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Marcia Tiburi

Professora de Filosofia, escritora, artista visual

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Sobre o narcisismo hoje

"Narcisista é aquele que perdeu a dimensão do outro. O outro não existe para ele", diz Marcia Tiburi

Comércio popular em São Paulo (Foto: REUTERS/Amanda Perobelli)
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Se tornou algo trivial falar em “Transtorno da Personalidade Narcísica”, segundo a classificação do manual de diagnostico de doenças mentais ou DSM-5).

Esse tipo de recurso à catalogação faz parte de uma tendência geral à psicologização ou psiquiatrização da vida. 

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Essa tendência oferece uma reposta à nossa demanda por compreensão. Somos seres de conhecimento e desejamos compreender, então é natural que a gente deseje e aceite uma explicação bem amarrada. A falta de explicação e, portanto, de conhecimento, é fator de angústia. Ficar sem explicação em relação à atitude de alguém, dói muito. É como ficar sem justiça. Digamos que, nesse sentido, todos nós, no fundo, no fundo, desejamos a verdade. 

O desejo de explicação se confunde com o desejo de conhecimento. E o recurso à psicologia, à psiquiatria, busca dar conta disso. 

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Esse desejo é antigo. Todas as culturas desenvolveram narrativas explicativas. Os mitos correspondem a essa tentativa sem à qual somos lançados nas trevas da ignorância. 

Todos devem se lembrar do antigo mito grego de Narciso que morreu apaixonado por sua própria imagem. No mito, todo o amavam por sua beleza, todas se apaixonavam por ele, ninfa chamada Eco se apaixona por ele. Ele a rejeita e ela se esconde numa gruta, restando apenas a sua voz. 

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Geralmente, diante dessa narrativa nos apegamos ao tema do espelhamento, afinal Narciso é aquele que ama o espelho, e todos nós teríamos um grau de auto-amor que, na psicanálise, seria o narcisismo originário, mas o individuo que podemos chamar de narcisista seria aquele que ama apenas o espelho, mas também o que cria espelhos para ser amado. Ele trata os outros como espelhos. Evidentemene, relações intersubjetivas sempre tem certo grau de espelhamento. Mas quando alguém que deve ser espelho é subjugado e humilhado para se manter apenas nesse lugar, então, estamos diante de um problema que é ético, político e social. Nos podemos usar a formulação do psicossocial para falar disso. 

Um aspecto nesse mito é muito mais interessante, trata-se da morte. Acredito que o núcleo da questão esteja aí. Narciso morre de paixao por si mesmo, porque o outro está ausente. O outro é apenas um espelho, uma coisa. O narcisista é capaz de todo tipo de objetificação. Ele cumpre o preceito anti-ético por excelência de tratar o outro como um meio e não como um fim. Aquele que morre apaixonado por sua própria imagem é o sujeito do conhecimento. Por isso, por mais que narcisistas possam até ser inteligentes em suas áreas, eles tem o olhar vazio. São excelentes atores na vida, por se colocam na melhor posição para serem vistos no espelho que é o outro para ele. Daí ele mimetizar, fazer a mímica, parecer o mais apaixonado, o mais inteligente, o mais ético.

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E, no entanto, ele estava só enganando, fazendo o malabarismo e o hipnotismo, num jogo de prestidigitação em que você esta sempre diante de um mágico enganador. Se trata de uma relação sem relação. De vidas que, mesmo ligadas, não se relacionam. 

Os psicólogos e psiquiatras que trabalham com a questão do narcisismo como se ela fosse um “transtorno” (sendo que a própria noção de transtorno refere-se à um efeito ou sintoma psíquico e social ao mesmo tempo), não devem perder de vista que se trata da personalidade do espantalho, da personalidade do robô, do andróide ou até mesmo do vampiro. Ou seja, do sujeito vazio, preenchido pelo vazio, acolchoado de ser humano, com roupas e tudo, mas vazio. 

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A morte é, nesse caso, um fato interno vivido pela personalidade do narcisista. Como um vampiro, um morto vivo, ele não sente nada que não seja relacionado ao ferimento originário a partir do qual ele nasce. Um narcisista é alguém que, na origem, não pode ser quem ele realmente era. Trata-se de um sujeito que foi podado, estamos diante de uma pessoa bastante incompleta, pois apegada ao “eu”, ela perde de vista a dimensão complexa da vida com a qual ela poderia entrar em relação. Ele se parece muito com os paranoicos e os autoritários, com as crianças mimadas. Para quem gosta de teatro e de psicanálise, ele é como Hamlet, o homem que já tem 30 anos na peça de Shakespeare e que age como um filhinho da mamae e do papai, pois está fechado em seu circuito edipiano. 

A falta de empatia é inevitável, pois você esta falando com um vampiro. Não se pode esperar empatia de alguém que não entra em contato com a própria dor, mesmo que ele possa chorar. 

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A prova dos 9 é: o narcisista precisa da simulação, da impostura, por isso, ele se torna facilmente um canalha. E como tal, não consegue fazer análise. 

Ele não consegue entrar em relação, nem em estado de intimidade, por que a intersubjetivaçao foi interrompida. 

O outro se torna um objeto. O sujeito interrompido se apega ao poder para existir. Poder económico, politico (e o narcisismo masculino é um grave problema da politica), e até o poder do gênero são os pilares nos quais o narcisista se apega. É muito comum que nas relações de gênero e sexualidade os narcisistas impõem sua virilidade opressiva. O narcisista gosta de bancar o “macho” devorador, super potente, pois o estereotipo lhe convém. Ele desempenha o papel. 

Contudo, esse tipo de formulação psicossocial esta cada vez mais comum. Por isso, podemos falar da narcisificação do mundo. Vivemos juntos sem o outro, a alteridade não é mais parte do design da subjetividade.

A sociedade patriarcal e neoliberal em que vivemos e que produz os sujeitos de que precisa para sua manutenção. E ela precisa de sujeitos que tenham pouco amor-próprio, mas uma relação maníaca consigo mesmos e sua necessidade de auto-afirmação. 

A mania de grandeza, a auto-valorização exacerbada (que não teria nada a ver com amor próprio), a necessidade de ser admirado o tempo todo e incondicionalmente, a arrogância, a falta de empatia e a inveja, além de outras características, fazem parte do que foi descrito como distúrbio, mas também fazem parte da vida. 

A falta de respeito, de caráter e de senso moral e ético não pode ser explicada simplesmente como doença. De fato, as categorias psicológicas ou psiquiátricas, podem ser também categorias sociológicas, mas é preciso compreender o ser “psicossocial” que somos na sua complexidade. Ou seja, somos seres forjados em relações com os outros seres, mas também com molduras previamente forjadas pelas instituições nas quais estamos inseridos, não somos simplesmente encaixáveis em diagnósticos. 

Independentemente das classificações, a pergunta mais séria continua sendo a pergunta sobre a ética, ou seja, a pergunta sobre a responsabilidade diante do outro. 

E nesse caso, o conceito de narcisismo se torna um conceito filosófico: narcisista é aquele que perdeu a dimensão do outro. O outro não existe para ele. Para o narcisista, que é o sujeito que vive em si e para si, a outra pessoa é uma coisa como outra qualquer a ser usada e manipulada. Que seres humanos tenham perdido a noção do outro como um igual é realmente preocupante. 

Deixo com vocês a pergunta sobre o que fazer diante disso? Somos capazes de mudar o destino da subjetividade humana no capitalismo? 

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