Setembro amarelo: um viés sociopolítico
Na lógica neoliberal, o setembro amarelo não pode se restringir à saúde mental, mas precisa denunciar um sistema que produz sofrimento
A campanha nacional de conscientização e prevenção ao suicídio no Brasil, chamada de “setembro amarelo”, foi uma iniciativa da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) em parceria com o Conselho Federal de Medicina, deflagrada em 2014. Embora o tema possa parecer restrito à área da medicina e da saúde em geral, na verdade trata-se de uma questão que envolve fatores multicausais e de complexa interação, uma vez que é também objeto de estudo e reflexão de várias escolas do pensamento, como a filosofia, sociologia, antropologia, psicologia, política e religião.
O conceito etimológico do termo “Setembro Amarelo” remete ao trágico suicídio do jovem Mike Emme (17 anos) em 1994, nos Estados Unidos, tornando-se um símbolo internacional de luta, esperança e apoio, iniciado pelos seus pais, mobilizando e distribuindo fitas amarelas – a cor amarela se refere a um Ford Mustang 1968 comprado, reconstruído, reformado e pintado de amarelo por Mike –, buscando assim conscientizar as pessoas e sensibilizá-las sobre a importância de pedir ajuda, sempre que necessário, nos momentos em que a vida estiver em risco e a desesperança se insinuar no horizonte.
A história do suicídio nos mostra contextos culturais diversos em que o Zeitgeist (‘espírito do tempo’) determinava ética e moralmente o que se entendia por morte voluntária (suicídio), fundamentada desde o livre-arbítrio na Antiguidade, passando pela versão pecaminosa agostiniana, em seguida pela sua negatividade conferida pelo poder médico até a sua subsequente psicopatologização, associando assim o suicídio à loucura.
[...] para os antigos, não existia necessariamente uma pejoração [moral] em relação à morte voluntária (a palavra suicídio vai surgir por volta do século XII, segundo os dados até então disponíveis), o que havia eram formas de se descrever o ato. É principalmente a partir de Agostinho de Hipona (séc. V) que a morte de si passa a ter uma conotação pecaminosa. Posteriormente, ainda na Idade Média, passa a ser compreendida como crime. Ao final da Idade Média, com a separação entre a Coroa e a Igreja, o poder médico passa a ocupar um lugar privilegiado no controle da sociedade, de maneira que, a partir de então, são os ‘médicos’ que definem a negatividade da morte voluntária, deslocando o fenômeno do pecado à patologia e qualificando-o como loucura. [...]. __História do suicídio. Wikipédia. Visto em 13/09/2025.
Em nossa atual sociedade ultraneoliberal capitalista, completamente avessa à inescapável finitude da existência, apegada que está aos valores materiais e à beleza vulgar e efêmera, conforme se vê na gramática virtual das redes sociais e na composição da silhueta das cidades com as suas modernas academias fitness, salões de beleza e clínicas de estética que transformam zumbis em santidades, esbeltos outdoors irradiando o ideal da beleza burguesa estampada, lojas diversas de cosméticos, produtos suspeitos para a calvície e para o emagrecimento, álcool e outras múltiplas drogas, uma verdadeira megaindústria que não cessa de incutir e cultuar a busca do narcisismo desenfreado, em tal contexto, é uma heresia falar de prevenção ao suicídio fora do espectro corporal biológico e divergente do ideal do eu forjado pela lógica litúrgica capitalista.
O que se pode perceber por trás da aparência nas redes sociais, embriagadas pela egolatria narcísica ao extremo, como o aplicativo Instagram, de propriedade do gigantesco conglomerado de tecnologia e mídia social norte-americano Meta Platforms, Inc., são os algoritmos detectores absolutos dos desejos mais secretos dos usuários instagranianos, uma nova tecnologia panóptica hiperliberal – o atual Zeitgeist – que produz, vigia e controla as novas subjetividades humanas a partir de sofisticada “monetização psicocerebral”, conforme análise magistral do filósofo e ensaísta sul-coreano, Byung-Chul Han (66 anos), no livro Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder, Editora Âyiné, 2023, 10ª ed.
Observa-se, então, uma nova religião mercantil contemporânea copulada com o biologismo científico em busca da mais perfeita harmonia na produção de imagens a serem publicadas, divulgadas e que devem ser curtidas como forma de recompensa afetiva.
Dentro desse lócus de paixão ao belo imaginário é fácil perceber reducionismos simplórios em diversas publicações versando sobre a conscientização e a prevenção ao suicídio e a autolesão [prefiro utilizar essa sintagma a automutilação, uma vez que nem sempre haverá mutilação nos atos provocados], ao que parece, o dialeto sazonal obrigatório de inúmeros profissionais psis e coaches de todas as grifes, por vezes tendenciosos e malformados acerca do “setembro amarelo” e da complexidade do fenômeno do suicídio, propagando, de forma biologizada e descontextualizada, que o transtorno psiquiátrico é o determinante principal do autoextermínio – diferente de sofrimento mental que afeta proporcionalmente todos nós –, portanto fazendo crer que a sua etiologia é da ordem neurofisiológica cerebral.
Se assim fosse, caso as agruras da existência humana estivessem contidas no tecido cerebral e nos seus emaranhados eletroquímicos, bastaria a simples regulação da transmissão neuronal nas fendas sinápticas do tecido cerebral nervoso. Não obstante, importante que se diga, o bom uso de psicofármacos é fundamental em muitos casos de sofrimento mental. O que deve ser combatido pelas políticas públicas é a patologização do sofrimento mental em nossa sociedade contemporânea e a sua correlata medicalização – o que é bastante diferente da medicação prescrita de forma ética e responsável –, beneficiando apenas os prescritores profissionais societários da poderosa indústria farmacêutica mundial.
Oportuno se faz aludir aos três principais inimigos do homem descritos pela pena do célebre médico vienense, Sigmund Freud (1856-1939):
O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro. Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito, embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes. __FREUD, S. O mal-estar na civilização. Volume 18. Obras Completas. Imago Editora. 1996.
Assim, é imperativo se atentar para a multiplicidade de fatores que estão associados à “passagem ao ato”: quando o sujeito sai da cena ao buscar a eliminação de sua dor, apagando-se junto a ela; e ao “acting-out”: quando o sujeito entra na cena para endereçar ao Outro a sua dor –, relacionando-se, indubitavelmente, ao terceiro inimigo nomeado por Freud acima: as relações do homem com os outros homens, condição intransponível da existência da nossa civilização fundada por determinantes políticos, sociais e econômicos, contudo herdeira ainda, como se vê no Brasil, do colonialismo predatório eurocêntrico e norte-americano, produtor de sofrimento mental: miséria, desemprego e subemprego, injustiça social; péssima distribuição de renda, previdência social precária, violência e falta de segurança, falta de moradia, fake news como arma política, educação de baixa qualidade dissociada da realidade, corrupção epidêmica, discriminação das minorias: racismo, xenofobia, lgbtqiafobia, gerontofobia, misoginia, aporofobia, psicofobia e outros, fatores produtores de sofrimento mental.
O Brasil ainda é a terra do “jeitinho brasileiro” e do “você sabe com quem está falando!?” – conforme o antropólogo Roberto DaMatta (89 anos), no livro Você sabe com quem está falando? Estudos sobre o autoritarismo brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2020. – escancarando assim o atraso de uma elite oligárquica e seus asseclas rapinadores, há mais de quinhentos anos, surrupiando a riqueza nacional e o bem público social.
Ainda, é imprescindível esclarecer que o sofrimento psíquico singular em nossa sociedade capitalista da alta performance e da correspondente falácia do empreendedorismo competitivo – no qual o êxito é de apenas uma minoria –, dissociado dos fatores políticos, sociais e econômicos ensejadores da alienação, exclusão e do niilismo ressentido, índices concretos que podem culminar na mais gélida desesperança, na profunda tristeza apática crônica, na resignação, logo ofuscando a subjetividade e fazendo naufragar o desejo singular contemplativo da beleza poética do entardecer crepuscular, comprometendo assim as auroras matinais, o que pode levar, sem dúvida, a um quadro reativo de transtorno mental.
Com isso se pode dizer:
[...] que o sofrimento psíquico é algo da ordem da vivência, algo da ordem da existência, todos nós, mais hora ou menos hora, em maior ou em menor intensidade, desenvolvemos sofrimentos psíquicos, o que não é exatamente a mesma coisa no que se refere aos transtornos psiquiátricos. [...]. __O suicídio e os desafios para a psicologia. Conselho Federal de Psicologia (CFP). Brasília, 2013. 1ª Edição. Visto em 13/09/2025.
Dessa forma, talvez não seja razoável dizer que a causalidade principal do suicídio e da autolesão é da ordem do transtorno mental, conforme dados extravagantes, veiculados pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP):
“Sabe-se que praticamente 100% de todos os casos de suicídio estavam relacionados às doenças mentais, principalmente não diagnosticadas ou tratadas incorretamente.” – https://www.setembroamarelo.com/
Também não se trata de dizer que o transtorno mental não esteja associado à multiplicidade de fatores e suas interconexões complexas ao fenômeno do suicídio e da autolesão. Entretanto, ao invés disso, é mais razoável investigar amplamente as verdadeiras causas do transtorno mental, sem priorizar o biologismo cerebral, levando sempre em consideração os seus determinantes políticos, sociais e econômicos em nossa sociedade de indivíduos e de sujeitos singulares.
Abaixo, uma advertência do Conselho Federal de Psicologia (CFP), para reflexão dos psis e coaches distribuidores de lencinhos amarelos em setembro:
A clínica do suicídio é uma clínica do limite, da urgência, da dor psíquica extrema. Suas especificidades devem levar o psicólogo a uma reflexão não apenas sobre sua prática, mas também sobre a técnica e a ética que orientam seu exercício profissional. Diante de sujeitos decididos a morrer por meio de um ato radical como o suicídio, independentemente da abordagem adotada, o psicólogo deve estar advertido de que neste ato a dimensão do sofrimento está sempre presente, mesmo em casos em que não esteja configurado um transtorno mental. __O suicídio e os desafios para a psicologia. Conselho Federal de Psicologia (CFP). Brasília, 2013. 1ª Edição. Visto em 13/09/2025.
Por fim, e não menos importante, é fundamental não desqualificar o ato daqueles que procuram tirar a própria vida e daqueles que conseguem fazê-lo. Assim procedendo, também se estigmatiza esses sujeitos e seus familiares, impondo-lhes mais sofrimento mental. Todavia, lamentavelmente, ainda se vê alguns profissionais de saúde reproduzindo o estigma, regurgitando frases do tipo “da próxima vez pule do último andar”, “enfia a cabeça debaixo de um trem”, demonstrando uma abissal falta de preparo e de qualificação ética mínima para exercer a profissão.
Desde a autolesão provocada até a tentativa consumada do ato, é fundamental o respeito, a seriedade profissional e a responsabilidade de todos com os atingidos pelo suicídio, incluindo seus familiares e pessoas próximas, mantendo a prevenção e o cuidado da posvenção:
[...] com a pessoa que tentou o suicídio e não teve a morte consumada quanto quem está em processo de luto por suicídio (familiares, amigos, etc.), os ‘sobreviventes’ [...]. __Karina O. Fukumitsu. Sobreviventes enlutados por suicídio, da Editora Summus, São Paulo, 2019, p. 22.
Na sociedade capitalista capturada pelo discurso do gozo consumista e pela competição desenfreada, a tristeza e a falta (incompletude) devem ser escondidas, pois o que importa é o sucesso a todo custo, nem que seja aquele imaginariamente forjado nas vitrines das redes sociais, uma vez que não é permitido errar. No entanto, conforme nos adverte o genial psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981): “da carência da falta estrutural que nasce a angústia”, fenômeno humano por excelência. Consequentemente, quando falta a falta ou quando o Outro não a tem, como imposto pela “gramática da perfeição”, o campo do psiquismo torna-se fértil para brotar quadros melancólicos mais acentuados.
Nesse mesmo palco social em que não há lugar para a tristeza, para a falha ou mesmo para a dor, haja vista o processo de subjetivação neoliberal capitalista em curso, impondo o dever do sucesso, fazendo crer que é possível tamponar a falta estrutural de cada um com a oferta de infinitos objetos de consumo, é fundamental compreender que não se pode cumprir as exigências de completude imaginárias advindas do Outro, pois não se trata da falta de objeto, a falta estrutural é da ordem da falta-a-ser (manque-à-être). A esse imperativo de sucesso ao qual todos devem se submeter nessa sociedade doente, o sofrimento mental é o destino.
Por isso, faz-se necessário denunciar continuamente esse modelo social perverso, injusto e letal. Talvez, ao invés de atentar contra si mesmo, num ato solitário, com um enorme dispêndio de energia psíquica, por que não se tentar investir, de forma coletiva, em forma de protesto e apelo, na busca de uma sociedade mais solidária e distributiva? É preciso vislumbrar que “um outro mundo é possível” aqui na Terra. Essa deveria ser a aposta em ato.
Enfim, “setembro amarelo” deve ser todos os dias do ano, da vida, não apenas uma campanha anual, mas um programa permanente. Enquanto a civilização flertar com a barbárie, pedir ajuda é crucial, ainda temos bons profissionais e pessoas humanas sobre a Terra.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

