STF encara o maior julgamento do século XXI no Brasil, com o golpe no banco dos réus
Processo contra Bolsonaro e generais leva STF ao maior julgamento do século, com provas que revelam conspiração que levou o país ao abismo
A arte de julgar, alicerce da ordem social, equilibra justiça e equidade em tempos de incerteza. Visualize uma arena onde a balança da justiça oscila, guiada por princípios perenes, não por caprichos. Enquanto o Brasil acompanha um julgamento crucial no Supremo Tribunal Federal (STF), reflitamos sobre essa prática nobre, enraizada nas origens da civilização.
Julgar transcende o ofício: é a prática de sabedoria, ética e coragem que molda o destino de nações.
Na Grécia Antiga, berço da democracia, juízes atuavam coletivamente. Até 500 cidadãos podiam decidir casos em Atenas, como descreve Aristóteles em Constituição dos Atenienses. Sólon, legislador do século VI a.C., reformou leis para promover igualdade, abolindo dívidas escravizantes e criando tribunais acessíveis.
Em Roma, o direito amadureceu com sofisticação. Juristas como Ulpiano (c. 170–228 d.C.) e Papiniano (c. 142–212 d.C.) orientavam os pretores, magistrados encarregados de aplicar as leis. Ulpiano, morto por defender princípios contra abusos imperiais, tornou-se símbolo de independência judicial. Os romanos viam o juiz como guardião do ius civile, adaptando normas à realidade com equidade — herança que influenciaria séculos depois o monumental Código de Justiniano.
É aqui que minhas memórias pessoais se entrelaçam com a história. Essas lições do direito da Antiguidade as assisti com o professor Condorcet, na Faculdade de Direito Cândido Mendes, ali na Praça XV, em sua velha edificação do período imperial, conhecida por “Forte Apache” devido à arquitetura imponente. O professor Condorcet era especialista em Direito Romano. O ano era 1979, eu contava apenas 20 anos de idade. Hoje, infelizmente, grande parte das faculdades de Direito não têm mais a disciplina de Direito Romano em sua grade. Uma lástima, porque essa raiz civilizatória é essencial para compreender o presente.
Enquanto no direito grego o juiz mediava a dikē (justiça) pela retórica, em Roma o iudex aplicava a lei com rigor, amparado nos éditos anuais dos pretores. Em ambos os casos, julgamentos justos exigiam imparcialidade, busca da verdade, proporcionalidade e humanidade, equilibrando rigor e misericórdia.
Máximas latinas cristalizam esses ideais. Fiat iustitia ruat caelum — “Faça-se justiça, ainda que desabem os céus” —, atribuída a Piso, coloca a lei acima de circunstâncias. Já Summum ius, summa iniuria — “A lei suprema pode ser a suprema injustiça” —, de Cícero, alerta contra a rigidez sem contexto. E Ulpiano definiu: Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi — “Justiça é a vontade constante de atribuir a cada um o seu direito”.
Esses princípios conectam a Antiguidade ao direito moderno, distinguindo direito natural e positivo. O natural, enraizado em valores universais da razão ou da divindade, transcende leis humanas, como Cícero argumenta em De Legibus. O positivo, criado por autoridades humanas, é mutável e sujeito a revisões históricas. O mito de Antígona, de Sófocles (441 a.C.), ilustra esse dilema: desafiando Creonte, que proibira o sepultamento de seu irmão Polinices, Antígona invoca leis divinas como superiores às ordens do Estado. A tragédia questiona os limites do poder político diante de direitos inalienáveis.
Essa tensão entre natural e positivo ressoa na arte de julgar de hoje, em que provas são o alicerce das decisões. Testemunhos verbais, relatos oculares, registros documentais, perícias técnicas (como exames de DNA) e evidências materiais compõem o conjunto probatório. Colhidos em inquéritos e audiências, devem ser avaliados pela relevância e credibilidade — sempre lembrando que a memória de testemunhas oculares é falível, como comprovam inúmeros estudos psicológicos.
No Brasil, o Código Penal de 1940 estrutura crimes e penas, orientando sanções proporcionais. O princípio do “livre convencimento motivado” garante ao juiz liberdade de análise, mas exige fundamentação clara, em nome da transparência e da confiança pública.
O jurista Rudolf von Ihering, em A Luta pelo Direito (1872), deixou duas lições essenciais. Primeiro: o direito nasce de conflitos sociais e evolui pela luta. Segundo: ele serve a fins coletivos, reconciliando interesses para o bem comum, sempre priorizando a ética. Esse arcabouço é vital para lidar com crimes contra o Estado, como golpes de Estado — a derrubada violenta de governos legítimos, conceito explorado por Curzio Malaparte em Técnica do Golpe de Estado (1931).
No Brasil, a Lei 14.197/2021 redefiniu as bases da proteção ao Estado Democrático de Direito. Criminalizou, de forma inequívoca, qualquer tentativa de subversão da ordem constitucional, mesmo quando desprovida de violência ostensiva. A nova tipificação abrange atentados contra a soberania, contra as instituições e contra a própria normalidade democrática. Foi um amigo — e um dos mais brilhantes advogados de sua geração, Dr. Luigi Roberto Berzoini — quem me chamou a atenção para um detalhe pitoresco. Alguém aqui sabe quem assinou essa lei? Basta recorrer ao Diário Oficial da União:
“Brasília, 1º de setembro de 2021; 200º da Independência e 133º da República.
JAIR MESSIAS BOLSONARO
Anderson Gustavo Torres
Walter Souza Braga Netto
Damares Regina Alves
Augusto Heleno Ribeiro Pereira”
Eis a ironia: a lei que agora serve de espada contra os conspiradores foi sancionada por eles próprios, como se tivessem redigido de antemão a ata de sua condenação. Só uma figura escapou da cena do crime — a senadora Damares Regina Alves. A história, maliciosa como sempre, adora esse tipo de piada de mau gosto.
É nesse contexto que se insere o julgamento histórico do STF, iniciado em 2 de setembro de 2025. Oito réus, entre eles o ex-presidente Jair Bolsonaro, respondem por tentativa de golpe, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, organização criminosa armada e depredação de patrimônio público.
Ao seu lado estão nomes de peso da antiga cúpula militar e política: os generais Augusto Heleno Ribeiro Pereira, Walter Souza Braga Netto e Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira; o almirante Almir Garnier Santos; o tenente-coronel Mauro Cid; o ex-ministro Anderson Torres; e o ex-diretor da Abin Alexandre Ramagem. A acusação relaciona a trama ao período pós-eleições de 2022, quando um decreto de Garantia da Lei e da Ordem teria sido preparado para sustentar Bolsonaro no poder, em conexão direta com os ataques de 8 de janeiro de 2023.
Hoje, 9 de setembro de 2025, após uma semana de sustentações orais, o relator Alexandre de Moraes abre a votação. Os dois votos mais aguardados são justamente os dele e do ministro Luiz Fux. De Moraes espera-se firmeza, como investigador do caso e também alvo da trama, cuidando sempre para que tudo ocorra dentro do devido processo legal. Merece aplausos da sociedade brasileira por sua incansável busca por justiça.
Já Luiz Fux, ministro carioca, é figura controversa — para dizer o mínimo. Nas últimas semanas, ele e outros dois ministros da Suprema Corte, André Mendonça e Cássio Nunes, foram os únicos poupados pela ira intervencionista e ilegal do presidente Donald Trump. Os três não receberam sanções do governo norte-americano, o que levantou suspeitas sobre sua plena independência. A estranheza aumentou quando se soube de uma carta insólita e abusiva enviada por Trump ao governo brasileiro: nela, condicionava a derrubada das tarifas de 50% sobre produtos exportados pelo Brasil aos Estados Unidos à absolvição do ex-presidente Bolsonaro.
Na sequência, votarão também os ministros Flávio Dino, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin, todos integrantes da Primeira Turma. O julgamento deve se encerrar em 12 de setembro, quando serão fixadas as penas individualizadas, considerando agravantes como liderança e participação em atos preparatórios.
Esse processo não é apenas jurídico: é também um teste histórico à democracia brasileira. Em um mundo onde a justiça tantas vezes oscila, julgar com equidade fortalece sociedades e projeta confiança no futuro. Poucos processos julgados neste século reúnem uma quantidade tão extraordinária de provas: são dezenas de horas do réu delator, o tenente-coronel Mauro Cid, centenas de documentos comprometedores e inquestionáveis, centenas de horas gravadas em áudios e vídeos, inclusive daquelas reuniões preparatórias oficiais no Palácio do Planalto onde se tramou boa parte do golpe de Estado. Mas não para por aí. Quem tiver paciência passará algumas semanas ouvindo centenas de horas de depoimentos prestados não apenas pelos réus, mas também pelas testemunhas por eles arroladas e pelas convocadas pela Procuradoria-Geral da República. Somam-se ainda exaustivas diligências e inquéritos minuciosamente investigados e concluídos pela Polícia Federal.
A quantidade de provas contra os meliantes — grande parte delas produzida por eles mesmos para autopromoção em suas redes sociais — é de causar espanto.
Que a arte de julgar, forjada desde a Antiguidade, seja agora a muralha que protege a democracia brasileira diante de seus mais ousados inimigos internos.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

