Soberania, militares, Vichy e pena de morte
"No momento futuro de finalização de regimes traidores de seu povo do tipo daquele de Vichy (na França), então, é preciso abrir os arquivos e permitir que a nação conheça todos os seus passos, o conjunto de seus traidores, acertar as contas com o seu passado e projetar desarmadilhar o caminho do futuro ", diz o colunista Roberto Bueno
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A Segunda Grande Guerra Mundial (SGGM) foi oficialmente encerrada em 02.09.1945. Na França ascendera ao poder o Marechal Henri Philippe Pétain (1856-1951) ainda em 01.07.1940, tendo renunciado quando já avançava o final do conflito em 02.06.1944. Sediando o Governo na cidade de mesmo nome, o Marechal Pétain liderou o regime francês de Vichy (1940-1944), que era como se conhecia o regime cujo nome era État Français (Estado Francês). Sob este regime nascido de armistício assinado com a Alemanha em 22.06.1940, a França manteria 45% do território e também as colônias, restando outra parte de 55% do território francês sob direto controle dos alemães.
Em seu dia considerado como herói, de família de agricultores e identificado com as profundezas da terra, tinha percorrido invejável carreira militar. Apelidado de O Leão de Verdun, trazia histórico militar de liderança e destaque por bravura na célebre batalha de Verdun, em 1916, dada a resistência oferecida às tropas alemãs, fato que o tornara personalidade de grande popularidade na França do pós-Primeira Grande Guerra Mundial (PGGM).
Os terríveis fatos do repressor regime de Vichy, sem embargo, se sobrepuseram à memória de sua intervenção na PGGM, o ataque ao povo às condecorações, e Pétain foi chamado a acertar suas contas, e entre os dias 23.07.1945 e 15.08.1945 foi levado a julgamento por traição, e sendo considerado culpado recebeu condenação à morte. O fato histórico de seu destaque militar na PGGM aliado a sua já avançada idade influenciaram para a comutação de sua pena prisão perpétua assinada por Charles de Gaulle, e nesta condição faleceu já em idade bastante avançada e doente na prisão.
O Marechal Pétain foi nomeado Primeiro-Ministro em 1940 e logo convergiu, e submergiu, política e militarmente na Alemanha. Para evitar dissabores, rompendo com o regime anterior, Pétain assumiu plenos poderes, e a assinatura do armistício em 22.06.1940 com o nacional-socialismo foi a marca, firmado em face da derrota de forças franco-britânicas no enfrentamento com os alemães. Os pretextos autoritários adotam modelos salvacionistas, missões de tipo grandioso e, por isto, o poder precisa ser necessariamente de tipo autoritário, enfeixando todos os poderes para, assim, como também propusera e prometera Pétain, realizar a “regeneração nacional”. A magnífica retórica nacionalista usualmente não passa de construção de fachada cuja beleza expressa e reluz para os incautos os propósitos de independência e prosperidade, mas que em realidade as solapa e socava brutalmente. É a pavimentação da via política pela mera traição.
A França recorrer às esferas judiciais internas para julgar o seu Marechal Pétain e submeteu o caso à 1ª Câmara do Tribunal de Apelação de Paris, que o condenou ao fazê-lo responder pela acusação de traição. A acusação se sustentava em sua colaboração com a potência invasora, a Alemanha nazista, basicamente transformando o Estado francês em regime autoritário subordinado ao comando alemão e operando-o sob a lógica de regime de exceção, por exemplo, com acúmulo de sentenças de morte contra cidadãos franceses impostas por um conivente Poder Judiciário.
O regime francês suspendeu as liberdades constitucionais e também, convenientemente, foram suspensos os registros e, por suposto, as atividades político-partidárias. A subserviência do regime de Vichy representava a “zona livre” francesa, que não estava sob a ocupação direta alemã no sul da França. A liberdade da região era pura fantasia, sendo conduzida por Pétain segundo severa subserviência à potência invasora alemã. A submissão incluía reformas educacionais e, sobretudo, a perseguição de comunistas e de judeus, para o que foi criada legislação específica, o que já era feito desde o ano de 1940, prática que supôs o envio de várias dezenas de milhares deles aos campos de concentração alemães e o seu massivo extermínio.
A análise da completa submissão do regime Vichy coordenado por Pétain incluía a retenção de dois milhões de reféns por parte dos alemães. Era espécie de instrumento de pressão para que o Governo de Pétain seguisse estritamente a defesa dos interesses alemães mesmo quando não houvesse determinação expressa. Os soldados franceses eram prisioneiros realizando trabalhos forçados, portanto, importante força econômica para a força ocupante, em realidade, um grande sequestro de recursos humanos do país ocupado, limitando exponencialmente as suas possibilidades de desenvolvimento e crescimento. Como sói ocorrer com os povos colonizados sob pesado domínio territorial, ademais, o regime de Vichy estava obrigado a entregar volumosa quantidade de ouro, além de outra tanta expressiva de suprimentos de todo o tipo para a Alemanha, fortalecendo a sua posição política interna bem como o seu esforço de guerra. O sequestro de Vichy era, à partida, o sequestro da economia francesa.
A arrogância militar do Marechal permaneceu no tom de sua primeira declaração ao Tribunal parisiense: “Um marechal francês jamais pede perdão. Só Deus e as próximas gerações poderão julgar. Isso basta à minha consciência e à minha honra. Deposito toda a minha confiança na França”. Corria a madrugada do dia 14.08.1945 quando o júri pronunciou a sentença condenatória de Pétain, informando o teor da decisão de executá-lo, aliada a pena paralela de confisco de seus bens, mas acrescentando o contraditório aspecto de que era solicitado ao Chefe de Estado, Charles de Gaulle, que não fosse executada a sentença que acabavam de pronunciar, abrindo assim espaço para que lhe fosse aplicado o favor da comutação em prisão perpétua.
A arrogância militar pode ser acompanhada pelo carreirismo e por caráter não muito superior ao de uma ampla capa do tipo de cidadãos que a França conheceu naquela quadra da história, e que nela passaram a ser conhecidos como “colaboracionistas”. Muitos deles estiveram entre os apoiadores franceses do regime que subordinava a sua pátria, gente que apreciava a cultura antidemocrática, predisposta a apoiar regimes autoritários, a quem convinha o nacional-socialismo, gente que, ao fim e ao cabo, entre civis e militares, acreditavam ser conveniente para a França ceder parte de sua soberania para permanecer com sua integridade territorial, algo que, ensina a história, ao abrir mão da integridade em proveito da economia, finalmente, perdemos a ambos juntamente com a dignidade.
No ato da entrega voluntariosa da soberania junto a ela é entregue a dignidade, a vergonha e o autorrespeito, sem a qual a soberania não sobrevive. Não há negociações possíveis quanto a soberania, que é ou não é, que ou se afirma ou se nega, que ou se defende ou se entrega, e trai. O mito da resistência massiva francesa começou a ser desmontada na década de 1970, para o que auxiliou o trabalho de Paxton, à sombra das dificuldades apresentadas pela alta reserva imposta aos arquivos do período do regime de Vichy por parte do Governo francês, preservados até muito recentemente, quando o segredo foi levantado pela administração de François Hollande (2012-2017).
Aproveitadores, não poucos, alguns alegando mera “adaptação” ao regime, seguirão o seu trajeto durante o momento do saque do Estado e do conjunto da nação. O caso é que a zona cinzenta na qual os aproveitadores e colaboracionistas buscam esconderijo não é território fecundo à segurança dos interesses do Estado. A resistência encontra o seu ponto de ancoragem quando a opinião pública é mobilizada e começa a apontar para o sentido contrário, como no caso francês, quando a derrota dos tempos emergia, as perdas se avolumam e as mentiras se tornam insustentáveis.
Nesta circunstância a resistência aponta o dedo para os culpados, tal como ocorreu na relação entre de franceses com os alemães. Mas quando os momentos de domínio total passam, então, ordinariamente os olhos e corpos libertos do domínio se voltam aos aproveitadores ao sentir-se enganados e ouvir a retórica dos arrependidos que, não raro, simplesmente tergiversarão sobre o seu passado, mas sem a pretensão de devolver tudo quanto arrecadaram ilicitamente da comunidade, saquearam das arcas do Estado e hipotecaram da vida futura de todos.
Os regimes do tipo de Vichy podem ser percebidos como interregnos na história de uma nação em que o país é alvo de espoliação, roubo, exploração e morte. Mas é um interregno apenas desde certa perspectiva, a saber, da assunção pública, à luz do sol, da violência utilizada para realizar a atividade de saque. Em suas profundezas, as almas e espíritos que realizam esta carga potente do mal sempre o nutrem e cultivam, estão ali permanentemente apenas à espera do exato e mais adequado momento para permitir a sua erupção. Os regimes do tipo de Vichy dependem deste tipo de homens, e eles sempre estão a postos, e dispostos, a irromper na cena pública para dominar o território e dar vazão ao seu caráter.
A memória histórica é a chave da libertação do país quando os seus fantasmas são trazidos à público. Revisitar Vichy hoje é desconfiar das pragas de antanho, olhar para o nosso passado e contrapô-lo aos tempos, é disponibilizar-se ao enfrentamento dos fantasmas de sempre que parecem já não surgir jamais. Revisitar os tempos sombrios em que a traição foi a marca é prevenir o povo da eclosão de homens vis e seus interesses espúrios que a todo tempo ameaçam dar vazão a sua capacidade de realizar o mal. Acionar a memória é potente arma cujo desprezo facilita o percurso dos quadrilheiros associados para trair o país.
Como reconfigurar o Estado depois de que seja ele vitimado por roubo e entrega de riquezas em alta escala, depois de consentir ou diretamente ordenar a comissão de assassinatos em massa e que seus dirigentes toleram a violação da soberania nacional? Resta profunda cicatriz moral. O regime de Vichy foi mero fantoche, apresentou a face farsesca de seus dirigentes quando, em seu ocaso, a maioria de seus líderes fugiu ou foi levada a julgamento. Alguns deles foram executados sob a acusação de “traição” à pátria. No caso francês a vingança nacional foi dura, empreendida através de purgas ajustadas sob amparo legal. O Marechal Pétain foi um dos líderes que dado o avanço das tropas aliadas, optou por fugir para a Alemanha nos últimos meses da SGGM, de onde regressou à França tão somente após a irremediável rendição alemã e já não lhe restava outra opção.
No momento futuro de finalização de regimes traidores de seu povo do tipo daquele de Vichy, então, é preciso abrir os arquivos e permitir que a nação conheça todos os seus passos, o conjunto de seus traidores, acertar as contas com o seu passado e projetar desarmadilhar o caminho do futuro. Foram tempos em que lideranças do Estado francês pegaram em armas, mas não para resistir aos ocupantes alemães, senão para brandi-las contra os seus próprios cidadãos, especialmente contra os que se empenhavam em atividades de resistência ao invasor alemão. Aqueles foram tempos em que a traição reluziu acompanhada da covardia, e sua força superlativa derivou da intermediação de indivíduos torcidos que receberam a delegação alemã para subjugar os seus concidadãos e comprometer o futuro do Estado francês.
Os anos venturosos de um povo não são possíveis sem realizar plena vivência e imersão em seus períodos mais obscuros. Sem esta imersão o futuro fica aprisionado nos piores dias do passado, e ao conhecê-lo é indispensável sancioná-lo com a dureza indispensável para, desobstruindo o presente da proliferação da traição, ampliar o campo de construção do futuro da nação de forma pedagógica. A visitação ao mundo das sombras assusta, mas a luminosidade da criação do mundo futuro é simplesmente impossível sem experimentá-la. A traição é a seiva pura do mais puro vício. O traidor é caso radical de ojeriza, ação incontida daquele que despreza os seus, hipotecando e dinamitando o futuro comum. Não há conciliação possível com estes escombros da moralidade humana.
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