Startups, unicórnios, investidores e um oceano longe de ser azul
Estive no supervisitado Web Summit Lisboa, com pavilhões lotados, stands por todos os lados, pitches em todo canto e side events para todos os gostos
Em tempos de feiras cheias de soluções em IA cada vez mais parecidas, talvez valha voltar ao básico: entender como nascem as startups, como é quando entram os investidores – e por que o verdadeiro diferencial ainda está, teimosamente, na qualidade das pessoas e no networking que elas constroem ao longo da vida.
Em novembro deste ano, estive no supervisitado Web Summit Lisboa, com pavilhões lotados, stands por todos os lados, pitches em todo canto e side events para todos os gostos.
Fui orgulhosamente como parte da delegação do Maravalley Hub, cujo stand era dividido com o Invest.Rio. Nossos happy hours cariocas foram um caso à parte: animados, cheios, cheirosos de Brasil, atraindo gente de outras cidades e países.
Voltando ao que interessa: no primeiro dia do evento, depois de uma abertura impecavelmente produzida para impactar e engajar emocionalmente os participantes, resolvi andar sozinha pelos pavilhões e conhecer um pouco das propostas dos novos negócios. Também fiz questão de visitar stands de marcas consagradas – como a IBM, onde trabalhei quando comecei a minha vida adulta.
Enquanto caminhava pelos corredores, entrando e saindo de pavilhões, eu tinha, em vários momentos, a sensação de estar numa feira local envernizada: a sofisticação das marcas e dos slides era de primeiro mundo, mas o clima era, em essência, o de um grande mercado onde cada feirante chama, quase aos gritos, a atenção para a sua barraca tecnológica.
Tentava me concentrar em um só pitch, um só vídeo, uma só palestra, e pensava: no meio desse barulho todo, o que, de fato, diferencia uma startup? O que separa uma ideia realmente inovadora de mais um produto empacotado naquele imenso e sofisticado balcão de negócios?
Que tal, então, começar didaticamente, entendendo o caminho percorrido por uma ideia até chegar ao investimento?
Da dor à ideia, e da ideia ao primeiro “sim”
Antes do investidor, vem alguém muito mais importante: o usuário.
A história de qualquer startup minimamente saudável começa com uma dor real, um problema concreto que atrapalha o dia a dia de pessoas ou empresas. Não é “quero fazer algo com IA porque está na moda” e sim, “como eu resolvo, de forma diferente, o problema dessas pessoas (público alvo) que insiste em não ser resolvido direito?”.
Primeiro passo: ouvir gente de verdade. Conversar com possíveis usuários, entender rotinas, frustrações, limitações. A partir daí nasce a ideia que, sozinha, não vale nada se não for testada na vida real.
É aí que entra o famoso MVP (Produto Mínimo Viável, na tradução em Português).
Não é a versão perfeita, é a versão possível: o mínimo de funcionalidade para saber se alguém realmente usa, paga, volta, indica. Às vezes é um grupo de WhatsApp com dez clientes-teste. Às vezes é um formulário no Google, uma planilha atualizada na mão, um perfil no Instagram recebendo pedidos no direct, um canal no Telegram, uma agenda feita no Calendly, um PDF enviado por e-mail ou até um atendimento concierge, em que o próprio fundador faz tudo manualmente para entender o fluxo. O MVP pode ser radicalmente simples – a tecnologia de bastidor costuma ser bem menos glamourosa do que os slides sugerem, e tudo bem.Entre a ideia e o investidor, o que manda é uma palavrinha que o mercado idolatra: tração.
Tração é o conjunto de evidências de que aquilo se move: primeiros clientes, pilotos pagos, taxa de retenção, lista de espera, contratos em negociação. Resumindo: tem que nös provar que não é só uma apresentação bonita ou uma ideia utópica ou sem-pé-nem-cabeça.
Investidor sério não coloca dinheiro em sonho abstrato, coloca em sonho que já começou a encostar no chão.p e a acordar pra realidade.
Incubadoras, aceleradoras e o “chão de fábrica” do ecossistema
Antes de encontrarem anjos, muitos empreendedores passam por ambientes que funcionam como berçários de negócios.
As incubadoras costumam estar ligadas a universidades, parques tecnológicos ou instituições de fomento. Elas ajudam a transformar a ideia em negócio minimamente estruturado: apoio em plano de negócios, orientação jurídica básica, mentores, algum networking, às vezes até espaço físico. Não é glamour, é chão de fábrica.
As aceleradoras chegam num estágio um pouco posterior. Pegam negócios que já andam, mesmo que devagar, e tentam fazê-los correr. Programas intensivos de alguns meses, metas agressivas, rede de mentores, conexões com investidores e, em alguns casos, um pequeno investimento em troca de uma fatia da empresa. Essa, aliás, é uma prática bastante comum em muitos lugares.
Além delas, há editais públicos, prêmios e chamadas de inovação que oferecem recursos financeiros melhores que empréstimo bancário e, às vezes, sem exigir participação societária (ou com condições bem mais amigáveis). São especialmente relevantes para startups de impacto social, educação, saúde e meio ambiente.
Este ecossistema de apoio é um degrau bem importante que muitos empreendedores (especialmente os digitais) pulam quando começam - na real, querem ir logo pro investidor-anjo. Na prática, o trabalho pesado começa bem antes do dinheiro entrar.
Quem põe o dinheiro? Da vaquinha familiar ao fundo de investimento
Na vida real, o financiamento de uma startup raramente é linear. Mas, didaticamente, dá para organizar assim:
- Dinheiro próprio e da família É o famoso bootstrapping: economias pessoais, empréstimo de pai, mãe, namorado, avó. É emocionalmente arriscado, mas muito comum. Muitas startups nascem no limite do cartão de crédito do fundador.
- Investidor-anjo É uma pessoa física que investe seu próprio dinheiro em empresas nascentes. Normalmente ela entra quando já existe um MVP e algum sinal de tração. O anjo ideal não é só quem deposita e, sim, quem abre portas trazendo rede de contatos, experiência, reputação e, às vezes, livrando a startup de ciladas contratuais que sozinha ela não enxergaria.
- Rodada seed e Séries A, B, C.3.1. Seed (semente): É quando a startup já deixou de ser só ideia e tem um produto rodando, mesmo que ainda simples. Já existem alguns clientes usando, alguns testes sendo feitos e começa então a ficar claro se aquilo realmente resolve um problema de verdade. O dinheiro da rodada seed serve para regar essa “semente”: melhorar o produto, entender melhor o mercado, e organizar a casa.
3.2. Série A: Aqui o negócio já mostrou serviço. Há clientes, faturamento, sinais mais concretos de que o modelo funciona. A empresa levanta uma rodada de investimentos de Série A quando quer crescer de verdade: contratar mais gente, entrar em novas cidades ou países, investir pesado em tecnologia, marketing e vendas. É uma fase mais madura do negócio.
3.3. Séries seguintes (B, C, D…): estas costumam vir quando a startup já virou uma empresa bem mais robusta. Já não é “bebê” nem “adolescente”: tem faturamento relevante, time maior, processos minimamente organizados e um modelo de negócio que se mostrou viável. O foco dessas rodadas é escala e consolidação: crescer em novos mercados, comprar concorrentes menores, lançar novos produtos, fazer fusões estratégicas e se preparar para, um dia, abrir capital na bolsa ou ser vendida por um valor alto.
É aqui que muitas delas passam a ser chamadas de scale ups: empresas que já provaram que funcionam e agora estão numa fase de crescimento acelerado, repetindo o que deu certo em mais cidades, mais países, mais segmentos. A lógica deixa de ser “vamos ver se isso anda” e passa a ser “como fazemos isso andar em grande escala sem desmoronar a estrutura?”.3.4. Outras formas de investir Equity crowdfunding: investimento coletivo, com muita gente colocando pequenos valores em troca de participação. Corporate venture: grandes empresas investindo em startups que podem complementar, desafiar ou antecipar seu próprio futuro. Modelos baseados em receita: o investidor recebe de volta um percentual da receita futura, sem necessariamente se tornar sócio permanente.
A lógica comum a todos: o investidor troca dinheiro hoje por potencial de valor futuro, sabendo que a maioria das apostas pode não dar certo.
“Mas ele vira sócio?” – Prestação de contas e vida em sociedade
Sim, na maioria das vezes, o investidor vira sócio.
Ele compra uma parte da empresa de forma direta (equity) ou indireta (por meio de instrumentos que podem virar equity depois, como notas conversíveis e SAFEs).
Isso significa:
- Direitos e deveres Dependendo do acordo, o investidor pode ter direito a voto, assento em conselho, veto em decisões estratégicas, prioridade em rodadas futuras.
- Prestação de contas A partir do momento em que alguém de fora coloca dinheiro, a empresa passa a ter responsabilidades formais: relatórios mensais ou trimestrais com faturamento, custos, número de clientes, churn, plano de produto, riscos. Startups que tratam isso como burocracia acessória acabam queimando confiança e, junto com ela, o apoio em momentos difíceis.
- Saída (o famoso “exit”)O investidor não entra para viver eternamente na lista de sócios da empresa (a famosa cap table). Ele espera, em algum momento, conseguir transformar aquele papel em dinheiro de verdade – de preferência, multiplicado.
Para isso, ele precisa de um evento de liquidez: quando a empresa é vendida, se funde com outra, abre capital na bolsa ou quando outro investidor – ou até os próprios fundadores – compram a sua parte. É nessa hora que o “aposto em você” lá do começo vira retorno financeiro (ou prejuízo, o que também acontece).
Investidor sério não é padrinho mágico nem vilão de filme. É sócio. E vida em sociedade exige contrato, combinados claros e conversas honestas quando o plano não sai como o esperado – o que, em startups, é quase a regra, não a exceção.
Quando a IA vira ingrediente padrão: startups como commodity
Voltando ao Web Summit Lisboa que fui este ano.
Em muitos momentos, a sensação era de que a IA havia virado um adjetivo obrigatório. Bastava colocar “com IA” em qualquer frase e pronto: nascia um pitch.
Não estou desmerecendo (e nem poderia e nem seria louca) os avanços reais advindos da inteligência emocional generativa - havia coisas brilhantes ali. Mas também existia um número considerável de soluções muito parecidas, disputando os mesmos problemas com roupagens diferentes, somente.
Era como se a tecnologia fosse o diferencial, e não o entendimento profundo do problema, do contexto e das pessoas.
Esse cenário lembra a metáfora clássica do “oceano vermelho”: um mercado saturado, lotado de concorrentes, todos brigando por espaço, preço e micro diferenças. O oposto do famoso “oceano azul”, onde há espaço para nadar com menos sangue na água.
Quando 100 startups tentam resolver a mesma dor, usando a mesma tecnologia, com um discurso semelhante, o que as diferencia não é o rótulo “IA”, nem o stand mais bonito, nem o pitch mais performático.
O que começa a separar o joio do trigo é:
- a clareza da proposta de valor,
- a profundidade do entendimento da dor do usuário,
- a qualidade do time,
- e a rede de relações que essa equipe é capaz de construir.
Sem esses diferenciais, mais parece uma grande e requintada deira de commodities. Por mais que meu discurso pareça simplista demais ou radical demais. Expresso o que senti. E tomara que eu esteja errada!
De um produto a uma marca: sair da massa e ocupar um lugar na cabeça das pessoas
Crescer e se solidificar em meio a essa multidão exige mais que tecnologia. Exige marca.
Marca forte não é só logotipo bonito. É:
- uma posição clara na cabeça das pessoas – “essa é a empresa que resolve X para quem é Y de tal jeito”;
- uma narrativa coerente entre o que se promete e o que se entrega;
- uma experiência consistente, do atendimento ao suporte, passando pelo produto.
Os famosos unicórnios, aquelas startups avaliadas em mais de 1 bilhão de dólares, raramente chegaram onde chegaram somente porque usavam a tecnologia da moda.
Eles cresceram porque conseguiram combinar um problema real com uma execução excelente, uma marca reconhecível e uma capacidade invejável de construir relações com clientes, parceiros, reguladores, imprensa e investidores.
O fator humano que teima em não sair de cena
Por mais que o hype mude – metaverso semana passada, blockchain ontem (na minha humilde opinião, blockchain sempre!), IA generativa hoje, e seja lá o que vier amanhã, eu sigo convencida de que o caminho continua sendo o mesmo:
- Vitalizar a qualidade e o conhecimento das pessoas certas no time. Gente que entende o problema, que sabe ouvir, que aprende rápido, que não tem medo de errar – e corrigir o erro.
- Escolher bem os investidores, e não só o tamanho da quantia investida. Dinheiro é importante, mas alinhamento de visão, ética e expectativa de tempo são ainda mais.
- Cultivar networking de verdade, e não só colecionar cartões e fotos em evento. Networking não é superficialidade de coquetel, é infraestrutura invisível de oportunidade. É quem te indica, quem te recomenda, quem te protege de armadilhas, quem te apresenta a gente que você sozinho jamais encontraria.
Num mundo de inovação superpovoado, em um oceano eternamente vermelho, o diferencial pode continuar estando onde sempre esteve: nas relações, na confiança e na densidade humana por trás dos CNPJs sejam elas LTDAs ou S/As.
Talvez o próximo unicórnio não seja a startup com o stand mais instagramável nem com o discurso de IA mais sofisticado. Talvez seja aquela que consegue fazer o básico bem feito: enxergar uma dor real, montar um time competente, estruturar um modelo de negócio honesto, escolher investidores que somem de fato e construir, dia após dia, uma rede de relações que sustenta, desafia e puxa pra cima. O feijão com arroz temperado que todo mundo quer.
Em um cenário em que tantas soluções se parecem, o que continua fazendo diferença não é a purpurina do palco, mas a consistência e o realce de quem o monta.
Uma startup de real teor de beleza com certeza brilhará.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

