“Sapatos para Cuba e para Dubai”
Regimes híbridos são por muitos considerados as “novas ditaduras século XXI”
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Tenho recebido e-mails de gente generosa que gosta das histórias que compartilho aqui nas páginas do 247 , por isso vou contar uma historia recente que se passou comigo.
Encontrei um cliente num evento concorrido voltado para as pequenas e médias empresas, exatamente o perfil das empresas para as quais advogo.
Quando ele me avistou veio ao meu encontro e, depois de um abraço, foi logo perguntando: “Doutor, o senhor conhece Dubai?”, respondi negativamente, então ele enumerou elogios a Dubai e às oportunidades comerciais que ele identificou por lá, disse que precisaria de mim e que o livre-mercado é o maná do mundo livre.
Estranhei, pois as exportações do Brasil-para os Emirados Árabes Unidos são basicamente de alimentos e bebidas, ou seja, é um campo de oportunidades para as empresas agrícolas brasileiras aumentarem as exportações para Dubai e através de lá para outros países; mas o meu cliente fabrica calçados.
Marcamos uma reunião para a semana seguinte; fui visitá-lo e ele me mostrou dados importantes; feiras realizadas sob o patrocínio da Apex e da Abicalçados na Expo Dubai 2020 e contou com marcas importantes.
A reunião foi produtiva e haveria bastante trabalho, especialmente o registro ou renovação das marcas e a atenção aos contratos de exportação.
Então ele me sai com a seguinte pérola: “Tá vendo doutor? A democracia nos oferece oportunidades; se fosse em Cuba ou na Venezuela...”, e ficou nas reticências, como a insinuar alguma coisa.
Não costumo aliviar para ditaduras. O 247 publicou pelo menos dois artigos sobre o tema: “Não bato palmas para ditadores” e o “É uma ditadura, sim” nos quais me alinho a Michelle Bachalet e Pepe Mujica e repudio as violações de direitos humanos perpetradas pelo governo de Nicolás Maduro na Venezuela.
Eu respirei e disse a ele que há quarenta e nove (49) ditaduras no mundo atualmente, assim espalhadas: (i) 18 na África Subsaariana; (ii) 12 no Oriente Médio e Norte da África; (c) 8 na Ásia-Pacífico, (d) 7 na Eurásia, (e) apenas 3 nas Américas, e (f) 1 na Europa e dessas, quarenta e seis são de direita, segundo a ONG Freedom House, sendo que uma das de direita é a dos Emirados Árabes.
Ele não sabia que os Emirados são uma ditadura e nunca pensou sobre quais seriam os critérios para definir se num país há uma democracia ou uma ditadura.
Penso que para dizer se um país é livre ou não deve-se levar em conta (a) os direitos políticos, o processo eleitoral e o pluralismo político -; e (b) as liberdades civis, referentes a liberdades de expressão e crença, por exemplo.
Segundo esses critérios, há os “países livres”, onde as democracias estão consolidadas e liberdades civis asseguradas: Suécia, Japão e Uruguai.
Há os “países parcialmente livres”, que apresentam problemas de intervenção nas tomadas de decisões dos indivíduos, mas ainda assim estão garantidos processos políticos: Ucrânia, Bolívia e Nigéria.
E há as “ditaduras”, países em que as eleições não são democráticas, ou nem tem eleições e há alto controle e limitação das liberdades civis.
Quando eu disse a ele que, para desassossego dos anti-esquerda radicais, das 49 ditaduras, quarenta e três (43) se reconhecem “de direita” ele sentou-se e pediu para a Flávia, sua assistente, passar um café novinho e “sem açúcar, como o doutor Pedro gosta”.
A proa tomou outro rumo.
Abri o notebook, pesquisamos juntos no Google, e descobrimos que dentre as ditaduras de direita estão: Arábia Saudita, Kuwait, Bahrein, Qatar, Emirados Árabes Unidos, Omã, todas de direita, autoritárias, sanguinárias e conservadoras.
Meu cliente perdeu a cor quando leu que o mais famoso dos emirados é o “Emirado de Dubai”, que é governado pela família Al Maktoum desde 1833; que Dubai é uma monarquia, sem eleições.
Nossa pesquisa nos levou para além da Península Arábica, chegamos ao Egito, que vive sob uma ditadura militar de direita (muito parecida com a ditadura militar que houve no Brasil), pois, por lá o general As-Sisi permite uma certa liberdade e é menos autoritário que a ditadura que havia antes da Revolução Egípcia em 2011.
Mais a leste há outras ditaduras de direita: Belarus e Rússia. É verdade que muita gente tem dificuldade em afirmar que esses dois países são ditaduras de direita, mas eu penso que são ditaduras, pois, a democracia que existe por lá é cosmética, os governos desses países são autoritários e, mesmo que exista alguma liberdade de participação política, seus governantes são líderes de direita; Putin e Lukashenko são líderes nacionalistas de direita, conservadores, autoritários e estatistas.
Ainda como ditaduras de direita podemos citar: Azerbaijão, Cazaquistão, Turcomenistão, Tajiquistão, países que tem líderes de direita autoritários, porém pragmáticos, sendo que o líder do Turcomenistão é considerado o mais despótico do mundo.
E a Turquia? A Turquia, que é considerada um regime híbrido, que não é nem uma ditadura nem uma democracia, sob o controle de Recep Tayyip Erdogan, de extrema-direita.
Na África as coisas são ainda mais confusas. Existem poucas ditaduras tradicionais, mas muitos regimes híbridos e todas de direita.
Regimes híbridos são por muitos considerados as “novas ditaduras século XXI”, já que ditaduras do tipo tradicional se tornaram muito mais difíceis no mundo contemporâneo. A maioria desses regimes híbridos são governados por líderes conservadores nos costumes e ultraliberais na economia, como Bolsonaro.
Um dos governos mais autoritários e direitistas do continente Africano é o de Uganda, quase uma teocracia evangélica onde o Presidente Yoweri Museveni se mantém no poder desde os anos 80, através de eleições fraudulentas e com limitação da oposição.
Na Ásia, temos a Tailândia, onde a ditadura militar terminou em 2018, mas o primeiro-ministro ou ditador militar, o general Prayuth Chan-ocha, continuou no poder e o país deixou de ser uma ditadura para ser um regime híbrido. Para complicar um pouco a análise o país é uma monarquia constitucional, e cada golpe e ditadura que houve retirou sempre o governo primeiro-ministro de plantão, nunca o rei, que sempre apoiou ou não impediu nenhum dos golpes.
Tomamos todo o café e o meu cliente se saiu com a seguinte pérola: “Nossa, o senhor deve ter ficado com vergonha alheia, né? Vergonha de mim”.
Não chegou a tanto, pois é comum ouvir muita gente “encher a boca” para criticar Cuba, Venezuela e Nicarágua, mas paradoxalmente gabar-se da sua viagem à ditadura sanguinária de Dubai.
Demos risada e voltei para o escritório com bastante trabalho.
Passados alguns dias o cliente me telefonou ainda mais eufórico e disse: “Doutor, em 2022 o Brasil vendeu USD 289 milhões de produtos para Cuba; vou vender calçados para Dubai, mas quero um pedacinho desses quase trezentos milhões de dólares, quero vender sapatos para a Cuba do Fidel também” e gargalhou.
Ele percebeu que o mundo é o que é.
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