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Alex Solnik

Alex Solnik, jornalista, é autor de "O dia em que conheci Brilhante Ustra" (Geração Editorial)

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Sopa de medo

Um poema

Desenho (Foto: Miguel Paiva)

Mamãe, o que temos para o almoço?

“Sopa de medo”.

Mamãe, eu tenho medo de atravessar

a praça, 

“tem medo do que?”

do capim alto,

sempre que passo tenho que

passar correndo para que os arbustos

não me ataquem

 

E o papai foi pintar as paredes

do nosso primo?

“Não, ele tem medo, o vizinho

não pode saber, se contar pra polícia

mandam teu pai pra Sibéria”

 

Quem manda agora?

É Stalin?

 

Na hora de dormir, mamãe,

não esqueça por favor de cobrir

bem meus pés com o cobertor

porque se ficar uma parte para fora

alguém pode me puxar pelo pé

e me raptar 

 

“Vamos para debaixo da cama,

está na hora”

Na hora do que, mamãe?

“Vamos ouvir rádio.

A Voz da América”.

 

Mas por que embaixo da cama?

“Para o vizinho não ouvir.

Se ele ouvir e contar para a

polícia nunca mais

ouviremos a Voz da América”.

 

Quem manda agora?

Stalin? Lênin? Kruschev?

 

“Mamãe, quando eu vou

servir o Exército?”

“Nunca, no Exército nunca,

quem vai servir não

volta mais. Você não vai.

Tenho medo que você

não volte”.

 

Chegou uma carta da América.

Do meu tio da América.

Lá está ele, num chalé de palha

à beira da praia,

debaixo de palmeiras,

com seu quepe de capitão

e fuma cachimbo,

lá está meu tio da América

 

Silêncio, ninguém pode saber.

É perigoso ter parentes na América.

É perigoso receber cartas

de parentes da América.

 

 

Raios e trovões cortam

o céu escuro,

o vento está furioso

arrasta tudo o que 

vê pela frente

 

Meus pais estão na charrete

prontos para partir

o cavalo empina

assustado pelo trovão

eu grito, choro,

não quero que eles partam

“tenho medo de ficar

sozinho”

tento segurar o cavalo,

a charrete,

tento me desvencilhar

da mão da criada

“por favor, não partam,

eu sei que vocês

não vão voltar”

 

Mamãe, o que temos para jantar?

“Sopa de medo”

 

Por que você acordou tão cedo,

mamãe? Está escuro lá fora

e você está pronta para sair

o vento zune na janela

lá fora está um breu

 

“Vou para a fila do açougue,

tenho que chegar antes dos outros

antes da fila dobrar o quarteirão

antes que a carne acabe

tenho medo que a carne acabe

e teu pai fique sem carne

teu pai sem carne perde as forças

não consegue trabalhar

tenho medo de ser a última da fila”

 

Tenho medo de levar uma surra

do meu irmão mais velho

ele me olha estranho

me olha com olhos de raiva

vigia meus passos não joga mais

futebol comigo com a bola

de borracha que

ganhei de aniversário

 

Eu achei o boletim dele

que estava perdido

que ele disse que estava perdido

eu o achei entre os galhos

da árvore que fica em frente

à casa da velha bruxa

 

eu voltei feliz para casa

“mamãe, achei o boletim”

e ela abriu o boletim

que meu irmão perdeu

ou disse que perdeu

e ela foi ficando pálida

 

Notas baixas, notas vermelhas,

e ela foi ficando mais pálida

e uma lágrima solitária

desceu do olho esquerdo

 

eu a olhava e ela não dizia nada

se ficou triste por que

meu irmão mentiu

e ela não admitia mentiras

ou porque meu irmão

tirou notas baixas

e ela sempre pediu

nota 10

ou porque meu irmão

teve medo de mostrar

o boletim

 

“Vamos pegar o trem

vamos para Kiev”, disse a mamãe

já me pegando pela mão

rumo à estação

pegar um trem para Kiev

só eu e ela

só eu e minha mãe

 

“seu tio é uma pessoa importante”

disse minha mãe

é tão importante que

tem foto dele nos jornais

as fotos que ele faz

 

no apartamento do meu tio

havia uma caixa em cima da cômoda

e à noite ele virava um botão

a caixa ficava iluminada

e tinha muita gente lá dentro

umas pessoas muito pequenas

que falavam baixinho

eu nunca tinha visto

gente daquele tamanho

 

eram iguais a nós

mas muito pequenos

mas devem ser muito

mais espertos que nós

porque conseguem

viver dentro de uma caixa

e parecem felizes

 

sim, alguns são tristes

mas deve ser bem mais

fácil viver dentro de uma caixa

fica tudo muito perto

ninguém se perde

 

eu ouvi meu tio do

outro lado da porta

gritar com minha mãe

que ela não podia fazer

isso com ele

era seu irmão maior

aquilo não podia ser

na situação dele

“eu proíbo”

ele falava alto, mais alto

“vai me arruinar?”

 

no trem de volta

perguntei pra minha mãe

porque meu tio

gritou com ela

eu ouvi meu tio

gritar com ela

eu fiquei triste

porque meu tio

gritou com ela

 

“ele tem medo

ele gritou porque tem medo

quando alguém grita

é medo medo medo”

 

eu tenho medo do meu irmão

que tem medo da minha mãe

que tem medo de seu irmão

que tem medo do Kremlin

que tem medo de Washington

 

Mamãe, o que você

está cozinhando?

“Sopa de medo.

Todo dia cozinho

uma sopa de medo”.

 

 

 

 

 

 

 

II

 

E então veio o dia

em que ao meio-dia

o sol não se via

nem mais tarde

nem mais cedo

e eu perguntei ao menino

que passava na calçada

“menino que passa na calçada,

nesta cidade nunca se vê o sol?

Por que o céu nesta cidade

não é azul?”

 

E o menino me olhou,

me olhou de novo e não disse

nada, ficou bravo eu acho

ficou bravo comigo

e não disse nada

 

Depois veio outro menino

batendo a bola no chão

e eu sentado no último degrau 

da escada do prédio

eu perguntei ao menino

por que o céu nesta cidade

está sempre cinza e triste

e ele parou

me encarou

 

“eu não posso falar com você”,

ele disse, “meu pai falou que

eu não devo falar com você

nem brincar com você”

 

Atravessou a calçada o mais

depressa que pôde, sem olhar

para trás, como quem foge

e desapareceu

quando estava bem longe

 

eu subi as escadas correndo

doze lances de seis andares

eu subi correndo

segurando meu coração

que parecia saltar do peito

eu subi morrendo

 

Quem manda agora?

É Stalin? É Gomulka?

 

“Mamãe, o que são

esses caixotes no meio da sala?”

“É onde guardamos

nosso medo,

trouxemos o medo

de Drogobytch

para Walbjech,

levamos nosso medo

conosco por toda parte”.

 

“Ninguém gosta de nós”

disse o papai

ninguém gosta de nós

 

Vivemos em cima de caixotes

dormimos em cima de caixotes

comemos em cima de caixotes

“Mamãe, o que temos para a janta?”

“Você já sabe”

 

“Mamãe, a professora me chamou

para a frente da classe

e eu fiquei com medo

porque eu não sei direito falar em

polonês

por isso fiquei com medo

e quando cheguei na frente

e pensei que ela só ia

pedir para eu apagar a lousa

ela falou bem alto

para toda a classe ouvir

 

‘por que você não me

deu boa noite ontem à noite

quando eu passei na calçada

e você me viu, mas virou

a cara? É assim que se

comportam os meninos

que vêm da Ucrânia?”

 

agora quase todos os alunos

estavam rindo de mim

alguns atiravam

bolinhas de papel em mim

eu não disse nada

porque eu fiquei com medo

de dizer que não dei boa noite

porque tive medo dela

eu não quis

dizer que tive medo dela

porque tinha medo dela

 

e então a professora

sem dizer mais nada

torceu a minha orelha

a orelha que estava

mais perto dela

torceu até ficar vermelha

eu não sei se o que

mais doeu foi a orelha

ou meus colegas rindo

da orelha

que ficou vermelha”

 

eu tenho medo do meu irmão

que tem medo da minha mãe

que tem medo do exército

que tem medo do inimigo

 

eu tenho medo

do menino que

tem medo de mim

que tenho medo

da professora

que não tem medo

de torcer minha orelha

 

“Mamãe, o que você

está cozinhando?”

 

 

eu estou na praça

onde ninguém passa

a mamãe falou: espere

por nós na praça

o papai falou:

espere por nós

na praça

e eu estou na praça

onde ninguém passa

 

só o tempo passa

passa por mim

que estou na praça

sozinho perto do fim

do sol

que ameaça

ir embora

me deixando

mais sozinho

na praça

 

minha dor continua

agora vem a lua

mas minha mãe não vem

meu pai não se insinua

eu olho para a lua

que olha para mim

 

os bancos estão vazios

e a luz embaçada

não tenho vizinhos

nem cães na calçada

não posso voltar

para a casa

que está fechada

 

a mamãe mandou

esperar na praça

mas ela não volta

e a noite me abraça

eu quero gritar

se alguém pode me levar

até onde ela está

 

o vento sopra no meu

ouvido

tua mãe não vai voltar

o vento sopra no

meu ouvido

você nunca mais vai

perguntar

o que ela vai cozinhar

 

e de repente do meio

do escuro

surge minha mãe

e meu pai

e me abraçam e beijam

e eu digo que estava com

medo que não voltassem

e eles me dizem que

estavam com medo

que não me encontrassem

 

E no jantar minha mãe

serviu sopa 

aquela sopa

e fomos dormir

bem alimentados

com a sopa de medo

 

a neve do ano novo

a nova neve do ano

faz um barulho gozado

quando piso

vou pela rua dançando

todos estão dançando

na rua da neve branca

todos estão cantando

salve a vodka

salve a dança

 

chegaram os papéis

de Varsóvia

que esperamos

por um ano

mas minha mãe avisou

que eu não podia

parecer feliz

para ninguém saber

que estávamos felizes

por partir

 

porque isso até

podia parecer o

mesmo que trair

mas nós só queremos ir

e eu tive que aguentar

três dias dançando e

cantando

mas sem rir

 

Quem manda agora?

 

 

 

 

 

 

 

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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