"Sofremos uma grave derrota": como a embaixada dos EUA interpretou a vitória de Salvador Allende
"O Chile votou calmamente para ter um estado marxista-leninista", escreveu o então embaixador dos EUA em Santiago sobre o triunfo de Salvador Allende em 1970
“O Chile votou calmamente para ter um estado marxista-leninista. A primeira nação no mundo a fazer essa escolha de modo livre e consciente.” Assim o então embaixador dos Estados Unidos em Santiago iniciava o telegrama confidencial que informaria sua capital sobre o triunfo de Salvador Allende na corrida eleitoral para a presidência da república em 1970. “Não há razão para acreditar que as forças armadas chilenas desencadearão uma guerra civil ou que qualquer outro milagre intervindo irá desfazer sua vitória”, prosseguia o chefe da representação norte-americana, ainda no primeiro parágrafo do documento, tornado público pelo Departamento de Estado, apenas parcialmente, décadas depois. “Isso terá o mais profundo efeito sobre a América Latina e além. Sofremos uma grave derrota. As consequências serão domésticas e internacionais. As repercussões terão impacto imediato em alguns países e efeito retardado em outros.”
Assim como hoje se defronta com a China, a liderança em Washington estava àquela altura entretida numa disputa de vida ou morte com a União Soviética. As consequências da perda da batalha do Chile expandiam-se, portanto, muito além dos riscos para investidores estadunidenses com centenas de milhões de dólares aplicados na indústria chilena do cobre, uma das maiores do mundo. A dolorosa derrota a que se referia o embaixador norte-americano ocorria no contexto da Guerra Fria. Nessa disputa pela hegemonia global, seria intolerável uma “nova Cuba” em seu hemisfério (o famoso “quintal”). Pior ainda seria uma “nova Cuba” capaz de constituir modelo alternativo de organização econômica, política e social através do voto popular, sem arranhar o verniz democrático das instituições liberais burguesas.
Para a embaixada norte-americana na Santiago de 1970, a ascensão de Allende ao poder no Chile demonstraria o acerto de uma suposta “política soviética” para a América Latina, na qual a tática revolucionária de Fidel Castro, bem-sucedida em Cuba na década de 1950, seria substituída pela via eleitoral, a via chilena. Em sua avaliação do resultado do pleito, o diplomata afirmava não ter havido surpresas durante um ano de campanha, nenhum evento inesperado que afetasse a decisão do eleitor. Ao registrar a precisão com que o Partido Comunista do Chile fora capaz de prever o resultado das urnas, o chefe da representação volta a emitir alertas dirigidos aos mais altos escalões de Washington: os comunistas explorariam ao máximo a vitória de Allende para impor ao Chile uma “estrutura comunista”.
Sobre a direita chilena, o diplomata não economizou elogios: “persegue seus interesses cega e gananciosamente, vagando numa miopia de estupidez arrogante”. Única força direitista minimamente estruturada, o Partido Nacional estaria mais interessado em vingança contra os democratas-cristãos, considerados traidores de classe, do que em unir forças contra o “inimigo de classe”: os comunistas. Por outro lado, o Partido Democrata Cristão, de Eduardo Frei, antecessor de Allende, teria cavado a própria cova ao fazer concessões de toda sorte à esquerda. Jogando a carta do antiamericanismo e legitimando Fidel Castro, avaliava o embaixador, os democratas-cristãos não causavam dano real aos Estados Unidos, mas destruíam a si mesmos. “Não merecem simpatia nem salvação”, sentenciou. (O comandante das forças armadas de Frei seria assassinado por grupo de extrema-direita, financiado e armado pela embaixada dos EUA, numa tentativa de impedir o avanço da esquerda.) “Desorganizada”, a direita chilena, “rica e egoísta”, não mereceu a confiança do embaixador. Ao que tudo indica, ninguém mereceria. “A desconfiança é a ‘mãe da segurança’, e não consigo imaginar sabedoria sem ela”, ponderou. Fica a lição.
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