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Emir Sader

Colunista do 247, Emir Sader é um dos principais sociólogos e cientistas políticos brasileiros

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Shopping center: a utopia do neoliberalismo

O shopping center é, segundo a definição de Beatriz Sarlo, “um simulacro de cidade, em que todos os extremos do urbano foram suprimidos”

Shopping center: a utopia do neoliberalismo (Foto: Reuters/Mark Makela)

Há um espaço que caracteriza, de maneira concentrada, a era neoliberal: o shopping center. Ele é o que a antropologia chama de “não lugar” — um lugar que não tem nem espaço nem tempo. A supermodernidade, segundo Marc Augé, é produtora de não lugares.

Ao se falar de não lugar, faz-se referência a uma espécie de qualidade negativa do lugar, a uma ausência de lugar em si mesmo. Ir a um não lugar é definir uma forma de ser no mundo, de se relacionar com o que se consome e consigo mesmo. O espaço do não lugar não cria nem identidade singular nem relação, mas sim solidão, segundo Augé.

Cria-se um verdadeiro sistema em que uma parte remete à outra, fechando-se sobre si mesma. Decorre disso uma espécie de sistema de um mundo de consumo que todo indivíduo pode assumir como seu, porque é permanentemente interpelado por ele.

O mundo da publicidade globalizada produz uma falsa identidade em cada um. “O outdoor de uma marca de gasolina constitui para ele um sinal tranquilizador, e ele encontra, com alívio, nas gôndolas dos supermercados, os produtos de limpeza ou de comida consagrados pela mídia internacional”, segundo Augé. Reencontrar as marcas que diariamente a propaganda incute na cabeça de cada um dá uma falsa sensação de reencontro consigo mesmo. Topar com agências do Itaú em Buenos Aires ou em outra cidade latino-americana reforça a sensação de que o consumidor não está desamparado, que sempre pode apelar para o gerente do banco em que tem conta.

Nesse sentido, o não lugar é o contrário da utopia — é um território desenraizado, desterritorializado. E uma parte cada vez maior da humanidade vive, cada vez mais, nessa situação de desterritorialidade. “A experiência do não lugar é hoje um componente essencial de toda existência social”, segundo Augé. E ele conclui: “É no anonimato do não lugar que se experimenta solitariamente a comunhão dos destinos humanos.”

Paradoxalmente, os shopping centers promovem um processo de liquidação dos centros urbanos tradicionais das cidades — aqueles territórios com os quais as pessoas costumavam se identificar, assumindo sua identidade de viver naquela cidade. Não por acaso, a cidade-modelo da pós-modernidade é Los Angeles, uma cidade, por definição, sem centro.

As pessoas vão deixando, cada vez mais, seus bairros e circulam sempre mais pela cidade — salvo as que estão obrigadas, diariamente, a percursos enormes para trabalhar longe de onde vivem.

O shopping center é, segundo a definição de Beatriz Sarlo, “um simulacro de cidade, em que todos os extremos do urbano foram suprimidos”: o mau tempo, os ruídos, o claro-escuro, os cartazes de propaganda, os muros pintados — em suma, as marcas da identidade urbana.

O shopping center é o oposto da paisagem urbana dos centros da cidade. Sua proposta é a de “uma cápsula espacial acondicionada pela estética do mercado”. A homogeneidade que esses espaços assumem faz com que sejam todos praticamente iguais, onde quer que estejamos: nos Estados Unidos, na Argentina, no Brasil, na Guatemala ou na África do Sul. Só se diferenciam pela moeda nacional de cada país, pelo idioma falado ou por algum outro detalhe sem maior importância.

A presença constante das marcas globais, de seus logotipos e a uniformidade dos espaços fazem do shopping center “um paraíso ou um pesadelo”, nas palavras de Beatriz Sarlo. O ar está sempre limpo pela reciclagem dos aparelhos de ar-condicionado, a iluminação é funcional, e os circuitos fechados permitem um controle total da circulação das pessoas e de tudo o que acontece, mediante uma central que funciona como um panóptico.

Como em uma nave espacial, é possível realizar no shopping todas as atividades reprodutivas da vida: comer, beber, comprar, ir aos bancos, aos teatros. Faltam apenas maternidade e cemitério para que se possa completar todos os ciclos da vida em seu interior. Como em uma nave espacial, tudo é ordenado para que se perca o sentido de orientação: tudo é tão parecido que é difícil distinguir onde se está, demandando sempre a orientação dos especialistas, das placas, que informam os caminhos, os andares, as escadas rolantes, as lojas, os banheiros, as praças de alimentação.

Tudo está orientado pela estratégia das vendas — de submeter as pessoas, a maior parte do tempo, às tentações das ofertas das lojas. Para se ir de um andar a outro, é preciso cruzar o andar inteiro, com a correspondente exposição de todos os seus comércios. E tudo é comércio. Os únicos espaços gratuitos, até agora, são, por exemplo, os lugares onde as crianças brincam, permitindo que seus pais possam fazer as compras com maior facilidade.

Em Montevidéu, o prédio que foi a penitenciária de Punta Carretas, que abrigou milhares de militantes presos e torturados na luta contra a ditadura, manteve sua fachada, mas se tornou um shopping center. Como se, no capitalismo, o oposto da prisão não fosse, por exemplo, um centro cultural, mas sim um espaço de liberdade de compra, em que as lojas globalizadas ocupam os espaços das celas dos prisioneiros e dos lugares de interrogatórios e torturas.

Como uma cápsula, o shopping center tem uma relação de indiferença, de desconhecimento da cidade que o rodeia. Embora seu espaço exterior possa ser uma favela, uma autopista ou qualquer outro espaço urbano, o shopping é totalmente alheio a tudo isso. Ele representa uma ruptura em relação à cidade, da qual desaparece totalmente a geografia urbana, com todas as suas dimensões sociais. Está protegido de tudo o que acontece no seu exterior.

Os shopping centers, como expressões típicas dos não lugares, não costumam ter nem relógios nem janelas, como que para abolir o tempo e o espaço: “O dia e a noite não se diferenciam; o tempo não passa, ou o tempo que passa é um tempo sem qualidades”, segundo Beatriz Sarlo. “A cidade não existe para o shopping, que foi construído para substituir a cidade”, afirma ela.

Daí o esquecimento de tudo o que o cerca. Sua própria construção é o oposto da construção de um bairro ou de uma cidade — pouco a pouco, casa a casa, rua a rua, praça a praça. A construção do shopping é um parto sem gravidez: sai da prancha de quem o projeta diretamente para a realidade. Ele irrompe em um lugar determinado como se tivesse caído do céu, sem história, sem vínculo algum com o lugar em que aterrizou. Importa o público consumidor que vai frequentá-lo e impor os estilos de consumo em um vazio absoluto de memória urbana.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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