CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
Taciano Valério avatar

Taciano Valério

Professor UFPE/Caruaru

7 artigos

blog

Setembro Amarelo

"Matar o que está nos matando também nos põe numa micropolítica. Há escolhas que fazemos que determinam as mortes dos outros e as nossas próprias mortes", escreve Taciano Valério

(Foto: Reprodução do quadro O Velho, de Vincent van Gogh/divulgação)
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

Ano 1988, Campina Grande-PB. Eu e o meu irmão ganhamos de um jovem amigo um time de futebol de botão. Eu tinha 10 anos, enquanto esse meu amigo, Marcos, tinha 16. Além do futebol de botão, jogávamos futebol juntos na quadra da Escola Municipal Anísio Teixeira. Ante a distância temporal entre as idades, vimos em Marcos alguém sábio, visto que o mesmo dominava um saber de características enciclopédicas. 

Nas poucas vezes em que conversávamos com ele, eu e o meu irmão XY (12) ficávamos boquiabertos com as histórias de Marcos sobre futebol, ciências, história, geografia e até mesmo música clássica. No entanto, tivemos que nos mudar e residir num bairro muito distante. Naquela época as distâncias eram maiores, não possuíamos telefone em casa, dois ônibus no deslocamento para irmos até a casa do amigo e assim o contato ficou escasso. Tínhamos saudades dos amigos do bairro da Palmeira, e do meu amigo Marcos era uma saudade especial.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

 As pessoas que sabem contar histórias, e que despertam a nossa curiosidade sobre as coisas, são pessoas extraordinárias. Não era qualquer pessoa na rua ou nas proximidades que conseguia conversar com Marcos, ele era ensimesmado, conversava com poucas pessoas e não tinha relações próximas com os irmãos. Marcos era um mistério. Quando estávamos em grupo e Marcos passava ao nosso lado, não conversava e nem dava atenção a ninguém. Quando jogávamos futebol, era um jogador calado e que resolvia o futebol tocando bola e, quando acabava o jogo, não se juntava ao grupo de crianças, indo embora sozinho. Assim, passei a ser um Indiana Jones - nosso herói da época - querendo desvendar o mutismo do amigo, e o que encontrei foi alguém sensível e com um conhecimento enorme sobre as coisas no mundo. 

Eu e o meu irmão nos sentíamos privilegiados pela amizade com Marcos e guardávamos isso de forma muito singular. Era como um vaso inquebrantável a presença dele nas poucas vezes que o mesmo se colocava a falar. Foi Marcos que me colocou o apelido de Besouro porque, segundo ele, eu perguntava muito sobre as coisas e alongava o texto dele com interrogações e dúvidas. Hoje entendo o Besouro como alguém que conseguia adentrar no imaginário e no mundo da contação de história de Marcos, que quando era atrapalhado com minhas indagações, ao mesmo tempo que ficava muito bravo, também sentia prazer porque as perguntas o colocavam diante da necessidade de responder e avançar mais em suas narrativas, tornando-as mais críveis. 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Então, dois fatos ocorreram. Primeiro tivemos que sair do bairro da Palmeira. Segundo, dois meses depois, eu e o meu irmão escutamos pelo jornal local que um jovem havia pulado de um edifício localizado no centro da cidade. Na reportagem veicularam o nome completo do meu amigo, além da rua e do número da casa onde ele morava. Caí num choro e o meu irmão também. Era dia 15 de novembro de 1988, a primeira vez que o suicídio despontou em meu território existencial. Marcos havia pulado de um andar muito alto. Depois disso, as coisas ficaram difíceis para mim. Ir ao bairro da Palmeira era desconfortável. Passar na rua em frente à casa onde ele morava era um tabu. Eu sempre olhava para o jardim e via ele passar ali com o seu jeito de andar, os olhos fincados para o chão e o braço direito meio que torto. 

Ao tratar desse presente texto, mandei uma mensagem ao meu irmão perguntando qual a mais forte lembrança que ele tinha do nosso amigo Marcos. Assim, o meu irmão me respondeu: O jornal da Borborema no dia da morte dele. Uma foto do corpo dele, de uniforme de escola, deitado sobre a marquise do edifício Lucas...

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Entendo o quão isso foi traumático para meu irmão. Imagino o quanto os familiares de Marcos sofreram e guardam marcas. Acessar tudo isso me fez parar esse texto diversas vezes. Como criança, passei a ver o suicídio como uma saída, uma interrupção, uma parada para ir até algum lugar. Essa parada nos deixa esperando pelo outro, não sendo à toa nossa raiva, tristeza, indignação, surpresa quanto ao ato realizado por este outro. Inicialmente julgamos muito mais o ato do que a pessoa. Depois, passamos a julgar a pessoa da pior forma possível, inclusive o silêncio é uma forma de não discutirmos os tabus que cercam nossa relação com o suicídio. Marcos morreu e ao retomar as lembranças eu não sabia que ainda havia tanta emoção guardada.

 Não tenho uma visão punitiva sobre o ato do meu amigo, ao contrário do imaginário que cerca nossa cultura de raízes cristãs. Cresci envolto de mistérios sobre o suicídio. Mais tarde, descobri que uma tia avó cometeu o ato na década de 70, depois que ingeriu veneno num copo de leite. Isso, segundo me disseram, dividiu a família, já que pessoas disseram que foi o esposo que colocou veneno no copo dela, ou seja, versões para evitar o confronto com o matar a si mesmo. 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Muitos buscam as razões e as versões que incriminam pessoas próximas. Aos 18 anos lembro-me de uma tia que foi abordada num banheiro feminino na rodoviária em João Pessoa. Ela havia tomado vários comprimidos e estava grogue quando foi encontrada, sendo levada para um pronto-socorro e depois para casa. A família se preocupava muito mais com o ato do que com o lado singular e sensível da minha tia. Anos depois ela desapareceu e até hoje não temos mais notícias da minha Tia Isabel. Prefiro pensar que ela quis se libertar do seio patriarcal/opressor da família e decidiu, no lugar do suicídio, flanar pelo mundo. Todos falam sobre a minha tia, mas ninguém vai na ferida, pois ir até esse lugar demanda uma análise profunda dos domínios diversos naquilo que pode habitar as cercanias da ideação e do ato suicida: opressão familiar, fundamentalismo religioso, sexualidade, violência doméstica, abuso, drogadição, etc. 

Já adulto revejo o fenômeno pelas vias psicanalíticas em que, nalgum lugar da pessoa que se mata, há um sujeito que sendo atravessado por um desejo inabalável de morrer, não sabe ou não quer saber que o desejo maior é matar o que lhe está matando. E o que lhe está matando? Talvez um desejo muito grande de viver, realizar desejos que julga ou julgam proibido, ou, a sua impossibilidade de lhe dar com a pouca resiliência ante as frustrações. A psicanálise nos traz uma consistência muito forte para a discussão e o encaminhamento de possíveis formas de encararmos o fenômeno. 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Ainda, a partir da condição do homem no mundo indissociável da angústia, do sofrimento e da morte como escrutínio, as discussões existencialistas nos ajudam, também, a entender melhor o fenômeno do suicídio. O suicídio seria como uma avaliação equivocada da existência surgindo como a evidência de um hiato temporal e espacial, em que o gesto de matar a si mesmo aparece como manifestação de uma revolta cuja efetivação poderia se dar contra a sociedade ou a favor de uma causa. 

A psicanálise e as filosofias existencialistas não dão conta da totalidade do fenômeno, mas nos ajudam a pautar a discussão, assim como a sociologia e outros saberes instituídos que se aglomeram quando acessamos realmente um querer saber sobre o suicídio. 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

O que, realmente, podemos falar sobre o suicídio é a maneira como estamos recebendo esse fenômeno. Matamos pela segunda vez a pessoa que comete o ato quando reduzimos a pessoa ao lugar baixo, ignóbil. A reboque disso, os familiares se sentem constrangidos e não conseguem, na maior parte dos casos, elaborar um luto que por sua condição se anuncia complexo. Os familiares são instados entre eles mesmos a conviver com perguntas e respostas que ao longo do tempo ou são silenciadas, racionalizadas, ou reduzidas aos espaços das interpretações doutrinárias. 

Estamos no mês que no âmbito da Saúde denominamos de setembro Amarelo. Assim é o mês em que usamos para discutir a questão do suicídio em nossa Sociedade. Uma sociedade cada vez mais excludente e muito avessa ao cuidado para com o outro. Uma sociedade que anda matando e inaugura outras formas que submetem as pessoas a novas formas e circunstancias de matar a si mesmo. Seria, no momento, alargarmos o estatuto do suicídio para uma relação como o modus operandi capitalista. Vidas que vão perdendo a sua potência vital porque se sentem e se ressentem em não acompanhar os espaços cada vez mais velozes da imagem em suas condições artificiais que se mostram aparentemente perfeitas: apareço logo existo, disse o filósofo Bauman. 

Temos nas dimensões epidemiológicas números cada vez maiores de jovens e até mesmo crianças que se matam. A questão não é dizer que o mundo digital simplesmente mata, mas o quão dispara em todos nós uma impossibilidade de convivermos adequadamente com o diálogo e com vida fora dos ditames cuja natureza é 4k. Penso numa forma de usar essa discussão a nosso favor, ou seja, produzir formas de matar o que está nos matando e então buscar um jeito de viver associado a uma avaliação da existência submetida à vida. 

Quando operamos na natureza 4k, nossa vida é perfeita até no momento que somos cancelados ou mesmo não aceitamos uma crítica ou somos mal interpretados em nossas colocações. Nesse sentido, a vida, enquanto 4K, vai nos revelar sempre com uma cenografia impressa por cenários, rostos, palavras, imagens perfeitas. Lá fora, a vida nos revela as imperfeições diante das lutas de classes, do dissenso e das metáforas. Quando essa vida irrompe, o digital não dá conta e a vida se insinua como insuportável. Numa sociedade endividada, matar a vida digital por alguns momentos durante o dia é um exercício revolucionário, assim como fazer atividade físicas sem os gadgets acoplados ao nosso corpo, demarcando as calorias gastas e o tempo executado das tarefas físicas. Se aparecer é existir para nossa sociedade como elemento fundante, acredito que fazer desaparecer o que nos faz necessitar tanto aparecer é ato revolucionário. 

Matar o que está nos matando também nos põe numa micropolítica. Há escolhas que fazemos que determinam as mortes dos outros e as nossas próprias mortes. Não houve imagem tão nefasta neste sete de setembro do que ver uma pessoa vulnerável ao chão diante do gado bolsonarista passando ao lado. Vivemos sob a égide neofacista e isso ocasiona o enfraquecimento da nossa sociedade. Conseqüentemente disparamos em nós os dispositivos psíquicos e existenciais que estão adormecidos, e quando acordados querer matar a si mesmo segue a lógica mortífera do Deus Thanatos que habita em todos. Por enquanto, Eros anda perdendo. Nunca escutei tanto entre amigos a frase: “queria desaparecer daqui”. Um querer desaparecer do Brasil porque estamos vivendo a sensação de abandono, insegurança, não reconhecimento, opressão, tristeza, vilanias. 

Imagino que, no espaço individual, meu amigo Marcos tinha lá suas razões intrínsecas e os seus acidentes afetivos que anunciavam a morte como um grande acontecimento. A morte é realmente, como diz Heidegger, nossa última novidade, se impondo de forma inefável enquanto avesso da vida. O avesso, acredito, não se antecipa quando há vida ainda por viver. Nesse sentido, estamos antecipando a vida de muita gente e levando-as ao suicídio. Somos responsáveis pela morte dos outros quando compactuamos com preconceitos de raças, regiões, religiões, gêneros, etnias e tantas outras formas de segregação. 

Por isso, setembro é um mês, que sendo amarelo, nos põe o alerta para trazermos à baila o fenômeno suicídio, trazermos também o alerta quanto aos discursos de ódio que provocam a morte dos outros, senão nossa própria morte. 

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247,apoie por Pix,inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Cortes 247

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO