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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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Soledad, a sua gravidez destruída e a ditadura

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Entre os horrores da ditadura, o caso da socialista Soledad Barrett é talvez o mais chocante. Não só, ou nem tanto pela crueldade, que de resto foi a lei nos assassinatos cometidos pelos ídolos desse presidente breve no Brasil.  Não só, ainda, pela agonia dos últimos minutos de Soledad, em que foi esmagada em sua condição de mulher, de mãe que não pôde ofertar ao mundo o seu fruto. E não só, enfim, pela traição que a matou, vinda de quem ela acreditava.    

Em Soledad Barrett, e por ela, se cruzam feridas que são o concreto da perversidade  e desonra dos servidores da ditadura. Quero dizer, devo dizer: como se fossem poucos o sofrimento e ânsia das últimas horas, desde o instante em que ela perguntou diante do seu fim, “por quê? por quê?”, lá na butique onde foi presa em Boa Viagem, no Recife. E como se essa tortura anunciada e cumprida fosse pequena, ela continuou a ser agredida depois da morte. Vale dizer, da sua dor a repressão quis tirar a condição de mãe que não se realizou. Em português mais simples, tentaram negar que Soledad Barrett estava grávida na hora da sua morte.  

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Nesta semana, soube de uma revelação que revolta qualquer ente que se julgue humano. Um historiador, em caráter reservado, fez o seguinte comentário a pessoas ligadas à guerreira assassinada: “O feto de Soledad foi arrancado de arame, puxado pelo pescoço”.  

Quando se põem lado a lado a versão do cabo Anselmo que nega a gravidez e essa brutalidade que afirma um aborto, o impacto é de um terremoto mental. Mas quando foi procurado, o historiador não quis mais falar sobre o assunto. Desautorizou a divulgação do seu nome, e alegou que a barbárie era informação de internet, que depois de checada se apagou e se perdeu nas trevas. Assim como os fetos cortados. Mas quem pesquisa a vida para sustentar em bases sólidas um texto, não pode aceitar conveniências. Descobri a frase aqui: “alguns legistas alegam que o feto de Soledad foi arrancado com um arame durante a tortura”. Está no endereço  http://coletivodegenerovioletaparra.blogspot.com/2014/04/soledad-barrett-viedma-1945-1973-1.html   

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Então chegamos ao médico-legista Pedro de França, que assinou documento sobre a morte de Soledad. Segundo o historiador, em sua primeira versão a pessoas ligadas a Soledad Barrett, esse médico tentou retirar documento do dossiê da guerreira no Arquivo Público. Procurado há pouco, o historiador adaptou o ocorrido para a versão de que o médico-legista apenas consultou o dossiê. Pela versão mais recente, o médico queria lembrar o laudo legal que havia assinado da morte de Soledad Barrett. Daí que fomos pesquisar o depoimento de Pedro de França, aos 74 anos de idade em novembro de 2015, na Comissão da Verdade de Pernambuco.  

Para não ser rigoroso, digamos que o depoimento dele é evasivo. Uma cômoda negação do que viu e assinou durante a ditadura. Em mais de um trecho, chega a ser tragicômico. Ele fala que viu cadáver de presa política “de passagem”.  Ou de modo literal: “- Vi o corpo assim ligeiramente” (!!!!).  Ou então, acompanhem como define a própria função de médico-legista: “a finalidade do médico era pra dizer se estava morto”. E descreve o seu papel de um modo técnico, por não ver a gravidez de Soledad Barrett:

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“O corpo é encaminhado pro IML pra fazer uma perícia tanatoscópica. Lá então o perito, o perito não, o médico legista faz o exame cadavérico e vê... se tem gravidez, ele constata....”. Como ele não estava no IML, de nada mais soube. E de tal maneira confunde o seu papel de médico-legista com a primeira versão da ditadura sore o massacre dos 6 mortos em 1973, que finge ignorar a história mais básica. Testemunha ocular de cadáveres na ditadura, depois do massacre ele nunca mais leu nem ouviu falar sobre o cabo Anselmo. Como aqui:  

“O cabo Anselmo morreu bem distante (da granja). Vejam só, disseram isso lá e a gente só veio saber pela imprensa.

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HUMBERTO VIEIRA – O cabo Anselmo não morreu.  

PEDRO FRANÇA – Não morreu não?”

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Esse esquecimento que tudo ignora faria sorrir, se não se referisse a crimes brutais. Vale  pena lembrar a versão do cabo Anselmo. Em 17 de outubro de 2011, ele se apresentou no Roda Viva. Estava à vontade, porque os entrevistadores pesquisaram mal a história, para confrontar suas esquivas com os depoimentos de testemunhas de 1973, ano das execuções de 6 militantes socialistas no Recife.

Em um dos momentos de calculado cinismo, Anselmo se refere a Soledad Barrett. Entrevistador: “O senhor contesta que ela estivesse grávida, como a versão histórica...?”

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Cabo Anselmo: “Se eu acreditar, como dizem os médicos, que o DIU era o mais seguro dos preservativos, eu contesto, sim”.

E o entrevistador levanta a bola para o traidor: “Então o feto encontrado lá não era dela?”

Cabo Anselmo: “Eu imagino que seria da Pauline. A Pauline estava grávida, inclusive teve problema de gravidez, e Soledad a levou até o médico”.

Mas há depoimentos de pessoas que sobreviveram aos crimes. Conheçam a palavra de Nadejda Marques, filha única de Jarbas Marques, um dos seis militantes socialistas mortos no Recife. Hoje, Nadejda Marques é doutora em Direitos Humanos e Desenvolvimento. Ela é autora de um livro ainda não traduzido no Brasil, o Born Subversive: A memoir of Survival, que narra a sua difícil sobrevivência depois da chacina da granja São Bento em 1973:  

“A minha avó Rosália, mãe de Jarbas Marques, conseguiu entrar no necrotério. Ela, entre os vários trabalhos que tinha, era também enfermeira. Ela conhecia a pessoa de Soledad. Minha avó sempre contava o que viu no fatídico janeiro de 1973. Meu pai, com marcas de tortura pelo corpo tinha marcas de estrangulamento no pescoço e água nos pulmões compatíveis com o resultado da tortura por afogamento. Os tiros no peito e na cabeça foram dados após sua morte. O corpo de Soledad, ensanguentado ainda, tinha restos de placenta e um feto dentro de um balde improvisado”.

Na pesquisa com sobreviventes aparecem muitos relatos de pessoas que conheceram Soledad, grávida, e pelo menos uma delas, enfermeira, a viu no necrotério destruída, com o aborto. O problema é saber se o feto viu antes a luz ou as trevas no necrotério.

Na Comissão da Verdade de Pernambuco, há depoimentos de pessoas que, de uma forma ou de outra, conviveram com o grupo assassinado em 1973, e que dão testemunho sobre a gravidez de Soledad, objeto de uma sua confidência, feita no final de 1972 a Maria Izidia da Conceição, mãe de Glauco de Almeida Gonçalves, Karl Marx de Almeida Gonçalves e Lênin de Almeida Gonçalves. É o que se depreende dos depoimentos a seguir:  

Glauco de Almeida Gonçalves Glauco Gonçalves:  

“Soledad estava grávida. Senão ela não tinha que ter dito à minha mãe, inclusive de ter compartilhado sintomas de gravidez com a minha mãe. Ela estava grávida”

Karl Marx de Almeida Gonçalves:  

“Bom, passou o tempo e quase todo final de semana, ou de quinze em quinze dias Jarbas vinha lá pra casa e Daniel é quem trazia ele num carro. Veja mesmo a presepada, ele vinha num carro e trazia Sol. A gente chamava Sol, Soledad. E ele apresentou Sol como esposa dele. Daí a uns meses Sol disse... Contou pra minha mãe que ela sentiu enjoo; conversou com minha mãe, por que sempre que a gente estava conversando com o marido, o pseudomarido, pseudocompanheiro, que era o Daniel, sempre que ele estava conversando com a gente ela estava com minha mãe e com minha cunhada lá na cozinha. E minha cunhada soube que ela estava grávida. Na verdade naquele momento estavam grávidas minha cunhada, a esposa de Jarbas, Natércia, Tercinha, e ela falou isso também. [...]  

Bom, mas escutem. Aí foi quando ela disse que estava grávida. Aí minha mãe conversou, ela pediu pra minha mãe ajudar, por que ela usava essas roupas compridas sabe? Depois é que eu soube que era o problema da suástica na perna, eu vim saber através de você, mas ela também não mostrava a perna nem ninguém tinha essa curiosidade, e então era minha mãe que ajudava a folgar as roupas dela. Ela não estava com essa barriga toda porque ela era bem magrinha, feito você assim (refere-se Hilda Torres), esbelta, aí não apresentava muito, mas iria acontecer e ela viajava muito com esse Daniel e podia precisar, aí minha mãe ajudava, fazia coisas de crochê pra o filho que ia nascer... A filha, porque ela achava que era uma menina”.

A história afinal dá razão à visão testemunhada pela grande advogada Mércia Albuquerque:  

“Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror. Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela. O que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando coagulou, ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto estava lá nos pés dela. Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror”.

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