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Vinícius Canhoto

Professor, doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo

3 artigos

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Sobre escritores e anjos

Sim, Willer tem razão, poetas e escritores não são anjos, não são exemplos éticos ou reservas morais, não são sacerdotes, são apenas artistas que muitas das vezes convivem muito mais com “demônios” do que com “anjos”, não apenas no interior de suas mentes como também em suas relações sociais. E justamente deste convívio que nascem suas obras

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Cláudio Willer costumava dizer em suas oficinas que “poetas não são anjos”. Ele, um poeta, que escreveu sobre Baudelaire, Rimbaud, Roberto Piva e os beatniks, sabe muito bem disso. A recordação desta espirituosa frase me retorna à mente quando penso em dois recentes episódios literários polêmicos, que repercutiram pouco. Talvez a ausência de polêmica na imprensa brasileira apenas demonstra que temos lido pouco. 

A mais antiga diz respeito à “limpeza” para suprimir trechos racistas contidos na obra de Monteiro Lobato. Quando ouvi pela primeira vez a intenção editorial de suavizar as posições do autor, adaptando-o aos tempos atuais, perguntei a mim mesmo: “Quem fará o trabalho sujo?”. Não se trata apenas de “adaptar” a obra ao chamado politicamente correto dos novos tempos, trata-se de algo mais grave, adulteração de uma obra e de um autor. Tento pensar em como seriam as falas de Iago do Shakespeare, caso os ingleses do século XXI resolvessem suprimir as passagens irônicas do personagem em relação a cor de Otelo. Felizmente na Inglaterra a integridade da obra shakespeareana é protegida por lei. Entretanto, o Brasil prefere o jeitinho dócil e cordial de ignorar a situação jogar a sujeira para debaixo do tapete. Monteiro Lobato precisa ser integralmente lido e não adaptado. Monteiro Lobato precisa ser lido e seu racismo observado e criticado ao invés de ser simplesmente suprimido por um censor literário. É assim que apagamos a memória histórica e perpetuamos o mito da democracia racial. Contra o racismo, precisamos ler a obra de Monteiro Lobato com racismo e tudo, com senso crítico e como um registro literário dos resquícios de uma sociedade colonial, racista e escravocrata que permanece até os dias de hoje. Precisamos ler Monteiro Lobato para nos compreendermos como sociedade.    

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Outra polêmica um pouco mais recente, esta internacional, diz respeito ao prêmio Nobel de literatura conferido ao escritor Peter Handke. Trata-se de um autor muito pouco lido por aqui. A delicadeza de sua literatura, muitas vezes escrita em livros de poucas páginas, não reflete a estupidez de suas posições políticas. Handke faz em prosa a poesia das pequenas coisas, da falta de sentido, do vazio e do tédio da vida. Criou um universo literário bastante particular, um estilo poético para falar do prosaico cotidiano, que não tem nada de heróico. No entanto, o que se tem discutido são as posições políticas de Handke sobre a questão Sérvia e sua ida discursiva ao funeral de Milosevic. Isso traz à memória novamente o comentário do velho Willer: “poetas não são anjos”. Podemos fazer uma lista longa de posicionamentos problemáticos de escritores, indo de Balzac a Dostoiévski, Baudelaire a Ezra Pound, Knut Hamsun a Louis-Ferdinand Céline, Nelson Rodrigues a Rachel de Queiroz, Neruda a Borges. São tantos os nomes, os exemplos, as controvérsias. 

Sim, Willer tem razão, poetas e escritores não são anjos, não são exemplos éticos ou reservas morais, não são sacerdotes, são apenas artistas que muitas das vezes convivem muito mais com “demônios” do que com “anjos”, não apenas no interior de suas mentes como também em suas relações sociais. E justamente deste convívio que nascem suas obras, que não são escritas segundo normas éticas e sim segundo um projeto estético subjetivo e particular, obras que não são construídas por pecado ou piedade, mas por subjetividades de seres humanos que muitas vezes flertam entre o sagrado e o profano, entre o sublime e o infame. 

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