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Rogério Puerta

Engenheiro agrônomo, atuou por doze anos na Amazônia brasileira em projetos socioambientais. Atuou em assentamentos da reforma agrária no Distrito Federal por dez anos e atualmente vive em São Paulo imerso em paixões inadiáveis: música e literatura. Escreveu diversos livros

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Seu sangue derramado num protesto de rua

O cheiro na faixa política com seu sangue coagulado já escuro. Você se lembra de odores na infância, tantos deles, tão marcantes.

(Foto: Diário da Causa Operária)
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Vale a pena tanto sofrimento, tanta dor? Você está com o corpo todo dolorido, os ombros lhe pesam, nas nádegas uma queimação insuportável decorrente do forte impacto de um cassetete da polícia. O sangue seu na faixa de partido político já está um pouco amarronzado, nesta ainda o cheiro de spray de pimenta, forte, tanto que supera o odor do gás lacrimogênio.

Preocupação adicional, o spray de pimenta aos olhos poderá ter-lhe ocasionado um princípio de descolamento de retina, você que já tem os olhos enfermos e frágeis. Fixação em pensamentos agitados de doença e dor, a mente passa a funcionar inundada em trevas e pessimismo, um mau sinal, o pessimismo, a vista escurecida.

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O cheiro na faixa política com seu sangue coagulado já escuro. Você se lembra de odores na infância, tantos deles, tão marcantes, o cheiro único da metalúrgica, uma fundição no bairro de nascença, a goiabeira da casa do avô goiano. O enjoo incômodo que você carrega no ventre até hoje, até a idade adulta, após exagerar na festa infantil de aniversário do primo, copos e copos de uma groselha artificial horrível. Até hoje lhe revira o ventre apenas pensar naquele cheiro artificial e na cor forte de anilina química.

Aromas, gravações indeléveis ao cérebro. Graciliano Ramos, em noitadas literárias e políticas regadas a café e conhaque, tinha por hábito deitar açúcar no mármore da mesa do bar, aproximar a ponta do cigarro e carbonizar os cristais açucarados, buscando com isso um cheiro agradável de engenho e melaço, o contexto de Alagoas em suas recordações pretéritas de infância.

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A faixa que você ostentou com tanto orgulho, com coragem, a exibiu na avenida, na manifestação convocada pelas centrais sindicais. Em troca conheceu novos colegas, camaradas interessantes, e também apanhou muito da Tropa de Choque da PM. Vieram do nada, com cães, escudos e aquelas proteções de corpo, pretas, coisas de jogador de hóquei. Vieram como se os manifestantes fossem todos assassinos em flagrante cometimento de sadismos sanguinários.

Trabalheira enorme ir aos protestos, energia e tempo despendidos, riscos inúmeros, muito ruído que fica na cabeça por 24 horas e incomoda à noite. Um comportamento social bem mais aconselhável aos jovens, que rápido se recuperam do desgaste e das dores físicas do evento, que às vezes até se divertem mediante a ousadia e ineditismo vivenciados. Para um estudante de Ciências Políticas, Relações Internacionais, é tal qual um diploma orgulhoso emoldurável em parede do quarto de casa, uma honra histórica ao exibir um recorte de papel-jornal com a foto comprovante de participação em protesto do dia tal no local tal. Foto de primeira página.

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Restou o cheiro, o odor, seja ele incômodo ou não, mesmo assim será a recordação, aquilo que ficará gravado indelével em mente, ao cérebro. Bem capaz esquecer nos próximos anos, bom assim, uma defesa, a mente que procura apagar temporariamente algo ruim, o sofrimento, higienizar, para com isso não entrar em colapso. Momentos de acidentes graves e traumas agudos quando o acometido em nada consegue se recordar. Estratégia sábia de nosso cérebro evoluído.

O cheiro do lacrimogênio superado pelo da pimenta infesta sua roupa, a pele também, cabelos, necessário um banho quente demorado, cuidado, evitar água quente dentro dos olhos. Temor, apreensão, pessimismo, algum dano mais sério provável na retina, já debilitada desde anos em decorrência de diabetes. Pensar positivo, necessário, questão de sobrevivência, pensar na mulher extraordinária que conheceu na manifestação de rua.

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Você um sensível, dificilmente se engana, geralmente enxerga além do que há nos meros olhos físicos das pessoas. Sim, ela lhe pareceu especial, quase a sua idade, bonita, diferente, negra, exalando cheiro de saúde, o hálito que você bem conhece. Hálito de atletas, você adora, alguns estranham, é meio forte, o hálito sabe-se lá do que, exalado por uma boca morna, saudável, muito diferente de outros hálitos insalubres, de gastrites, saburra lingual, de desleixo em higiene bucal, tão comuns e que aprendemos a relevar.

Sim, pensar positivo, ainda a encontrará, ambos apanharam muito, ela também, mulher, os PMs nem diferenciaram, nem olharam pra frente, dó de nada nem de ninguém, afinal quem traja vermelho só pode ser um sádico assassino em flagrante ato com faca oculta sob a bandeira vermelha de partido político.

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Aroma, cheiro, fragrância. Há algo de muito especial. Seu pai idoso pós-derrame cerebral acurou o olfato centenas de vezes mais. O médico explicou, algo do sistema nervoso. Dizem que sangue tem cheiro, você nunca notou, nem mesmo o fresco, recente, ou o já passado, coagulado. Enfermeiros talvez notem, o convívio com quantidades frescas bem maiores.

Não é tão comum que as pessoas sangrem, salvo aquelas de rotinas afins, atletas, ajudantes de obras, trabalhadores braçais em geral. Sangrar numa manifestação pacífica de rua não é comum, mas caso confronto houve, talvez se explique. A PM veio disciplinando e impondo local de permanência dos manifestantes, sequer negociou, se negociou foram dois minutos e depois meteu gás de pimenta no povo. Aí tumultuou, óbvio, gente caiu no chão, bateu cabeça no asfalto, a cegueira temporária do gás, a dor lancinante, tontura, o chão foge aos pés nestes momentos.

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Você havia sangrado em passeata uma única vez, tempos atrás, um cassetete que resvalou, nem a você foi direcionado, mas resvalou e lhe raspou as costas. Mesmo de camiseta fez um pequeno risco nas costas com algum sangue que porejou nos primeiros minutos. E foi só. Até então.

Agora foi bem pior, seu sangue ficou na faixa de partido político, pouco até, a maior parte caiu ao asfalto quente da avenida, lá ficou, a se fotografar, pois foi sangue inocente, você acredita não tê-lo merecido. Mas o provável é que para aquele PM raivoso você não era, nem nunca foi, um sujeito minimamente inocente. Isto lhe chama a atenção, seu tio era PM, um doce de pessoa, até lhe parecia meio efeminado, você chegou a visitá-lo no batalhão uma vez, ele tinha a mesma forma de falar, o mesmo comportamento em todo lugar, muito improvável ser ele um monstro vindo de um médico após a cinematográfica transformação anticientífica. Não lhe parecia médico e monstro juntos.

Dificílima rotina a dos PMs. Stress constante, sobrecarga física e mental juntas, talvez dentre as profissões mais difíceis. Muito diferente o que ocorre, por exemplo, com um militar estadunidense em guerra, que deve sobreviver em meio ao fogo cruzado, outras regras, outros convívios. Um PM brasileiro deve interagir obrigatoriamente com sua própria Nação, seu povo. PM raivoso, supõe-se, é um PM com viés neofascista, tenha ele consciência disso ou não. Há policiais antifascistas, ultracorajosos, imensas saudações!

Desta vez foi um bocado de sangue, havia tempos não notava o quanto um ferimento no pé incomoda e é tão preocupante. Lateja, palpita forte, um sangue escuro, dizem que o escuro é o mais interno do organismo. Bem provável que em guerras se saiba de ambos os lados que ferir o pé do inimigo o tira de combate na hora. Um pé sangrando que não pode parar de marchar e de sustentar o peso do próprio corpo adicionado aos mantimentos que carrega é um seríssimo risco de hemorragia e morte.

No protesto de rua foi um acontecimento inusitado. Seu tênis não era exatamente apertado, nem folgado, mas após tanto caminhar o cadarço deve ter afrouxado um pouco. No meio de um empurra-empurra, após o avanço da Tropa de Choque da PM, alguém, ou você mesmo, esbarrou no tênis, de cima para baixo, o que foi certeiro para descalçá-lo de um dos pés.

Meia branca fina no asfalto logo virou cinza, uma peça do tênis sumiu, já era, você seguiu caminhando até uma calçada, das de pedras encaixadas uma a uma, brancas e pretas, comuns em cidades de São Paulo, pedras pontiagudas do tamanho de um sabão em barra que apresentam frestas entre si assentadas no calçamento público.

Descalço, mesmo com meia fina, pisando brusco acima do pavimento, de mau jeito no empurra-empurra, foi inevitável um corte num dos pés, próximo ao calcanhar, e nem superficial foi, um corte relativamente profundo, que foi se ampliando e deixando esvair mais sangue escuro à medida que aumentava a temperatura do seu corpo tenso e a intensidade de seu pisar em fuga irregular.

O que havia à mão. A faixa de partido político, de jeito algum iria querer aparecer como um mártir do protesto, isso ocorreria caso usasse a camiseta que vestia para tentar estancar o sangue. Seria uma cena fotográfica, intensa, pipocaria gente assustada ao seu redor, todo fotógrafo não perderia a oportunidade e seria enorme a chance de sua foto com camiseta empapada em sangue estampar até mesmo as notícias de agências internacionais.

E foi um bocado de sangue mesmo, ficou no asfalto quente, a faixa ficou bem manchada, não chamou ainda mais a atenção devido à correspondência entre cores, portanto devido à ausência de tanto contraste. Vermelho que une a todos e todas, nosso sangue não é azul não. O vermelho do sangue, o branco dos olhos e as caveiras que viraremos. Somos o mesmo.

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