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Bernardo Ricupero

Professor do Departamento de Ciência Política da USP

11 artigos

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Sobre a questão judaica

"O erro seria acreditar que os judeus para se emanciparem politicamente deveriam se libertar do judaísmo", escreve o cientista político Bernardo Ricupero. "A libertação do Estado da religião não seria um sinônimo da libertação do homem da religião, a emancipação política não correspondendo, de maneira alguma, à emancipação humana"

(Foto: Reuters)
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*Publicado originalmente no site A Terra é Redonda

Comentário sobre o livro de Karl Marx

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Quando escreveu Sobre a questão judaica Marx não tinha ainda vinte e seis anos. Pouco antes, iniciando o “ajuste de contas com sua consciência filosófica”, empreendera uma cerrada crítica à Filosofia do direito, de Hegel. Pouco depois, em Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel, encontra a “classe com cadeias radicais”, o proletariado, o que marca sua adesão ao socialismo.

Sobre a questão judaica deve, portanto, ser compreendida tendo em vista esse momento do desenvolvimento intelectual e político de Marx. Mais, um momento central, que, em linhas gerais, coincide com seu curto período em Paris. Nele, edita, junto com Arnold Ruge, o único número dos Anais Franco-Alemães, revista na qual aparece Sobre a questão judaica, a Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel e um artigo que chama sua atenção, Esboço para uma crítica da economia política, de Friedrich Engels.

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O livro versa sobre dois artigos de Bruno Bauer e não diretamente sobre a questão judaica. O ensaio é dividido em duas partes praticamente independentes. Na primeira, já com o estilo polêmico que o marcará, Marx realiza uma crítica detalhada das teses de Bauer; na segunda, procura, num momento em que está começando a desenvolver a concepção materialista da história, entender “não o judeu de sábado, objeto da consideração de Bauer, mas o judeu de todos os dias”.

O problema de seu antigo companheiro “jovem hegeliano” seria precisamente o de manter-se preso a uma concepção puramente religiosa da emancipação política dos judeus. Em outras palavras, ao criticar a reivindicação da emancipação política dos judeus, transforma uma questão secular em religiosa, sugerindo que o problema ainda se encontra na religião.

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O erro seria acreditar que os judeus para se emanciparem politicamente deveriam se libertar do judaísmo. A emancipação política possibilitaria, ao contrário, que os homens, fossem eles judeus, protestantes, católicos, etc. professassem a religião que quisessem. Em outras palavras, a libertação do Estado da religião não seria um sinônimo da libertação do homem da religião, a emancipação política não correspondendo, de maneira alguma, à emancipação humana.

Numa orientação oposta, Marx procura mostrar que o Estado, ao não se identificar com os que professam uma determinada religião ou com os que são proprietários, procuraria precisamente garantir, para além de elementos particulares, sua universalidade. A partir daí, a vida genérica do homem pareceria ocorrer no espaço do Estado, sua vida privada subsistindo na sociedade civil.

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Haveria, consequentemente, uma cisão do homem enquanto cidadão, ser genérico atuante na comunidade política, que visaria o interesse geral, e o burguês, indivíduo privado, membro da sociedade civil que procuraria realizar seu interesse privado.

Bauer também erraria ao considerar que os homens, a fim de terem acesso aos direitos humanos, deveriam se libertar da religião. No entanto, não seria isso que se constata examinando as Declarações dos direitos do homem da Revolução Americana e da Revolução Francesa. Em particular, é comum nos documentos franceses aparecer a distinção entre os “direitos do homem” e os “direitos do cidadão”.

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No entanto, nenhum dos direitos do homem – igualdade, liberdade, segurança e propriedade – iria além do homem como burguês, membro egoísta da sociedade civil. Os direitos do cidadão, por seu turno, seriam entendidos como simples meios para a realização dos direitos do homem.

Segundo Marx, não deixa de ser significativo que o “o membro da sociedade civil lhe chamam homem, simplesmente homem”, ao passo que o cidadão, o homem político é o homem abstrato, “artificial, o homem como pessoa alegórica, moral”. Isto é, se o homem político, cidadão, não teria verdadeira existência, o homem egoísta, membro da sociedade civil, seria identificado com o homem natural.

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Para Marx, a preservação dos direitos do homem, presentes na sociedade civil, seria a razão de ser do Estado. Numa formulação que continuará a ser central no restante da sua obra, considera que ao invés de pôr fim às contradições da sociedade civil, como acreditara Hegel, o Estado existiria como instrumento para a manutenção dessas contradições, ou seja, a política não resolveria os problemas da sociedade civil, mas como que os refletiria.

Nesse sentido, da mesma maneira que Ludwig Feuerbach notara a existência da alienação religiosa – na qual os homens projetam suas potencialidades numa suposta entidade superior, Deus – haveria uma espécie de alienação política, em que se acredita que as particularidades constitutivas da sociedade civil seriam superadas na universalidade do Estado.

Nessa referência, é possível considerar que Marx está iniciando, em Sobre a questão judaica, a crítica às aparências invertidas da sociedade burguesa. Pouco depois, nos Manuscritos econômicos-filosóficos, começa a realizar a crítica da alienação do trabalho. Continua a ter motivação similar a análise realizada em O capital sobre o “fetichismo das mercadorias”, onde relações entre pessoas e os produtos de seu trabalho aparecem como “relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas”.

Mas se a crítica de Marx aos direitos dos homens chama a atenção principalmente para seu caráter ideológico – falsa aparência de igualdade, liberdade, segurança e propriedade que obscurece as contradições da sociedade civil – ela não percebe o potencial emancipatório desses direitos. Ou melhor, que mais do que refletirem as condições da sociedade civil eles podem também entrar em tensão com a sociedade burguesa e pressionar para sua transformação. Nesse sentido, para além dos direitos civis, que Marx conhecia, foram criados, por pressão do movimento operário e feminista, direitos políticos e sociais, que, hoje, se encontram sob ataque…

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