Soledad Barrett e Mércia Albuquerque, Lady Tempestade
A memória de Mércia Albuquerque e Soledad Barrett ressurge com força em relato sobre resistência, dor e coragem na ditadura
No Recife, o espetáculo “Lady Tempestade” começa às 20 horas no Teatro de Santa Isabel até o próximo sábado. Avisaram que o público deveria chegar 1 hora antes pra pegar os ingressos grátis, e, precavido, cheguei às seis e meia da noite. Pois sim, a fila dobrava todo o prédio do Santa Isabel. Resultado: não houve mais ingressos para todo o público. Não pude entrar, voltei pra casa sem poder ver os diários da grande advogada Mércia Albuquerque no teatro. Frustrado, mas com a certeza de que a memória de Mércia Albuquerque na ditadura é um sucesso no Recife. Aqui, em um post do Face
Só me resta divulgar o que escrevi sobre ela em dois romances. No primeiro, em “Soledad no Recife”, recupero o seu imortal depoimento sobre como encontrou o cadáver da guerrilheira Soledad Barrett em 1973:
“Eu tomei conhecimento de que seis corpos se encontravam no necrotério.... em um barril estava Soledad Barrett Viedma. Ela estava despida, tinha muito sangue nas coxas, nas pernas. No fundo do barril se encontrava também um feto.
Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror. A boca de Soledad estava entreaberta. Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela.
O que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando coagulou, ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto estava lá nos pés dela. Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror”.
Talvez eu devesse parar por aqui. A carga já se encontra insuportável para a infâmia da ditadura. Mas continuo e não sou sádico. Continuo porque devo falar da solidariedade da advogada Mércia Albuquerque. No romance “A mais longa duração da juventude”, narro a sua fraternidade, que era sem medida:
“A advogada não é alta, nem suave ou feminina, quero dizer, naquele sentido de bailarina delicada de porcelana. Pelo contrário, em vez de amparável, porque a fina louça podia quebrar, dela vem uma força moral que abriga, como tem abrigado mais de uma pessoa, físico e alma torturada no Recife:
‘Há os loucos, os enlouquecidos. Há os covardes, que se acovardam. Há os desesperados, que caminham para a morte”, ela escreverá num diário, em que completará: ‘Jarbas era do terceiro tipo. Ele estava desesperado’. primeiro anotará numa linha do seu caderno íntimo. Ela olha para Jarbas com simpatia, como se o conhecesse há muito, em outros corpos, mas em igual situação. E por isso lhe propõe uma saída, que Jarbas não consegue ver na hora da aflição:
- Por que você não foge?
- Eu não posso, doutora. Como ficará minha companheira? Ela é muito frágil. Eu não posso fugir e deixá-la. A repressão vai pra cima dela.
- Então fujam os dois. Fuja com a sua esposa.
. - Mas não posso fugir com a nossa filhinha. Ela só tem um mês de nascida.
- Eu fico com ela. Podem fugir, que eu fico com ela.
Jarbas cai sobre a cadeira. Está comovido com a oferta e a generosidade da advogada. Tem os olhos úmidos.
- Muito obrigado, irmã – ele fala “irmã”, sem querer, porque ela lhe parece agora uma das freiras da Igreja que se entregam de coração à luta. – Desculpe: doutora. Muito obrigado.
- Não tem de que se desculpar, todos somos irmãos.
Mércia Albuquerque é uma pessoa cristã, com acessos místicos, de se pôr um missão na terra. Quem a vê, não pode deixar de associá-la a uma freira, das valorosas de coragem e ardor. Ela, apesar da crença de fé religiosa, é capaz de ações práticas em meio ao torvelinho de emoções e terror. Isso lhe dá um distanciamento, um espaço para anotar no diário íntimo:
‘Jarbas, quando me disse que Fleury estava no Recife, ele tinha certeza disso, ele estava em pânico. Ele estava vivendo momentos de muita angústia e amargura, porque ele nada tinha a ver com as prisões dos companheiros.
Eu conversei com ele que fugisse, ao que ele se negou dizendo que isso não faria, porque zelava pela segurança da filha e da esposa’. E Jarbas, na defesa sem armas, na imaginada que pode dar às pessoas do seu extremado carinho, registra o diário da advogada: ‘Eu pedi que ele deixasse a criancinha sob meus cuidados. Ele me falou que não ia levar a esposa para uma aventura, porque ela era uma pessoa frágil, e seria também assassinada. Aí era pior, porque a menina ficaria órfã, sem ninguém’.
E depois o reencontra no necrotério: ‘Jarbas, que eu conhecia muito, estava também numa mesa, estava com uma zorba azul-clara, e tinha uma perfuração de bala na testa e outra no peito. E uma mancha profunda no pescoço, de um lado só, como se fosse corda, e com os olhos abertos e a língua fora da boca’ ”.
Paro aqui. Hoje é sexta-feira e precisamos respirar.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

