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Pepe Escobar

Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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Somos todos estóicos agora

A Rota da Seda Filosófica tal como celebrada em um aeroporto italiano: o encontro dos estoicismos chinês e greco-latino

(Foto: MANUEL SILVESTRI/REUTERS)
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Por Pepe Escobar, no Asia Times

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

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No início desta semana, uma delegação de pessoal médico chinês desembarcou no aeroporto de Malpensa, próximo a Milão, vindos de Xangai em um voo especial da China Eastern, que trazia 400.000 máscaras e 17 toneladas de equipamento. A faixa de saudação que os visitantes abriram ainda na pista de pouso, impressa nas cores vermelha e branca, dizia:  "Somos ondas do mesmo mar, folhas da mesma árvore, flores do mesmo jardim".

Em um gesto de suprema elegância intercultural, foi escolhida uma frase inspirada na poética de Sêneca, um estóico. O impacto em toda a Itália, onde ainda se estudam os clássicos, foi imenso.

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Os chineses foram previamente consultados e preferiram Sêneca a um provérbio  chinês, porque para a China, um estado-civilização de cinco mil anos que já teve que enfrentar talvez mais que sua cota de casos de luan ("caos"), não há nada mais rejuvenescedor que o pós-caos.

A China está doando kits de testes de coronavírus ao Camboja. A China enviou aviões repletos de máscaras, ventiladores - e pessoal da área de saúde - para a Itália e a França. A China enviou pessoal médico ao Irã, atualmente sob as sanções ilegais e unilaterais dos Estados Unidos - e ao Iraque, que o Pentágono voltou a bombardear. A China está fornecendo ajuda a todo o território eurasiano, das Filipinas à Espanha. 

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O presidente Xi Jinping, em um telefonema ao primeiro-ministro italiano Giuseppe Conte, comprometeu-se a, na esteira do Covid-19, estabelecer uma Rota da Seda da Saúde, paralelamente às Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa Cinturão e Rota.

Então, finalmente, aí está a Rota da Seda Filosófica celebrada no aeroporto italiano, o encontro do estoicismo greco-latino com o estoicismo chinês.

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Escravo, orador, imperador 

O estoicismo, na Grécia Antiga, era cultura pop - tendo um alcance com o qual as sofisticadas escolas platônica e aristotélica não podiam sequer sonhar. Da mesma forma que epicuristas e céticos, os estóicos deviam muito a Sócrates, que sempre insistiu que a filosofia tinha que ser prática e capaz de alterar nossas prioridades na vida.

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Os estóicos davam enorme importância à ataraxia - estar livre de perturbações - que viam como sendo o estado de mente ideal. O sábio é imune às perturbações porque a chave da sabedoria é saber a que não dar importância.  

Portanto, os estóicos eram socráticos no sentido de tentarem oferecer paz de espírito ao homem comum. Era como se fosse uma versão helenística do Tao.

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O grande asceta Antístenes foi companheiro de Sócrates e precursor dos estóicos. Os primeiros estóicos tomaram seu nome do pórtico - a stoa - do mercado ateniense, onde seu fundador oficial, Zeno de Citium (333-262 A.C.) costumava ficar. Mas a figura realmente importante foi Crisipo, um filósofo especializado em lógica e  física, que talvez tenha escrito 750 livros, dos quais nenhum sobreviveu. 

O Ocidente veio a considerar um trio romano - Sêneca, Epitecto e Marco Aurélio - como os maiores de todos os estóicos. Eles são os modelos do estoicismo tal como o conhecemos hoje. 

Epicteto (50-120 A.C.) nasceu escravo em Roma e posteriormente mudou-se para a Grécia, onde passou a vida examinando a natureza da liberdade.

Sêneca (5 A.C. - 65 A.D.), um orador fabuloso e dramaturgo razoável, foi exilado na Córsega depois de ser falsamente acusado de ter cometido adultério com a irmã do Imperador Cláudio. Mais tarde, entretanto, ele foi trazido de volta a Roma para educar o jovem Nero, e acabou sendo mais ou menos forçado por este a cometer suicídio. 

Marco Aurélio, um humanista, era o protótipo do imperador relutante, tendo vivido no turbulento século II da era cristã, aparecendo como um precursor Schopenhauer: Marco via a vida como muito chata mesmo.

Os professores de Zeno, na verdade, eram cínicos (o apelido dado a eles vinha de uma palavra grega que significava "semelhante a um cão", "vira-latas", "incivilizado"), cuja intuição central era a de que nada importava mais que a virtude. Portanto, os adereços da sociedade convencional tinham quer ser rebaixados à condição de  distrações irrelevantes, na melhor das hipóteses. Poucos dos cínicos de hoje - que mal merecem esse nome - se qualificariam. 

É esclarecedor saber que as classes altas do Império Romano, o 1% da época, viam como  bastante sólidas as ideias de Zeno, enquanto, previsivelmente, zombavam do primeiro punk da história, Diógenes, o Cínico, que se masturbava em praça pública e carregava uma lanterna tentando encontrar um verdadeiro homem.

Da mesma forma que para Heráclito, um dos elementos cruciais da busca da paz de espírito para os estóicos era aprender a conviver com o inevitável. Esse desejo de serenidade é um de seus vínculos com os  epicuristas. 

Os estóicos afirmavam terminantemente  que a maioria das pessoas não faz a menor ideia sobre o universo onde vive (imaginem a reação deles às redes sociais). Elas, portanto, acabam tendo atitudes confusas com relação à vida. Ao contrário de Platão e Aristóteles, os estóicos eram ferrenhamente materialistas. Eles rejeitavam de todo essas conversas sobre "Formas" em um mundo ideal platônico. Para os estóicos, tudo isso não passava de conceitos na mente de Platão.

Para os epicuristas, o mundo é o produto não-planejado de forças caóticas.

Os estóicos, ao contrário, viam o mundo como um todo organizado até o mínimo detalhe. 

Para os epicuristas, o curso da natureza não é predeterminado: o destino intervém na forma de guinadas aleatórias de átomos. Destino, na Grécia Antiga, na verdade significava Zeus.

Para os estóicos, tudo acontece segundo o destino: uma cadeia inexorável de causa e efeito, desenvolvendo-se exatamente da mesma forma, repetidamente, em um ciclo cósmico de criação e destruição – uma ideia mais ou menos precursora do eterno retorno de Nietzsche. 

Aceitação resignada

Os estóicos foram fortemente influenciados por Heráclito. A Física estóica tratava da noção de interpenetração:  o mundo físico como uma mistura de substâncias em constante agitação, uma notável precursora da equivalência da energia e da matéria em Einstein.

O que o mundo pós-moderno preserva dos estóicos é a ideia de aceitação resignada - o que faz total sentido se o mundo de fato funciona como descrevem  suas ideias. Se o destino rege o mundo, e praticamente nada do que acontece está em nossas mãos, então a realpolitik seria aceitar "que tudo aconteça como de fato acontece", nas palavras imortais de Epitecto.   

Portanto, não faz o menor sentido nos preocuparmos com coisas que não podemos mudar. E não faz sentido nos apegarmos a coisas que um dia poderemos perder. (Mas tentem vender essa ideia aos Mestres do Universo do capitalismo financeiro).  

Então, o Caminho, segundo os estóicos, é possuir apenas o essencial, é viajar com pouca bagagem. Lao Tzu aprovaria. Afinal, qualquer coisa que podemos perder já está mais ou menos perdida - e assim nos protegemos de antemão contra os piores golpes da vida. 

Talvez o segredo supremo dos estóicos seja a distinção feita por Epitecto entre as coisas que estão sob nosso controle - nossos pensamentos e desejos - e as que não estão: nossos corpos, nossas famílias, nossos bens, nosso quinhão na vida, todas as coisas que a expansão do Covid-19 está agora pondo em cheque.   

O que Epitecto nos diz é que direcionemos nossas emoções para focar aquilo que está em nosso poder e ignoraremos o resto. Então, "ninguém jamais será capaz de compeli-lo ao que quer que seja, ninguém o estorvará - e não haverá mal que possa tocá-lo". 

O poder, em última análise, é irrelevante. 

Sêneca ofereceu um guia definitivo que podemos aplicar a diversas cepas do 1%: "Nego que a riqueza seja boa, porque, se fosse, ela tornaria bons os homens. Uma vez que aquilo que é encontrado nas mãos dos maus não pode ser chamado de bom, recuso-me a aplicar esse termo à riqueza". 

Os estóicos ensinavam que entrar para a vida pública significava disseminar a virtude e lutar contra o vício. Trata-se de uma questão muito séria que envolve dever, disciplina e auto-controle. Isso ajuda muito a explicar por que  mais de 70% of italianos agora aplaudem a conduta do primeiro-ministro na luta contra o Covid-19. Conte, sem que ninguém esperasse, mostrou estar à altura da ocasião, como um neo-estóico. 

Os estóicos encaravam a morte como um lembrete útil de nosso próprio destino e da insignificância última das coisas do mundo. Marco Aurélio encontrava enorme consolo na brevidade da vida: "Daqui a muito pouco você será ninguém e estará em parte alguma, como Adriano e Augusto não são mais ninguém". Quando as circunstâncias tornavam impossível viver segundo os ideais da virtude estóica, a morte era sempre um Plano B viável.

Epicteto dizia também que não devemos nos preocupar muito com o que acontece com nosso corpo. Às vezes ele parecia encarar a morte como uma saída aceitável para qualquer desventura.

Em sua melhor forma, os estóicos deixavam bem claro que a diferença entre a vida e a morte era insignificante, se comparada à diferença entre a virtude e o vício. 

Daí a ideia de suicídio nobre. O heroísmo estóico é evidente na vida e morte de Catão, o Jovem, tal como relatado por Plutarco. Catão era adversário ferrenho de César, e sua integridade ditou-lhe que a única saída possível seria o suicídio.

Segundo o lendário relato de Plutarco, Catão, em sua última noite, durante o jantar, defendeu algumas teses estóicas, retirou-se a seu quarto para ler o Fédon de Platão - no qual Sócrates afirma que o verdadeiro filósofo vê a vida como uma preparação para a morte - e se matou. É claro que ele se converteu em um superstar estóico para toda a eternidade. 

Os estóicos ensinavam que a riqueza, o status e o poder são em última análise irrelevantes. Aqui também, Lao Tzu concordaria. A única coisa que pode elevar um homem acima dos demais é a virtude superior - da qual todos são capazes, pelo menos em princípio. Assim, os estóicos acreditavam que somos todos irmãos e irmãs. Sêneca diz: "A Natureza nos fez parentes ao nos criar a partir dos mesmos materiais e para o mesmo destino". 

Imaginem um sistema construído sobre uma devoção altruísta ao bem-estar dos demais, e contrária a toda vaidade. Certamente que não é disso que trata o turbo-capitalismo financeiro causador de desigualdade.  

Epicteto: "O que devemos então dizer a cada adversidade que se abate sobre nós? 'Eu estava praticando para isso, era para isso que eu estava treinando' ". Será que o Covid-19 mostrará a uma onda global de praticantes neo-estóicos que existe um outro caminho?

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