Sopa de medo
Um poema
Mamãe, o que temos para o almoço?
“Sopa de medo”.
Mamãe, eu tenho medo de atravessar
a praça,
“tem medo do que?”
do capim alto,
sempre que passo tenho que
passar correndo para que os arbustos
não me ataquem
E o papai foi pintar as paredes
do nosso primo?
“Não, ele tem medo, o vizinho
não pode saber, se contar pra polícia
mandam teu pai pra Sibéria”
Quem manda agora?
É Stalin?
Na hora de dormir, mamãe,
não esqueça por favor de cobrir
bem meus pés com o cobertor
porque se ficar uma parte para fora
alguém pode me puxar pelo pé
e me raptar
“Vamos para debaixo da cama,
está na hora”
Na hora do que, mamãe?
“Vamos ouvir rádio.
A Voz da América”.
Mas por que embaixo da cama?
“Para o vizinho não ouvir.
Se ele ouvir e contar para a
polícia nunca mais
ouviremos a Voz da América”.
Quem manda agora?
Stalin? Lênin? Kruschev?
“Mamãe, quando eu vou
servir o Exército?”
“Nunca, no Exército nunca,
quem vai servir não
volta mais. Você não vai.
Tenho medo que você
não volte”.
Chegou uma carta da América.
Do meu tio da América.
Lá está ele, num chalé de palha
à beira da praia,
debaixo de palmeiras,
com seu quepe de capitão
e fuma cachimbo,
lá está meu tio da América
Silêncio, ninguém pode saber.
É perigoso ter parentes na América.
É perigoso receber cartas
de parentes da América.
Raios e trovões cortam
o céu escuro,
o vento está furioso
arrasta tudo o que
vê pela frente
Meus pais estão na charrete
prontos para partir
o cavalo empina
assustado pelo trovão
eu grito, choro,
não quero que eles partam
“tenho medo de ficar
sozinho”
tento segurar o cavalo,
a charrete,
tento me desvencilhar
da mão da criada
“por favor, não partam,
eu sei que vocês
não vão voltar”
Mamãe, o que temos para jantar?
“Sopa de medo”
Por que você acordou tão cedo,
mamãe? Está escuro lá fora
e você está pronta para sair
o vento zune na janela
lá fora está um breu
“Vou para a fila do açougue,
tenho que chegar antes dos outros
antes da fila dobrar o quarteirão
antes que a carne acabe
tenho medo que a carne acabe
e teu pai fique sem carne
teu pai sem carne perde as forças
não consegue trabalhar
tenho medo de ser a última da fila”
Tenho medo de levar uma surra
do meu irmão mais velho
ele me olha estranho
me olha com olhos de raiva
vigia meus passos não joga mais
futebol comigo com a bola
de borracha que
ganhei de aniversário
Eu achei o boletim dele
que estava perdido
que ele disse que estava perdido
eu o achei entre os galhos
da árvore que fica em frente
à casa da velha bruxa
eu voltei feliz para casa
“mamãe, achei o boletim”
e ela abriu o boletim
que meu irmão perdeu
ou disse que perdeu
e ela foi ficando pálida
Notas baixas, notas vermelhas,
e ela foi ficando mais pálida
e uma lágrima solitária
desceu do olho esquerdo
eu a olhava e ela não dizia nada
se ficou triste por que
meu irmão mentiu
e ela não admitia mentiras
ou porque meu irmão
tirou notas baixas
e ela sempre pediu
nota 10
ou porque meu irmão
teve medo de mostrar
o boletim
“Vamos pegar o trem
vamos para Kiev”, disse a mamãe
já me pegando pela mão
rumo à estação
pegar um trem para Kiev
só eu e ela
só eu e minha mãe
“seu tio é uma pessoa importante”
disse minha mãe
é tão importante que
tem foto dele nos jornais
as fotos que ele faz
no apartamento do meu tio
havia uma caixa em cima da cômoda
e à noite ele virava um botão
a caixa ficava iluminada
e tinha muita gente lá dentro
umas pessoas muito pequenas
que falavam baixinho
eu nunca tinha visto
gente daquele tamanho
eram iguais a nós
mas muito pequenos
mas devem ser muito
mais espertos que nós
porque conseguem
viver dentro de uma caixa
e parecem felizes
sim, alguns são tristes
mas deve ser bem mais
fácil viver dentro de uma caixa
fica tudo muito perto
ninguém se perde
eu ouvi meu tio do
outro lado da porta
gritar com minha mãe
que ela não podia fazer
isso com ele
era seu irmão maior
aquilo não podia ser
na situação dele
“eu proíbo”
ele falava alto, mais alto
“vai me arruinar?”
no trem de volta
perguntei pra minha mãe
porque meu tio
gritou com ela
eu ouvi meu tio
gritar com ela
eu fiquei triste
porque meu tio
gritou com ela
“ele tem medo
ele gritou porque tem medo
quando alguém grita
é medo medo medo”
eu tenho medo do meu irmão
que tem medo da minha mãe
que tem medo de seu irmão
que tem medo do Kremlin
que tem medo de Washington
Mamãe, o que você
está cozinhando?
“Sopa de medo.
Todo dia cozinho
uma sopa de medo”.
II
E então veio o dia
em que ao meio-dia
o sol não se via
nem mais tarde
nem mais cedo
e eu perguntei ao menino
que passava na calçada
“menino que passa na calçada,
nesta cidade nunca se vê o sol?
Por que o céu nesta cidade
não é azul?”
E o menino me olhou,
me olhou de novo e não disse
nada, ficou bravo eu acho
ficou bravo comigo
e não disse nada
Depois veio outro menino
batendo a bola no chão
e eu sentado no último degrau
da escada do prédio
eu perguntei ao menino
por que o céu nesta cidade
está sempre cinza e triste
e ele parou
me encarou
“eu não posso falar com você”,
ele disse, “meu pai falou que
eu não devo falar com você
nem brincar com você”
Atravessou a calçada o mais
depressa que pôde, sem olhar
para trás, como quem foge
e desapareceu
quando estava bem longe
eu subi as escadas correndo
doze lances de seis andares
eu subi correndo
segurando meu coração
que parecia saltar do peito
eu subi morrendo
Quem manda agora?
É Stalin? É Gomulka?
“Mamãe, o que são
esses caixotes no meio da sala?”
“É onde guardamos
nosso medo,
trouxemos o medo
de Drogobytch
para Walbjech,
levamos nosso medo
conosco por toda parte”.
“Ninguém gosta de nós”
disse o papai
ninguém gosta de nós
Vivemos em cima de caixotes
dormimos em cima de caixotes
comemos em cima de caixotes
“Mamãe, o que temos para a janta?”
“Você já sabe”
“Mamãe, a professora me chamou
para a frente da classe
e eu fiquei com medo
porque eu não sei direito falar em
polonês
por isso fiquei com medo
e quando cheguei na frente
e pensei que ela só ia
pedir para eu apagar a lousa
ela falou bem alto
para toda a classe ouvir
‘por que você não me
deu boa noite ontem à noite
quando eu passei na calçada
e você me viu, mas virou
a cara? É assim que se
comportam os meninos
que vêm da Ucrânia?”
agora quase todos os alunos
estavam rindo de mim
alguns atiravam
bolinhas de papel em mim
eu não disse nada
porque eu fiquei com medo
de dizer que não dei boa noite
porque tive medo dela
eu não quis
dizer que tive medo dela
porque tinha medo dela
e então a professora
sem dizer mais nada
torceu a minha orelha
a orelha que estava
mais perto dela
torceu até ficar vermelha
eu não sei se o que
mais doeu foi a orelha
ou meus colegas rindo
da orelha
que ficou vermelha”
eu tenho medo do meu irmão
que tem medo da minha mãe
que tem medo do exército
que tem medo do inimigo
eu tenho medo
do menino que
tem medo de mim
que tenho medo
da professora
que não tem medo
de torcer minha orelha
“Mamãe, o que você
está cozinhando?”
eu estou na praça
onde ninguém passa
a mamãe falou: espere
por nós na praça
o papai falou:
espere por nós
na praça
e eu estou na praça
onde ninguém passa
só o tempo passa
passa por mim
que estou na praça
sozinho perto do fim
do sol
que ameaça
ir embora
me deixando
mais sozinho
na praça
minha dor continua
agora vem a lua
mas minha mãe não vem
meu pai não se insinua
eu olho para a lua
que olha para mim
os bancos estão vazios
e a luz embaçada
não tenho vizinhos
nem cães na calçada
não posso voltar
para a casa
que está fechada
a mamãe mandou
esperar na praça
mas ela não volta
e a noite me abraça
eu quero gritar
se alguém pode me levar
até onde ela está
o vento sopra no meu
ouvido
tua mãe não vai voltar
o vento sopra no
meu ouvido
você nunca mais vai
perguntar
o que ela vai cozinhar
e de repente do meio
do escuro
surge minha mãe
e meu pai
e me abraçam e beijam
e eu digo que estava com
medo que não voltassem
e eles me dizem que
estavam com medo
que não me encontrassem
E no jantar minha mãe
serviu sopa
aquela sopa
e fomos dormir
bem alimentados
com a sopa de medo
a neve do ano novo
a nova neve do ano
faz um barulho gozado
quando piso
vou pela rua dançando
todos estão dançando
na rua da neve branca
todos estão cantando
salve a vodka
salve a dança
chegaram os papéis
de Varsóvia
que esperamos
por um ano
mas minha mãe avisou
que eu não podia
parecer feliz
para ninguém saber
que estávamos felizes
por partir
porque isso até
podia parecer o
mesmo que trair
mas nós só queremos ir
e eu tive que aguentar
três dias dançando e
cantando
mas sem rir
Quem manda agora?
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




