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Osvaldo Bertolino

Jornalista e escritor

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Sobre a saída de Flávio Dino do PCdoB

Críticas rombudas e palavras ásperas dizem pouca coisa sobre o episódio, que tem muito a ensinar

A saída do governador do estado do Maranhão, Flávio Dino, do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) causou uma avalanche de comentários nas redes sociais, mas o ponto de equilíbrio está numa nota de Luciana Santos, presidenta da legenda, divulgada dia 17 de junho de 2021. “O PCdoB, prestes a completar seu centenário, seguirá sua jornada alicerçado em seu valioso coletivo de militantes e no seu elenco de respeitadas lideranças”, afirma.

A frase remete a outro texto, este de João Amazonas, intitulado Viva o PCdoB!, publicado no jornal A Classe Operária de fevereiro de 1987, tido por Luciana Santos como antológico em artigo no livro 100 animeos da Revolução Russa. Amazonas indagou: “Por que o Partido venceu?” E respondeu: “Antes de tudo pela justeza de sua orientação política e pela fidelidade ao marxismo-leninismo, (…) por saber interpretar, em diferentes momentos, o sentimento das grandes massas populares, traduzir em termos políticos o que pensava a maioria do povo.”

Retomando essa linha de raciocínio, Luciana Santos diz que “vencemos muitas vicissitudes e chagamos aos 95 anos de existência porque, antes de tudo, tivemos uma correta orientação política, no essencial, e defendemos nossos princípios marxistas-leninistas. Ou por outra: a atuação dos comunistas é uma exigência histórica”, escreveu ela.

Saída do governador deixa um grande vazio

Essa contextualização já é suficiente para se dizer que a saída de Flávio Dino é mais um dos muitos percalços que os comunistas brasileiros venceram ao logo do seu centenário. O abalo tático pode, sim, ser avaliado como de razoáveis proporções, mas não atinge as raízes fundas do PCdoB no processo histórico do país desde a sua fundação, em 1922. O governador vai para uma legenda que também tem lastro histórico, o Partido Socialista Brasileiro (PSB), importante polo do campo democrático.

Nesse momento crítico do país, com a polarização imposta pela conjuntura que levou o bolsonarismo ao poder, todo movimento tático da oposição deve ser contabilizado levando em conta o resultado da luta contra a marcha do fascismo. Nesse âmbito, fica a interrogação sobre como as forças progressistas se comporão para ampliar seu raio de ação e sair dos limites demarcados pelas derrotas que tiveram como epicentro o golpe do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016.

O movimento de Flávio Dino ainda é uma incógnita, envolta em especulações sobre a participação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do Partido dos Trabalhadores (PT). Mas, independente do que virá, ambos serão imprescindíveis para a pavimentação do caminho da oposição. Nenhuma porta deve ser fechada na caminhada para reunir forças contra o bolsonarismo. Resta saber se esse movimento de Flávio Dino – e possivelmente de Lula – amplia a margem para a formação de um largo espectro político oposicionista.

Para o PCdoB, fica o gosto amargo de ter perdido um importante protagonista da cena política brasileira em um momento crítico de sua existência, acossado por uma legislação eleitoral de viés autoritário e com tendência à monopolização da representação política com pouca participação popular. A saída do governador deixa um grande vazio e cria ainda mais obstáculos para a superação da draconiana cláusula de barreira, a alta votação mínima imposta para que os partidos tenham representantes eleitos.

Dilemas da crise do socialismo

Mas é, também, outra oportunidade histórica para revigorar seus princípios e reafirmar suas convicções filosóficas, renovadas em episódios como a Conferência da Mantiqueira, de 1943 – que reorganizou o Partido após a brutal repressão do Estado Novo –, a Conferência de 1962 – que mais uma vez reorganizou o Partido, no contexto do “racha” da segunda metade da década de 1950 – e o pós-queda do Muro de Berlim, no início da década de 1990.

O 8º Congresso, realizado em 1992, iniciou um processo de avanço na compreensão dos novos desafios da luta socialista. Desde então, o PCdoB ganhou ainda mais destaque como construtor de terremos firmes, bases para táticas amplas que resultaram em êxitos eleitorais e na visão mais precisa dos meandros da luta social e política, em especial ao participar das vitórias e conquistas do ciclo de governos progressistas dos ex-presidentes Lula e Dilma.

A 8ª Conferência, realizada em 1995, que aprovou o Programa Socialista, representou um novo patamar teórico que, como disse o ex-presidente do PCdoB Renato Rabelo, proporcionou respostas práticas aos dilemas da realidade surgida com a crise do socialismo. Segundo Renato Rabelo, aquele processo resgatou a essência transformadora do marxismo ao acertar contas com o dogmatismo reducionista, um salto de qualidade do pensamento estratégico do PCdoB.

Luciana Santos afirmou que os comunistas saíram daquela prática de descrever o futuro socialista sem priorizar a abertura do caminho para se chegar a ele. “Um esforço que prosseguiu de forma intensa, prospectando ideias inclusive fora do âmbito marxista, num esforço que Renato Rabelo chamou de nova luta pelo socialismo. Também foi de sua iniciativa a atualização do Programa Socialista, no 12º Congresso do PCdoB realizado em 2009, fundada no conceito dos ciclos civilizatórios pelos quais o Brasil passou”, enfatizou.

Nova perspectiva revolucionária

São sínteses que revigoram o PCdoB substancialmente, ao mesmo tempo em que reafirmam sua essência revolucionária, a evolução do pensamento programático socialista, algo dialético e permanente, diz ela. A ação prática produtiva, segundo Luciana Santos, é a mais desafiadora tarefa, especialmente nesses tempos de rápida acumulação de contradições do capitalismo.

A base de tudo é o marxismo que, independente do que dizem dele os já decrépitos “novos filósofos”, não pode ser resumido a um modelo. Os bolcheviques de “têmpera especial” partiram a história em duas, abalaram o mundo, romperam pela primeira vez a estrutura e a lógica do capitalismo e do imperialismo — tomaram o céu de assalto, como dizia o próprio Marx sobre os revolucionários da Comuna de Paris, de 1871 —, mas foram marxistas do seu tempo.

O desenvolvimento histórico obriga os marxistas a uma nova perspectiva revolucionária, adequada ao tempo e às condições concretas de cada lugar, de cada realidade. Nessa constatação está a essência do marxismo, capaz de uma atitude crítica diante de fórmulas tradicionais petrificadas.

A conclusão que pode ser extraída é que a sua força não depende dos males elementares do capitalismo. Nem da ideia de um único movimento comunista mundial que, num certo período, atrofiou o pensamento marxista. O marxismo é um método científico. E, nas ciências, a discussão — entre pessoas que sustentam pontos de vista divergentes sobre bases científicas — é o único caminho permanente de progresso.

O PCdoB terá de se virar

Por esse motivo, é vulgarizado ao associá-lo ao autoritarismo, mostrado como um sinistro desígnio contra a criatura humana. O ”comunismo” é associado a rios de sangue, fuzilamentos e às maiores atrocidades de que são vítimas especialmente as crianças e os inocentes. Ao lado deste antimarxismo primitivo, existem outras vulgaridades mais sofisticadas, como os que de boa-fé proclamam a “verdade revolucionária” com base em suas percepções empíricas, aquele “marxista” impregnado de erudição e afogado em terminologia complicada, um especialista em obscurecer os problemas. Falta clareza para ele chegar às situações concretas.

A dificuldade está em procurar compreendê-lo com espírito científico, isento de paixões e sem a carga irracional de ódio, herdada em boa parte de preconceitos incutidos por anos de anticomunismo. Mesmo quando ele não é excluído da categoria de fenômeno social — o marxismo é ensinado até nas universidades norte-americanas —, procuram a todo custo destituí-lo de sua essência. É assim que os espíritos se fecham ao seu conhecimento, possivelmente com medo de a ele se converter.

Nessa contextualização, a saída de Flávio Dino do PCdoB se transforma em episódio assimilável numa conjuntura turbulenta como essa. Para ele, a perspectiva marxista se torna secundária quando o objetivo imediato é a derrota da extrema direita. A forma como deixou o PCdoB não é elogiável. Seu entendimento individual se sobrepôs à tática dos comunistas. A reafirmação dos princípios marxistas na nota de Luciana Santos, independente do que virá – o PCdoB terá de se virar, se quiser saltar a cláusula de barreira –, é o mais importante fato de tudo isso.  

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.