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Nêggo Tom

Cantor e compositor.

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Surubinha de leve - a naturalização da cultura do estupro

Outras músicas iguais a do MC Diguinho, naturalizam essa infame realidade, sob uma visão lúdica da coisa. É mais ou menos como a piadinha de preto, que não tem a intenção de ofender e muito menos de se expressar de forma racista. O problema é que por trás de uma brincadeira, sempre há um fundo de verdade

Outras músicas iguais a do MC Diguinho, naturalizam essa infame realidade, sob uma visão lúdica da coisa. É mais ou menos como a piadinha de preto, que não tem a intenção de ofender e muito menos de se expressar de forma racista. O problema é que por trás de uma brincadeira, sempre há um fundo de verdade (Foto: Nêggo Tom)

A polêmica causada pela música "Surubinha de leve", me fez refletir a cerca de outros "sucessos" do gênero e chegar a conclusão que, ao contrário da orgia musical promovida por MC Diguinho, o contrassenso de muitos com relação ao mesmo tema, não é nem um pouco leve. A ideia não é fazer juízo de valor sobre a qualidade musical do trabalho de ninguém. Não seria ético da minha parte. Também não pretendo questionar o gosto pessoal de quem quer que seja. Afinal, cada um tem o seu.

Eu só gostaria de chamar a atenção para o enredo de muitas outras músicas, que vira e mexe, se apresentam como hits do momento e batem a casa de milhões de views no Youtube. Todas sob a benção de um sistema, que ao invés de mudar para melhor, a realidade social das periferias, estimula a perpetuação da falta de dignidade social de quem nelas habitam e ainda seleciona alguns representantes destas, para serem os mainstreans da propagação de uma "cultura local", como se todos os moradores de uma periferia, tivessem um comportamento padrão.

No twitter, ao ser questionado sobre a sua música, Diguinho rebateu dizendo que "Se a minha música faz apologia ao estupro, prazer, sou o mais novo estuprador, apenas fiz a música da realidade que eu vivo e muitos brasileiros vivem. Viva a putaria!" Se ele realmente falou isso, deveria, no mínimo, ser indiciado por apologia ao estupro. Mas, como diria Caetano: "Tudo é muito mais". Principalmente, quando costumamos defender o direito a manifestação de qualquer expressão, sob a égide da arte.

Na minha opinião, nem tudo que se apresenta como arte, de fato o é. Mas quem irá julgar o que é, e o que não é arte? Eu? Você? O código penal? O bom senso? O conceito pessoal de cada um? Por que uma performance, na qual atores nus que interpretam macaquinhos, introduzem inocentemente os seus dedos nos ânus uns dos outros, pode ser considerada arte e a letra da musica de MC Diguinho, não? É apenas uma pergunta, feita de modo totalmente imparcial. Ok?

A cultura do estupro e do assédio, está, sim, presente em nossa sociedade. E tem que ser muito macho para admitir, que em algum momento, já constrangemos a uma mulher, com um olhar mais "pidão" ou até mesmo com uma palavra mais ousada. Quem nunca? Não vale mentir ou omitir. Mas é necessário refletir sobre o machismo nosso de cada dia. Um olhar mais atrevido pode até não tirar pedaço, mas pode estar ocupando um espaço que não nos foi cedido espontaneamente.

Outras músicas iguais a do MC Diguinho, naturalizam essa infame realidade, sob uma visão lúdica da coisa. É mais ou menos como a piadinha de preto, que não tem a intenção de ofender e muito menos de se expressar de forma racista. O problema é que por trás de uma brincadeira, sempre há um fundo de verdade. Pisando no perigoso e movediço terreno do feminismo, lembro de algumas manifestações libertárias, nas quais algumas mulheres, se orgulham de serem "vadias" todo dia.

Lutar pelo direito de ser vadia, não estaria alimentando a cultura do estupro? Correndo ainda mais risco de ser apedrejado, quero lembrar das mulheres que participaram do clipe de Diguinho e de outros clipes do gênero, onde elas são apresentadas como objetos sexuais, comprados com camarotes vip, naves importadas e algumas doses de absolut com água de coco. O estupro pode até não estar presente de forma literal, mas a cultura do assédio e da objetificação da mulher, está contida. E não há tantos gritos assim.

Será que é preciso "tacar bebida, tacar a pica e abandonar na rua", para que se caracterize um estupro? Existem formas bem mais sutis de se estimular esse crime hediondo e que passam desapercebidas por muita gente. Ou será que fazem vista grossa para o que lhes convém? Cada mulher tem o direito de ser o que bem entender. Inclusive vadia. Desde que seja por livre e espontânea vontade. Ninguém tem nada a ver com isso. Eu, particularmente, não gostaria que a minha filha fosse vista como uma vadia, por isso não recomendo tal ideologia auto afirmativa e apoio o combate a cultura do estupro.

Essa realidade vivida por Diguinho e por boa parte dos brasileiros, pode até ser nua e crua, mas, ao invés de nos acostumarmos com ela, deveríamos lutar para que ela não se perpetue. O estupro não pode fazer parte da cultura de um povo. Não podemos nos deixar levar por tal primitivismo. Isso é um crime contra a dignidade humana. Mas não espere que o sistema se junte a nós nessa luta, porque ele não o fará.

Por motivos óbvios, a intenção do sistema é apenas reforçar estereótipos, para que a classe dominante possa continuar a atribuir aos menos favorecidos, as piores avaliações e os mais repulsivos adjetivos para qualificá-los. E assim, poder justificar o seu preconceito social (e também racial) contra eles, se posicionando contra a inclusão "desse tipo de gente", numa sociedade a qual, eles se julgam os legítimos detentores de todos os direitos.

Mas nos deixemos enganar. A elite também é chegada a uma surubinha de leve. Só não admite publicamente. Nas festinhas dos jardins, também se "taca bebida, taca a pica e abandona na rua". Mas, lá, a putaria é em outro nível.

Diga, não a cultura do estupro!

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.