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José Álvaro de Lima Cardoso

Economista

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"Servidão financeira" e desenvolvimento nacional

Brasil sacrifica direitos sociais para alimentar os lucros do capital financeiro global

Bolsa de Valores (Foto: Amanda Perobelli / Reuters)

No livro Brasil Delivery: Servidão Financeira e Estado de Emergência Econômico, a economista Leda Paulani faz uma análise crítica e profunda sobre a política econômica implementada no Brasil há décadas. A autora traz aspectos muito importantes para a compreensão do papel do Estado brasileiro no cenário internacional e dos riscos decorrentes do domínio do capital financeiro sobre as economias mundiais. Conforme o título sugere, o Brasil teria se tornado, a partir de certo momento da história, uma “plataforma de valorização financeira”, ou seja, uma economia voltada principalmente para a valorização financeira internacional. Um país cada vez mais voltado para a “entrega”.

Um conceito fundamental adotado no livro é o de “estado de emergência econômico”, utilizado pelos governos para manter e justificar políticas de cunho ortodoxo, como a de superávit primário e outras que mantêm a hegemonia do capital financeiro. Usando, inclusive, o argumento do estado de emergência, para o qual não haveria outra saída senão a ortodoxia econômica. É central também, na obra citada, o conceito de “servidão financeira”, que significa a subordinação dos países de capitalismo atrasado aos interesses e políticas econômicas do capital financeiro internacional. Para Paulani, a servidão financeira é uma espécie de dependência moderna, em que o Estado passa a atuar objetivando principalmente a credibilidade diante do mercado financeiro global, e não mais a construção de um projeto nacional de desenvolvimento autônomo e soberano. Em suma, servidão financeira significa renunciar à soberania econômica e social em favor dos interesses do capital financeiro internacional, abandonando, na prática, o objetivo de desenvolvimento nacional.

A servidão econômica, claro, não é exclusividade do Brasil, mas acomete todos os países do mundo, com diferenças decorrentes de uma série de variáveis. As consequências da servidão financeira são profundas e impactam diretamente o desenvolvimento econômico e a soberania nacional. Além do sacrifício do desenvolvimento nacional e da estagnação econômica, aumenta a desigualdade social, visto que há uma limitação de políticas públicas que promovam inclusão social. Além disso, há uma prevalência do capital financeiro sobre o produtivo, o que acelera o processo de desindustrialização.

Como a política econômica se subordina aos ganhos do rentismo, os direitos sociais estão permanentemente ameaçados. Nesse contexto, no caso brasileiro, possivelmente nenhum outro direito foi tão impactado pela política de servidão financeira quanto o direito à aposentadoria. Esse é um direito fundamental porque, de forma direta e indireta, cerca de 77 milhões de brasileiros são beneficiados pela existência da Previdência Social. O valor recebido de aposentadoria sustenta, além do titular do benefício, seus dependentes e movimenta a economia de praticamente todo o país, especialmente em municípios menores e em regiões do interior. Entre 1990 e hoje, o Brasil realizou sete grandes reformas da Previdência Social, implementadas por meio de emendas constitucionais e leis específicas, sempre retirando direitos dos trabalhadores — quase sempre com o argumento de ajustar o sistema previdenciário às mudanças demográficas e econômicas do país.

Atualmente, novamente há pressões para a realização de uma nova “reforma” da Previdência Social. Líderes da Câmara dos Deputados vêm falando, desde meados de 2024, sobre a necessidade de iniciar debates sobre uma nova reforma da Previdência no atual governo. Diversos “especialistas” (normalmente ligados a bancos) e veículos da grande mídia identificam riscos no aumento do “déficit” previdenciário, devido ao envelhecimento populacional e às mudanças no mercado de trabalho. Pesquisadores de conhecidas fundações, diligentemente, alertam sobre o crescimento dos gastos previdenciários, sem fazer nenhuma referência aos gastos com a dívida pública (que, como se sabe, decorrem de uma determinação divina). Obviamente, no atual governo federal não será encaminhada nenhuma proposta de reforma da Previdência, mas a ideia é ir preparando a sociedade para aceitar mais um recuo no direito previdenciário a partir de 2027.

A adesão à servidão financeira e a renúncia, de fato, ao desenvolvimento econômico limitam muito o espaço de manobra política dos governos. A dificuldade em cumprir as apertadas metas fiscais estabelecidas no Brasil, por exemplo, leva o governo a uma retórica defensiva. Em vez de atacar o nível da taxa de juros e os gastos pornográficos com os serviços da dívida pública, o governo se limita a argumentar que vem tomando medidas de austeridade, ou a criticar aspectos que, embora sejam um problema, não são o fulcro do problema.

Há também uma relação direta entre o fenômeno da servidão financeira e as privatizações. O governo de Fernando Collor lançou o Programa Nacional de Desestatização, no seu início, quando o país enfrentava uma grave crise fiscal, inflação alta e dificuldade em rolar a dívida pública. O resultado foi a privatização da Usiminas (1991) e de outras siderúrgicas para gerar receitas imediatas e aliviar as contas públicas. No governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), foram privatizadas cerca de 80 estatais (incluindo bancos estaduais, energia, telecomunicações e mineração), arrecadando cerca de R$ 78,6 bilhões. Foram inclusive usados “títulos podres” (dívida pública desvalorizada) como moeda de privatização, permitindo abater títulos em vez do uso de dinheiro vivo na compra de estatais. A Vale do Rio Doce, maior mineradora brasileira, privatizada a preço de banana (US$ 3 bilhões), um dos casos de entrega mais escandalosos da história, teve também como justificativa a necessidade de pagar a dívida pública.

No período pós-golpe de Estado de 2016, a subserviência ao capital financeiro subiu alguns degraus, pois assumiram os governos Temer e Bolsonaro, totalmente comprometidos com esse tipo de política. A partir de uma crise fiscal (em boa parte provocada pelas ações do golpe) e da suposta necessidade de captar recursos rapidamente, venderam-se ativos estratégicos do ponto de vista econômico e político, que proporcionavam muito lucro ao governo. Foram vendidas a BR Distribuidora, Eletrobras e TAG (Transportadora Associada de Gás). O discurso, basicamente, foi o da “emergência econômica”, ou seja, a necessidade de aliviar as contas públicas de forma rápida. Todas essas empresas, obviamente, sempre deram muito lucro líquido ao governo, conforme os dados disponíveis.

A servidão financeira não é exclusiva de países pobres e de capitalismo atrasado, mas se manifesta de formas variadas onde há políticas econômicas guiadas mais por interesses externos do que nacionais, vulnerabilidade a fluxos financeiros globais e fuga sistemática de capitais e recursos. A combinação de alto endividamento (externo ou interno), fuga de capitais, instabilidade cambial crônica, dependência externa das exportações de commodities e políticas de austeridade impostas por credores internacionais são características tradicionais da servidão financeira. Todos esses vetores, que fragilizam muito a economia nacional e o desenvolvimento de qualquer país, ganharam novos contornos no atual governo argentino, que é apoiado pelo imperialismo. A gestão de Javier Milei, além de combinar todos os aspectos descritos, adicionou um elevado componente de crueldade. Cortou 30% nos gastos públicos, demitiu 20% dos servidores e congelou pensões e benefícios. O impacto social é devastador, especialmente entre os mais pobres e aposentados, com grave erosão das aposentadorias e dos salários reais.

A regra de Milei é: quanto mais frágil for, mais apanha. Entre o início do governo (dezembro de 2023) e julho de 2024, os aposentados tiveram uma perda média de poder aquisitivo de cerca de 29,2% comparado ao mesmo período de 2023. Quase um terço dos aposentados está vivendo abaixo da linha da pobreza. Neste mês de julho, o Senado aprovou um aumento de 7,2% para as aposentadorias (para uma inflação anual de 39,4%), mas Milei vetou. Medicamentos gratuitos, fornecidos sobretudo pelo PAMI (principal órgão de assistência ao idoso), tiveram cobertura reduzida, muitas vezes obrigando os idosos a pagar até 80% do valor de referência. Muitos aposentados não conseguem mais pagar alimentação, aluguéis e necessidades médicas.

O caso de servidão da Argentina se agrava com a dependência crônica que tem em relação ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Atualmente, o país tem uma dívida com o Fundo de cerca de US$ 61 bilhões, somatório de empréstimos anteriores (~US$ 41 bilhões, desde 2018) e do novo acordo firmado em abril de 2025, que concedeu ao país um empréstimo adicional de US$ 20 bilhões. Desse novo valor, US$ 12 bilhões já foram desembolsados em abril, e o restante será desembolsado à medida que as exigências do FMI forem cumpridas. O país vizinho é, atualmente, o maior devedor individual do FMI, respondendo por cerca de 34% do total de crédito concedido pelo organismo. É uma economia engessada pelos acordos com o FMI, e toda a crueldade praticada por Milei contra o povo argentino tem total aprovação do Fundo.

O Brasil, apesar de também estar submetido ao domínio do capital financeiro, mantém mais instrumentos de gestão nacional (reservas internacionais, um banco de desenvolvimento, menor subordinação ao FMI). Portanto, sua “servidão” é grande, mas menos radical que a praticada na Argentina. Não se pode ter dúvidas de que o modelo sonhado pelo imperialismo para a América Latina, incluindo o Brasil, é a política econômica desenvolvida por Milei, com adaptações para cada realidade.

O imperialismo quer resolver a sua crise destruindo as economias dos países de capitalismo atrasado. Daí a importância de reverter o processo de financeirização da economia, começando por desmantelar os mecanismos que favorecem a valorização do capital financeiro em detrimento do investimento produtivo ou social. A começar pela independência do Banco Central e pela prática das maiores taxas de juros do planeta. A dívida pública deveria ser discutida por toda a sociedade e seus mecanismos devastadores expostos didaticamente. Como todos os grandes problemas nacionais, a servidão econômica não será enfrentada sem esclarecimento e mobilização da maioria da sociedade, que paga o preço do processo.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.