provedor de bens públicos, com a OCX funcionando como laboratório avançado em termos de cooperação multilateral. Essa capacidade sairá ainda mais fortalecida da cúpula de Samarcanda, a ser realizada no próximo mês. 

O destino do que está em vigor no interior da Ásia – o interior do Grande Interior – não pode escapar de uma competição sutil, muito complexa e de vários níveis entre a Rússia e a China.

É de importância fundamental nos lembrarmos que no crucial discurso proferido 2013 em Nur-Sultan, então Astana, quando as Novas Rotas da Seda foram formalmente lançadas, Xi Jinping ressaltou que a  China está "pronta a aumentar a comunicação a coordenação com a Rússia e com todos os países da Ásia Central na tentativa de construir uma região de harmonia". 

Essas não foram palavras vazias. O processo envolve uma conjunção da ICR e da OCX – que vem progressivamente evoluindo para um mecanismo de cooperação econômica  e também de segurança. 

Na cúpula de 2012 da OCX, o vice-ministro das relações exteriores chinês Cheng Gouping já era categórico: a China jamais permitiria que a conflagração ocorrida no Oeste Asiático e no Norte da África se repetisse na Ásia Central.

Moscou poderia ter dito exatamente o mesmo. O recente (e fracassado) golpe no Cazaquistão foi rapidamente contido pelos seis  membros da Organização do Tratado para a Segurança Coletiva (OTSC), liderada pela Rússia.

A China está cada vez mais investida em usar a OCX para turbinar uma forte arrancada geoeconômica  – mesmo que algumas de suas propostas, tais como a criação de uma zona de livre comércio e também um fundo conjunto e um banco de desenvolvimento da OCX ainda não tenham se materializado. É possível que isso venha a acontecer na esteira da histeria das sanções russofóbicas, que podem levar a OCX e a ICR a convergir  progressivamente com a UEEA.   

Em cada cúpula da OCX, os empréstimos de Pequim são entusiasticamente aceitos pelos atores centro-asiáticos. Samarcanda, no próximo mês, talvez venha a anunciar um salto qualitativo nessa convergência: Rússia e China cada vez mais dedicadas a trazer o Interior da Ásia de volta para  os holofotes geoeconômicos. 

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