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Rogério Skylab

Músico e compositor

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Sobrecarga

Essa ideia de farsa, que Rancière expõe naqueles que, no fundo, odeiam a democracia, vai estar ironicamente exposta no fracasso de Igor Schuvalov, assessor econômico de Putin e vice-primeiro-ministro

Sobrecarga (Foto: Ivan Sekretarev)
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Mikhail Zygar publicou em 2016 o livro “Todos os Homens do Kremlin (os bastidores do poder na Rússia de Vladimir Putin)”, editado no Brasil, em 2018, pela editora “Vestígio”. Ex-editor-chefe da única emissora de TV independente da Rússia, a TV Rain, ganhou o “Prêmio Internacional de Liberdade de Imprensa”, de 2014, promovido pelo Comitê para a Proteção dos Jornalistas. Esteve recentemente no Brasil, numa entrevista promovida pela Revista Piauí, e foi sabatinado por João Moreira Salles.

O livro é uma enxurrada de acontecimentos, que vão do final da década de 90 até meados de 2015. Seguindo sempre a estrutura linear do tempo, Zygar concentra-se nos personagens, como um culto à personalidade. Nas introduções dos capítulos, antes que o autor mergulhe nos acontecimentos, há uma espécie de veredito transcendental sobre o personagem histórico a ser abordado. Até o final do livro, a galeria de nomes é imensa.

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Mas talvez possamos dividir essa história sobre Putin em duas partes: o período referente ao primeiro mandato, em que registramos um progressivo descolamento em relação ao governo de Iéltsin, num duelo sem tréguas entre os oligarcas e os siloviki (um grupo informal de velhos amigos de Putin, que haviam servido com ele na KGB e o conheciam da época de São Petersburgo); e um segundo período mais voltado ao exterior, quando avolumam suas críticas em relação aos EUA e à Europa.

A tolerância do chefe de gabinete do Kremlin no governo de Iéltsin, Alexandre Voloshin, em relação à Lenin, deve-se ao fato de que, se no referido ano, seu plano era remover, da Praça Vermelha para São Petersburgo, os restos mortais do grande líder bolchevista - plano complicado se considerarmos os comunistas como a principal força do parlamento -, o seu desejo inicial acabaria sendo deixado de lado, já que, no final de 2001, com Putin eleito, os comunistas viriam a se tornar inofensivos: a derrota à presidência, de seu candidato, Iegni Primakov, repetindo uma derrota anterior no parlamento, seria o golpe de misericórdia. É a partir daí que surge a “Rússia Unida”, partido que abrigaria uma improvável aliança, constituída por partidos rivais na disputa do parlamento e da presidência: a Unidade, cuja origem é a Família de Iéltsin, com seus oligarcas, tais como Boris Berezovski ; e a “A Pátria – Toda Rússia” (PTR), de Iuri Lujkhov, prefeito de Moscou, com uma visão bem conservadora sobre o sistema político, a desconfiança ao Ocidente, o interesse pela filosofia eslavófila e pela Igreja Ortodoxa (essa aliança tinha como objetivo tirar do jogo o partido comunista, mas tanto a Unidade quanto o PTR, serão preteridos mais tarde pela política de Putin). 

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No primeiro mandato, a sua primeira aproximação com o ocidente vai ser via Tony Blair. Diga-se de passagem, há um grande esforço por parte de Putin no sentido de uma boa imagem diante do mundo ocidental. Vai ser em meados de 2000 que Putin fecha todas as suas bases militares herdadas da União Soviética, incluindo as de Cuba e Vietnã. A guerra da Chechênia, que enfrentou logo no seu primeiro mandato, acabou tendo o apoio dos EUA, quando se comprovou a filiação de Akhmed Zakaev, líder da Resistência, à Al Qaeda.  E já em 2001, a invasão americana ao Afeganistão, após o 11 de setembro, teve cooperação russa, ao consentirem uma base americana no Quirguistão como suporte à operação americana (as linhas de abastecimento passavam pela Rússia) – os talibãs eram tradicionalmente contra os russos e, num dado momento, chegaram a desestabilizar a situação no Tagiquistão e Uzbaquistão, ao sul da Rússia.

A guerra contra o Iraque, em abril de 2002, foi um marco divisório, mudando de vez a atitude de Putin em relação aos EUA. Aliando-se aos que se opunham à invasão americana, como Chirac e Schoroeder, Putin fortalece sua imagem no exterior.

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Ainda que em lados contrários no tocante à invasão ao Iraque, os negócios entre ingleses e russos iam de vento em popa. A visita de estado de Putin à Londres, em 24 de junho de 2003, tem como objetivo celebrar o casamento real entre duas petrolíferas de peso: a TNK (russa) e a BP (inglesa), esta última tendo adquirido 50% da empresa russa. O projeto do gasoduto Nord Stream, sob o mar báltico (fornecimento de gás à Europa por parte da Rússia, sem passar pela Ucrânia), é celebrado com um certo alvoroço. E tudo ia bem entre os dois pombinhos, não fosse a Grã Bretanha conceder asilo político para dois inimigos do regime russo: Boris Berezovski e o terrorista checheno  Akhmed Zakaev. A partir daí estremece a relação Rússia e Grã Bretanha, e Putin esquece, pelo menos por enquanto, a ideia de construir o gasoduto sob o mar Báltico.

Em relação a Boris Berezovski, um magnata das comunicações, da Família de Iéltsin, atuou ativamente na campanha para a eleição de Putin (era dono do jornal Kommersant e detinha 40% da televisão pública russa, a ORT). O fato é que o governo de Putin viria a sofrer forte oposição da imprensa e Berezovski seria visto pelo Estado como um manipulador da opinião pública em diversos momentos: na morte de 118 militares do submarino nuclear Kursk; na alusão aos expurgos de Stalin em relação à atuação dos siloviki ao redor de Putin (oficiais de alto escalão, tanto do serviço militar quanto dos serviços de segurança, diante dos quais, todos os oligarcas russos passariam a ser submetidos à investigação); no financiamento de um livro (A Explosão da Rússia) e de um documentário (O Assassinato da Rússia), por parte de Berezovski, segundo os quais, os bombardeios no final de 99, em Moscou e outros lugares, não eram ações de terroristas chechenos, como tentavam fazer crer, mas do próprio serviço secreto de inteligência russa para promover Putin, recém-nomeado primeiro ministro. Em relação ao ato terrorista no teatro moscovita, em outubro de 2002, quando é lançado pela polícia russa gás incapacitante, matando todos os terroristas e, portanto, não restando ninguém para o interrogatório (estimam-se de 130 a 175 mortos), seis meses após o ocorrido, a jornalista Anna Politkovskaia entrevistaria um terrorista que se dizia ser checheno e que, segundo ele, foi recrutado pelos serviços de segurança da Rússia  - dizia também que os agentes de segurança russos sabiam de antemão do ataque ao teatro. Coincidentemente, o entrevistado viria a morrer em um acidente de carro pouco depois, e a jornalista assassinada em 2006.

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O que fica marcado nesse primeiro mandato de Putin é, portanto, o confronto com os oligarcas, muitos deles do ramo da comunicação, que cresceram no período Iéltsin, adquirindo um patrimônio que praticamente foi um presente do Estado (os bancos emprestavam dinheiro ao governo e recebiam ações das estatais como garantia; todos sabiam que o governo jamais pagaria os empréstimos e as empresas se tornariam propriedades dos bancos credores, gerando uma situação que Putin viria a herdar: todas as empresas estatais privatizadas pelos maiores grupos bancários). Era o caso de Khodorkovski, dono do Banco Menatep, que em 1995 adquiriu 45% das ações da Yukos (fornecedora de derivados de Petróleo) por um preço abaixo do mercado.

A prisão de Khodorkovski, em 2003, desencadeando a renúncia de Voloshin, o principal estrategista de Iéltsin e do novo governo de Putin, é expressão de uma nova oposição sistêmica à Família, que deixa de ser preponderante, como fora, nas décadas anteriores, governando o país. Estamos agora sob o signo dos Siloviki, que a intelectual Gleb Pavlovski cita, tendo como principal função corrigir as políticas do presidente por dentro. Enumeremos algumas características dessa nova paisagem: 1) o negócio pode ser privado, mas o Estado deve ter a sua gestão; 2) monopólios estatais ou holdings com participação do Estado nos setores da economia mais atraentes; 3) crescimento econômico via redistribuição de recursos (combustível e matéria prima), criação de monopólios estatais e controle mais acirrado das empresas; 4) aumento do aspecto violento do governo com os siloviki em todas as áreas da esfera política – das eleições à vida privada dos cidadãos; 5) nova plataforma ideológica populista de esquerda, voltada para pequenas empresas e para meios de comunicação de massa antioligárquicos e do setor público.

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No segundo mandato de Putin, a partir de 2004, já está consolidado um novo modelo, que eu definiria de ruptura em relação a Iéltsin - basta pensarmos que o primeiro-ministro, Kasianov , o último do grupo liberal dentro do Kremlin, viria a cair fora em 24 de fevereiro de 2004, portanto, antes das novas eleições.

Nesse segundo mandato de Putin e mesmo depois, como primeiro-ministro a partir de 2008, o grande personagem é Surkov, que viria a substituir o chefe de gabinete Alexandre Voloshin, ainda em 2003, por conta do conflito entre a empresa Yukos e os siloviki. É importante distinguirmos esses dois momentos do governo Putin: a “democracia controlada”, no seu primeiro mandato, que é fruto de ajustes internos como as reformas econômicas e políticas; e a “democracia soberana”, já sob o signo de Surkov, quando os problemas do país não são mais internos e sim externos. Sob essa nova configuração, acossado pelas revoluções coloridas, como na Ucrânia e Geórgia, vale retomarmos as palavras de Gleb Pavlovski, até porque fazem uma estranha ressonância com as dos melancólicos políticos analisados por Jacques Rancière em “O Ódio à Democracia”: “A civilização européia tem a necessidade de um inimigo constante... Na virada para o século passado, os inimigos eram os judeus; hoje são os russos... Os russos são os judeus do século XXI. Para mim, o Nashi (movimento juvenil pró-governo, fundado por Surkov, em oposição ao movimento “Pora!” de origem ucraniana) é o punho que a sociedade deve mostrar aos neonazistas”.

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Zygar chama atenção para o método Surkov, que já se fazia presente no “Nashi”, quase uma cópia do “Pora!”, mas que também vai se reproduzir nos discursos que escreveu tanto para Putin quanto para Medvedev, que se torna presidente em 2008. Usurpando slogans da oposição, é como se o culpado tomasse a posição de vítima. Vejamos esse discurso de Medvedev, no parlamento russo em 5 de novembro de 2008: “A burocracia amedronta o mundo empresarial para que ele ande na linha. Controla a Imprensa para que todos se calem. Interfere no processo eleitoral para que nenhum intruso chegue ao poder. Pressiona os tribunais para que exerçam uma justiça seletiva” (em outras palavras, critica o status quo, ainda que não tenha tentado mudar nada em relação às leis eleitorais; expõe as falhas da própria lei eleitoral, criada pelo autor do discurso para combater a ameaça de revolução colorida – a redução de número de partidos, o estreitamento das regras de registro partidário para que houvesse apenas partidos fantoches, a mudança do sistema misto de listas e voto distrital para apenas o sistema de listas, e a impossibilidade de candidatos independentes disputarem as eleições -; e, contraditoriamente, expõe a farsa, que é a proposta de aumento do mandato presidencial e dos membros do parlamento).

Essa ideia de farsa, que Rancière expõe naqueles que, no fundo, odeiam a democracia, vai estar ironicamente exposta no fracasso de Igor Schuvalov, assessor econômico de Putin e vice-primeiro-ministro. Na reunião do G8 em São Petersburgo, em 2006, tendo como tema principal a segurança energética, a Rússia retomava seu velho sonho do gasoduto sob o mar Báltico, alternativa à Yamal-Europa, que privava dos impostos com transporte, países como a Bielorrúsia, Países Bálticos, Polônia e Ucrânia, aos quais a Rússia fazia oposição. Desta vez tendo como aliado Schroeder, que viria a perder em 2005 as eleições para Angela Merkel, e, Berlusconi, representando respectivamente a North e South Stream, o grupo do G8, em janeiro de 2006, viria a optar por dois ou três fornecedores de gás, pondo por terra definitivamente um antigo sonho russo. Os políticos europeus, àquela altura, passaram a achar que a Nord e South Stream seriam um alicate gigantesco que a Rússia usaria para esmagar a Europa.

Em momento algum a guerra deixou de existir. Em fevereiro de 2009, na Conferência de Munique, Rússia e EUA apertam o botão de reinício de relações. E Hillary e Lavrov, um mês depois, teatralizam o ato nos EUA. Só que no botão, ao invés de estar escrito “perezagruzka”, cujo sentido é “reinício”, está grafado sem querer “peregruzka”, que tem o perigoso sentido de “sobrecarga”.

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