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Paulo Calmon Nogueira da Gama

Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio

6 artigos

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Sim, foi golpe!

O País, os eleitores, a Democracia – e não somente Dilma Rousseff – merecem respeito, merecem reparação. Quem tem memória não repete o erro!

Presidente Dilma Rousseff na tribuna do Senado durante o Golpe de 2016 (Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado)
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Basta uma impopularidade aferida por deus-sabe-quem, um solavanco na economia e pimba!: a maioria vitaminada do parlamento pode apear o governante. E “dentro das quatro linhas”, diria algum cadáver insepulto por aí...

Como já se disse, “a verdade adoece, mas prevalece”. Dilma Rousseff, presidenta eleita democrática e legitimamente para um mandato de 4 anos, foi afastada do governo por um golpe parlamentar-midiático.

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Sim, foi golpe. E ponto.

O sistema de governo previsto na Constituição Federal, que nos acompanha desde a instauração da República, é o presidencialismo.

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Esse sistema, aliás, foi reafirmado diretamente pela vontade popular, no plebiscito realizado em 21 de abril de 1993: em termos de votos válidos, 2 em cada 3 votantes escolheram o presidencialismo.

Por isso, ao contrário do sistema parlamentar, somente excepcionalissimamente –ilícitos graves, invalidez – um governante pode ser apeado do governo antes de expirado o mandato que o povo lhe outorgou.

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A ansiedade de uma elite midiática e econômica, insatisfeita com o governante de ocasião, definitivamente não legitima seja abreviada a troca democrática dos governantes, antes do prazo constitucional. Tampouco a urdidura de políticos que, maus perdedores, não aceitam a derrota nas urnas. Nem mesmo manifestações públicas de parcela da população legitimam esbulho ao calendário eleitoral.

Esse tipo de concertação golpista, infelizmente, ainda encontra algum campo fértil no Brasil – onde falha a memória, floresce a reiteração no erro –, ainda que isso importe em risco ao Estado Democrático de Direito e em adubo a pulsões fascitoides ou ditatoriais.

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O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), em recente julgamento (amplamente divulgado pela imprensa nos últimos dias), ainda que involuntariamente, desnudou a falácia-rei e colocou uma pá de cal na discussão: houve, sim, um golpe de Estado em 2016.

Sim, foi golpe.

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E o que parte da grande imprensa não informou é que a ação por improbidade quanto ao mesmíssimo mecanismo fiscal (“pedalada”) que gerou o “impeachment” não passou sequer no juízo prelibatório do TRF1. Sempre pinçando seus “especialistas de estimação”, deixou-se de escrutinar aspecto relevante, senão essencial, do julgado absolutório.

Nessa ação, o MPF (Ministério Público Federal) imputava prática de improbidade administrativa à presidenta Dilma Rousseff, ao ex-ministro da Fazenda Guido Mantega, ao ex-presidente do Banco do Brasil Aldemir Bendine, o ex-presidente do BNDES Luciano Coutinho e ao ex-secretário do Tesouro Arno Augustin. A ação foi arquivada em relação a todos eles, mesmos aqueles não sujeitos a apuração de crime de responsabilidade.

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A lei do “impeachment” (Lei n. 1.79/50), utilizada para apear Dilma, eleva à categoria de crime de responsabilidade os atos de improbidade do mandatário: Art. 4º São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra: (...) V - A probidade na administração.

A decisão de arquivamento do TRF1, a seu turno, afastou peremptoriamente a possibilidade de o ato em questão revelar-se improbidade administrativa, ficando expresso que não haveria “conduta ilícita”, sem qualquer indicativo de atuação dolosa por parte dos envolvidos, de todos os envolvidos. O óbvio, embora constrangedor para alguns, foi desinfetado à luz do sol.

Retrocedendo o filme, é fácil perceber esse filtro prelibatório (que atua antes mesmo de se chegar ao mérito) que funcionou no julgamento do TRF1 deixou deliberadamente de funcionar no julgamento do impeachment. O estrago disso decorrente foi enorme.

Fraturou-se o Estado de Direito e criou-se um monstro. Que chocou monstrinhos. Ou monstrões.

O País suporta, ainda hoje, um verdadeiro desprezo à Democracia – por ruidosa e raivosa parcela da população –, em grande medida fruto dessa fratura exposta.

O fato é que hoje, a partir da decisão do TRF1, tem-se judicialmente declarado, decidido e desenhado é que o impeachment de Dilma foi golpe.

Sim, foi golpe.

O mundo inteiro sempre soube disso. Só quem não admite, ainda, coincidentemente, são os principais patrocinadores do golpe. Fingem não ver que sua calça de veludo está toda puída e o bumbum de fora.

Os que ainda mantinham alguma dúvida honesta, após essa última decisão judicial noticiada, só seguem a negar o golpe por constrangimento envergonhando, teimosia conveniente ou voluntarismo mimado. Uns, os patrocinadores do golpe, também sob o tempero de inconfessos propósitos escusos. Levianamente desconsideram, outra vez, os efeitos colaterais deletérios desse trágico negacionismo.

Os patrocinadores do golpe, aliás, sempre se escudaram em seguidas e mutáveis falácias, que, uma após outra, vêm se degenerando qualitativamente. A ponto de atingir, hoje, o nível bisonho do esperneio.

Agora, a grande mídia corporativa deixou até mesmo de invocar as “pedaladas fiscais”, motivação formal do processo de impedimento. Baralha-se deliberadamente problemas na economia e perda de sustentação política e popular (que eles próprios ajudaram a cevar) com motivação para perda do cargo eletivo.

A mais nova e frágil falácia justificante do golpe consegue ser a mais rasteira de todas.

Os requisitos que legitimariam o que deveria ser excepcional vão sendo esquecidos, transformando-o em regra. Sem pudor ou rubor.

No início, meados da década passada, para justificar o injustificável, dizia-se simplesmente: “o impeachment ‘tá’ na Constituição! Não é golpe...”.

Mas ao serem lembrados que a pena de morte, o confisco, a violabilidade do lar –excepcionalidades que exigem requisitos e condições especialíssimos – também “tão” na Constituição, o argumento “genial” foi sendo abandonado. Era quase instintivo que qualquer instituto-exceção (“anti-instituto”) não admitia ter seu santo nome tomado em vão...

Sim, foi golpe.

A segunda grande falácia negacionista do golpe referia-se a reduzir todo o processo ao ato de julgar: “o impeachment é um processo político, não precisa ter base jurídica”.

A mídia e os políticos golpistas, com isso, reescreviam a Constituição. Instituíam na marra um parlamentarismo de playground. Se houver perda de sustentação parlamentar, se pesquisas indicarem perda de popularidade do mandatário e se a economia estiver em dificuldade... “bora lá” apear o Presidente da República!

O mandato eleitoral quadrienal passa a ser mero detalhe. A eleição, outro mero detalhe. Probabilidades e estatísticas derivadas de uma pesquisa momentânea de popularidade (de “institutos confiáveis”) valem mais que a eleição geral na data prevista pela cartinha magna (não é verdade esse “bilete”!). Pouco importa a captação oficial pelo TSE da vontade real dos milhões de eleitores. São detalhes constrangedores, mas ainda assim... “detalhes”.

Seja na Terra ou em Marte sempre se soube que o “julgamento” é apenas uma parte final do “processo”, outro “detalhe” descartado pelo argumento falacioso. Mesmo em sua temporada na Lua, o STF também sempre soube...

O juízo prelibatório, essencial em qualquer processo e julgamento, como num passe de mágica, aqui, deixa de existir. O que vale é tratorar, passar o rodo, ao vivo e a cores.

Ora, a base do pedido de “impeachment” é a ocorrência de fato que em tese configure crime de responsabilidade. Ainda que seu processamento siga regras próprias e o julgamento seja político, não deixa de ser processo relacionado a crime (de responsabilidade). Como tal, sujeita-se a normas constitucionais – próprias de um Estado de Direito. O tal do Estado de Direito!

Parecia que após um recente período de flerte com o fascismo, os “especialistas” iriam enfim admitir o que sempre souberam: o julgamento político (baseado no livre convencimento) não se confunde com processo constitucional. Tal como nas decisões do Tribunal do Júri, o julgamento – e somente ele – é político (submetido às regras, às diretrizes e à consciência, de natureza política, de quem julga), mas o processo para ser válido tem de respeitar as regras jurídicas. O tal do “devido processo legal”!

Sim, foi golpe.

O crucial ato de julgar é político, mas não o processo (e o procedimento constitucional legal) que transcorre até se chegar a esse julgamento. Embora possa parecer pouco, esse traço pode ser a diferença entre um sistema democraticamente maduro e uma tirania oligárquica, travestida de democracia (semi) parlamentarista.

A Constituição, para estabelecer um Estado Democrático Social e de Direito, consagra o “devido processo legal” como um princípio inafastável, um pressuposto inarredável de um julgamento válido. Os golpistas - assim como os fascistas e alguns “especialistas” - odeiam isso!

Nisso se imiscui a terceira falácia dos patrocinadores do golpe: o “impeachment” de Dilma foi avalizado pelo STF. Os jornalões chegam a insinuar o inimaginável: o STF teria chancelado o “mérito” do julgamento político... Fake news na veia.

O STF poderia ter tido, sim, papel de maior relevo quanto ao controle da instauração e do desenvolvimento válido do processo, embora nunca lhe coubesse papel algum a desempenhar quanto ao “mérito”, ao cerne, do julgamento político. O Processo se submete ao Direito e o Julgamento à Política.

E nosso sistema constitucional – é necessário reconhecer – não recebeu a tutela devida no que diz respeito aos claros e insuperáveis vícios e abusos verificados no “processo” de “impeachment”.

A começar por sua própria instauração.

Vale lembrar que o Presidente da Câmara externara que tinham sido vários – dezenas – de pedidos de “impeachment” presidencial. Todos – à exceção de um – arquivados, inclusive reiteradamente envolvendo as tais “pedaladas”.

O que deve determinar se alguém pode ser investigado ou processado a partir de certo pedido (a punição postulada na “notícia de crime”) não é a qualidade de quem pede. Tampouco a forma pela qual o pedido é encaminhado. Mas, sim, a sua base fática (em Direito: a “causa de pedir”). Ou seja, se determinado pedido que aponta fatos (em tese ilícitos) fora antes arquivado, não poderia um pedido posterior a ele sequer sofrer processamento, a não ser pela superveniência de fato novo, juridicamente (e não politicamente!) relevante. Do contrário, será ele mera reiteração de pedido já arquivado. É por isso que o Direito, como regente do Processo, não admite que a Polícia possa “escolher discricionariamente” o que vai investigar em meio a “notícias-crimes”, o Ministério Público “escolher discricionariamente” dentre os investigados quem vai “denunciar” e o Juiz “escolher discricionariamente” dentre as denúncias oferecidas aquelas que vai dar andamento. O Direito cria mecanismos de estabilização e imutabilidade. E evita perseguição e arbitrariedade. Investigações arquivadas – policiais, ministeriais, administrativas – somente podem ser desarquivadas em face de fato ou prova nova (e não em razão de argumentação nova!).

E o que é mais grave: o expediente escolhido arbitrariamente para dar início ao processo de “impeachment” jamais apontou realmente um fato típico de responsabilidade criminal. A ausência de descrição de um fato típico – ou a atipicidade criminal do fato descrito – deveria ter conduzido ao arquivamento por falta de justa causa. Todos os dias incontáveis expedientes são arquivados por falta de justa causa pelos foros do País. O filtro prelibatório, aqui, deveria ter funcionado, ainda que via STF. (Como visto, ele só veio muito tempo depois, ao tempo da jurisdição ordinária exercida pelo TRF1.)

Nunca coube a parlamento democrático algum, no processo de “impeachment”, em sua função atípica judicante, a um só tempo legislar e julgar. Não pode a Câmara dos Deputados, por exemplo, pós-definir – como que em atuação legiferante casuística – se determinado fato novo passa a ser crime de responsabilidade, fazendo-o a seu bel prazer. Esse tipo de enquadramento é tarefa do Direito, e não da Política. Assim como não cabe ao Tribunal do Júri, só com base na soberania de seus vereditos, numa pulsão punitiva, julgar alguém por automutilação; além de não ser crime, não é de sua competência.

Evidentemente, uma vez pré-definido que determinado fato é, sim, típico (e sua prática configura crime de responsabilidade), cabe ao Parlamento – e somente a ele – julgar se o Presidente da República o praticou, se o fez ao desamparo de eventual excludente de responsabilidade (sim, elas são aplicáveis!) e, tendo-o praticado, se deve ser apenado.

Não fosse assim, o Presidente da República, sem suporte de 1/3 do parlamento, poderia, sem saber, estar proibido até de espirrar. Afinal, a Câmara pode vir a definir que o espirro presidencial configura crime de responsabilidade...

No caso de Dilma se deu início a um processo-crime fundado em fato atípico. E que se desenvolveu. E que gerou punição. E – por tudo o que foi dito – merece, sim, reparação! Ainda que simbólica, como respeitoso tributo não apenas à ex-mandatária, mas ao Estado de Direito é à Democracia.

Sim, foi golpe!

Mas os causadores dessa monstruosidade, mesmo testemunhando o que isso provocou nos anos seguintes, se mantêm incapazes de fazer qualquer tipo de “mea culpa”.

Tomara que, pelo menos, aqueles que se deixaram seduzir pelo canto da mídia-sereia e pela possibilidade de apeamento antecipado de um governo do qual discordavam, possam doravante renovar seus votos em defesa do Estado Democrático de Direito.

Que fique a lição. Quem tem poder para mudar um governo eleito democraticamente é o eleitor. Essa é a regra. Não basta que se tenha uma suposta impopularidade aferida por deus-sabe-quem, algumas passeatas, um solavanco na economia... e pronto: troca-se o governante (“dentro das quatro linhas”, diria algum cadáver insepulto por aí...).

O País, os eleitores, a Democracia – e não somente Dilma Rousseff – merecem respeito, merecem reparação. Quem tem memória não repete o erro!

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