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      Rita Cristina de Oliveira

      Defensora Pública Federal, mestre em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná e ex-secretária executiva do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania

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      Sexo e Supremacia Racial: uma combinação histórica

      Os padrões sexistas da cultura do cancelamento de hoje aliada ao chamado feminismo mainstream dispensam garantias processuais civilizatórias

      Mulheres supremacistas agredindo verbalmente a única jovem, entre os estudantes recém integrados, Elizabeth Eckford, na Central High School, de Little Rock (Foto: Arquivo)

      É aguardada para 2027 a divulgação dos arquivos das atividades de espionagem do FBI (Federal Bureau of Investigation) sobre Martin Luther King Jr., quando seu assassinato fará 59 anos. Os registros vieram à tona com a busca dos arquivos sobre a morte de J. F. Kennedy, assassinado em 1963, e são alvos de polêmica sobre a veracidade das informações contidas em relatórios de agentes que, a mando de Edgar Hoover, teriam promovido uma perseguição destinada a destruir a reputação do líder do movimento dos direitos civis. King era então considerado o “o preto mais perigoso do futuro nesta nação, do ponto de vista do comunismo e da segurança nacional”, como apontou um dos memorandos do FBI.

      O órgão federal não obtivera muito sucesso em apontar atividades e envolvimentos de Luther King com o Partido Comunista, mas desconfiava da relação de amizade de King com o advogado e empresário branco Stanley Levison, ativista socialista a quem era atribuído histórico de envolvimento com o partido. 

      Registros já conhecidos apontam que os relatórios de Hoover serviram para que este promovesse à época uma verdadeira caçada para arruinar a credibilidade de King. Em uma primeira investida, Hoover chamou uma coletiva de jornalistas mulheres para anunciar que King seria “o mentiroso mais notório dos EUA”. Depois passou a investir em diversos vazamentos seletivos de informações à imprensa e em comunicações a dirigentes acadêmicos com vistas a impedir premiações a King. Os agentes de Hoover estimaram em um dos memorandos que as investidas fariam “reinar uma grande confusão...os pretos ficarão sem um líder nacional de personalidade envolvente o bastante para guiá-los na direção adequada”, não disfarçando as intenções dos conteúdos produzidos.

      Os encarregados de Hoover entenderam que atingir a moral de Luther King se apresentava como uma estratégia melhor do que insistir no envolvimento comunista, porque King era tido como um líder carismático e cuja reputação era o capital mais precioso. Apesar disso, os planos de Hoover terminaram frustrados, em parte pela baixa adesão da imprensa às suas investidas, já que o FBI não trazia denúncias formais e muitos jornalistas eram antipáticos aos agentes do FBI, e de outra, porque havia pouca disposição do Presidente Lyndon Johnson em se valer dos relatórios, pois via em King um aliado útil para seu projeto pessoal de expansão política no Sul dos Estados Unidos. King mesmo sabendo das atividades de espionagem de Hoover e atendendo em parte aos pedidos de Johnson quanto às negociações com o movimento dos direitos civis, nunca levou ao Presidente a preocupação que aquelas atividades do FBI lhe causaram até sua morte, demonstrando sempre seu compromisso estrito com as pautas coletivas do movimento dos direitos civis.

      Coretta King, esposa de Martin, foi a primeira pessoa a receber informações do FBI sobre supostas orgias sexuais de seu marido, narradas em uma carta cujo remetente fora disfarçado como um militante anônimo do movimento. O mais perigoso dos relatórios com gravações do FBI daria conta até de uma suposta participação passiva de King em um estupro cometido por um outro pastor. Coretta durante toda a vida encarou essas investidas como manipulações políticas para destruir King e levá-lo ao suicídio, aliás, não é a outra conclusão que se extrai da carta que enunciava a king “só resta uma coisa a fazer, você sabe o que é e tem apenas 34 dias. Você está acabado. Melhor que você vá por ela antes que sua identidade fraudulenta anormal, imunda, seja desnudada para a nação”.

      Hoover era um supremacista, criado a mão de ferro por uma mãe sexista e igualmente supremacista. Desde jovem, ele colocou toda sua empáfia e índole fascista à disposição da construção do FBI que moldou a imagem da cidadania americana e a sua relação moral com o restante do mundo. 

      A supremacia racial sempre se ancorou no sexismo dentro do sistema capitalista patriarcal, daí porque bell hooks escreveu de forma bastante direta em O Feminismo é para todo mundo que há um problema histórico no feminismo ao não encarar honestamente como o racismo moldou e influenciou a prática e teoria feministas. 

      Para hooks, mulheres podem ser tão ou mais sexistas do que homens, como quando aderem a políticas e estratagemas racistas. Ao analisar a trajetória histórica dos debates feministas, hooks propôs caminhos para a construção de uma política feminista realmente antissexista, o que para tanto está a exigir antes um profundo processo de autocrítica sobre o comportamento sexista e racista das mulheres.

      Esse debate exige abordar muitas nuances, mas entre as que mais foram alvo de desconfianças por parte do movimento de mulheres negras está o envolvimento histórico de mulheres brancas com a supremacia racial, que contribuiu de forma determinante para o desprezo e marginalização dos direitos e dos corpos de pessoas negras.

      Feministas negras como hooks, Angela Davis, Kimberlé Crenshaw, Ida Bells, entre outras gigantes históricas, foram bastante enfáticas em colocar à prova o feminismo de mulheres brancas supostamente progressistas a partir de seu histórico envolvimento com o racismo quando foi convenientemente oportuno na trajetória de suas demandas por direitos alegadamente para todas as mulheres.

      Nenhuma pesquisa foi tão acurada quanto a feita por Rebecca Brückmann acerca dos comportamentos, violentos e manipuladores, de mulheres brancas em defesa da supremacia racial, em Massive Resistance and Southern Womanhood: White women, class and segregation. Brückman fez um detalhado estudo sobre o comportamento das mulheres brancas do Sul dos Estados Unidos junto ao movimento de Resistência Massiva contra a política de dessegregação escolar, em implementação a partir do caso Brown v. Board Education of Topeka (1954).

      Brückmann expôs que mulheres brancas foram absolutamente venais, violentas, conscientes e articuladoras políticas em favor do que consideravam uma grande ameaça ao privilégio branco que compartilhavam com homens brancos e que durante tal processo de resistência superaram padrões de gênero, dificuldades institucionais, utilizaram estratagemas midiáticos e foram extremamente agressivas, inclusive com crianças e adolescentes, negras e brancas.

      Essas mulheres se valeram dos padrões sexistas enraizados para ostentar seu medo da miscigenação e produzir pânico moral em face da dessegregação escolar, quando em larga medida estavam preocupadas em defender seus privilégios de classe no acesso à educação pública e, de certa forma, atingir dividendos políticos, além de atrasos impactantes no acesso da população negra à educação e vantagens na construção de outras formas de segregação baseadas na condição de classe.

      Foram os padrões sexistas do cristianismo que moldaram a visão animalesca dos ocidentais sobre as pessoas africanas. David Friedman, conta em Uma Mente Própria: a História Cultural do Pênis, que ainda no século V, antes mesmo da construção ideológica da maldição de Cam, um teólogo cristão, John Cassian, descrevera “a tentação sexual como uma mulher negra fétida e feia” e que mil anos depois quase toda mulher europeia queimada na fogueira por ter relações com o Diabo descreveu seu pênis como preto. O sexismo está indelevelmente na origem da Ku klux klan e na base de toda sua história de violência extrema.

      A história dos linchamentos nos EUA não deixa dúvidas que o sexismo e o racismo foram amalgamados para seguir destituindo a humanidade de homens e mulheres negras livres. Segundo Angela Davis para cada estuprador negro existira uma mulher negra lasciva igualmente perigosa. E antes mesmo que os homens negros fossem rotulados como estupradores perigosos, as mulheres negras eram as “hotentotes” de maridos orangotangos, mulheres sem dor, inumanas, com vulvas hipertrofiadas e nádegas protuberantes, como descreveram anatomistas do século XVIII e XIX.

      A história do litígio de Anitta Hill v. Clarence Thomas (1991), em razão do comportamento sexual do então juiz indicado à Suprema Corte norte-americana, ilustrou um imbricamento entre sexismo e racismo em que a construção do estereótipo racialmente predador do magistrado negro pela acusação de sua assistente negra fez com que os julgadores se defrontassem com o trauma sexual americano dos linchamentos de homens negros. Anitta Hill acabou levando a pior, ao ser aproximada de mulheres brancas histéricas diante de um pênis negro. 

      Segundo a análise de hooks, feministas brancas colocaram Hill num lugar tradicional de martírio e masoquismo enaltecendo sua fragilidade por não ter denunciado Thomas na primeira ocasião em que houve assédio, o que comprometeu sua credibilidade e ofereceu às pessoas brancas um espetáculo sexista em que tiveram que lidar com raça e gênero, sem precisar confrontar verdadeiramente o sexismo institucional do sistema patriarcal branco. 

      Rosa Parks, que deflagrou o movimento contra a segregação nos transportes nos EUA, reconheceu que se sentiu compelida a resistir naquele fatídico dia em que não cedeu seu lugar no ônibus depois que ouviu em uma pregação do pastor Luther King o relato de um médico sobre o linchamento do adolescente de 14 anos Emmet Till, acusado injustamente de importunar sexualmente uma mulher branca e que foi brutalmente torturado e assassinado em agosto de 1955.

      Mamie Till, mãe de Emmet, confrontou a moral norte-americana ao exibir o corpo de seu filho completamente desfigurado em um funeral de caixão aberto para que todos vissem o tamanho da crueldade branca diante da ameaça sexista que havia sido historicamente construída sobre homens e meninos negros. A acusadora branca de Till, Carolyn Bryan Donham, morreu em 2023, não antes de ser flagrada por um jornalista confessando que mentiu sobre as acusações. Bryan levou ao júri um relato detalhado de como Till a havia importunado e até tentado agarrá-la no interior de seu pequeno comércio. Mamie Till sempre que questionada sobre o que seu filho poderia ter feito para sofrer tamanha violência, foi enfática em dizer: “não importa o que ele tenha feito, ele não merecia o que fizeram com ele”. Após a absolvição dos assassinos de Till, Mamie lutou até sua morte pelos direitos civis nos EUA e pelo fim dos linchamentos. Somente em 2022, o Presidente Joe Biden sancionou a lei “Emmet Till” que proibiu formalmente os linchamentos raciais nos EUA, tornando-os crimes federais.

      Os padrões sexistas da cultura do cancelamento de hoje aliada ao chamado feminismo mainstream, que tal como os linchamentos e as perseguições do FBI dispensam garantias processuais civilizatórias, estão aptos a condenar Luther King como “maior mentiroso da história”, ao desejo de Hoover. Todavia, muitas mulheres negras norte-americanas já vêm se antecipando em descredibilizar os conteúdos desses relatórios contra o líder do movimento dos direitos civis, pois não pretendem renunciar à sua importância histórica para fazer julgamentos morais com base em documentos duvidosos, enviesados e persecutórios. 

      Essas mulheres não estão em aliança para salvaguardar a memória da masculinidade de King, mas com a força de tantas outras que nunca foram privilegiadas pelo gênero na luta contra a opressão racial e foram vítimas do mais perverso sexismo racista do sistema patriarcal branco, como Rosa Parks, Mamie Till e Coretta King, que sempre souberam que lutar contra o sexismo passa antes de tudo por entender que ele moldou a destituição da humanidade de todo um povo marcado pela cor.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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