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Luciano Cerqueira

Pesquisador do Grupo Estratégico de Análise da Educação Superior (GEA-ES) da Flacso Brasil; Pesquisador associado do Laboratório de Políticas Públicas (LPP-UERJ) e Doutor no Programa de Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da UERJ

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Tela branca

Essa pequena menção a Dark, não é para dizer que estou preocupado com a representatividade nos programas de TV da Alemanha. O que Dark fez, foi (mais uma vez) me fazer refletir sobre os programas de TV no Brasil

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Acabo de assistir Dark na Netflix, uma premiada série alemã que mistura drama e ficção científica. A trama começa com o desaparecimento de uma criança local, na cidade fictícia de Winden, e a partir daí embarcamos numa intrincada conspiração que envolve viagem no tempo, buraco de minhoca, gato de Schrödinger, Bóson de Higgs (ou partícula de Deus), a exploração das implicações existenciais do tempo e seus efeitos sobre a natureza humana etc. Te pareceu complexo? É mesmo, mas eu gostei da série. 

A série que tem 3 temporadas, 26 episódios e quase 30 horas de conteúdo me deixou mais impactado com o fato de não mostra uma pessoa negra. Isso mesmo! Não apareceu uma pessoa negra em toda série. Hoje a Alemanha tem mais de 1 milhão de habitantes que se reconhecem como negros (isso representa aproximadamente 1,2% da população total), e que sofrem as consequências de se viver em um país onde cresce (novamente) a intolerância contra imigrantes, negros e etc. As pessoas negras (assim como outras etnias, raças etc.) não estão representadas na série, e essa é apenas mais uma violência.

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Podemos fazer uma rápida reflexão. O que justifica só termos pessoas brancas em Dark? Os defensores mais ardorosos da série (e/ou do racismo) podem argumentar que além da população negra  ser apenas 1% da população, a trama se passa em uma pequena cidade do interior da Alemanha, e a história tem mostrado que a maioria das pessoas que migram Qpara outros países ficam nos grandes centros por conta da facilidade de conseguir empregos, entre outros atrativos. Essas podem ser as explicações dadas por quem defende a “branquitude” apresentada pela série. Eu não aceito. Acho que faltou sensibilidade, vontade (ou as duas coisas, não sei) a produção para escolher um elenco mais representativo que mostrasse uma Alemanha mais plural, porque – apesar de tudo - hoje ela mais plural. Sim, a Alemanha está mais plural, mais ainda é um país racista.

Essa pequena menção a Dark, não é para dizer que estou preocupado com a representatividade nos programas de TV da Alemanha. O que Dark fez, foi (mais uma vez) me fazer refletir sobre os programas de TV no Brasil. Em 2020 ainda temos de nos perguntar: porque a televisão brasileira tem tão poucas pessoas negras a ponto de parecer Winden? Má vontade? Falta de atores e atrizes negras? Falta de sensibilidade? Racismo? Todas as opções anteriores? Pra mim é tudo junto, mas com um percentual altíssimo de racismo! Só o racismo para explicar que em um país com mais de 55% da sua população se declarando negra, tenhamos tão poucas destas pessoas na nossa televisão. 

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Hoje temos mais acesso a séries e filmes de outros países que não produzidos nos EUA (ou em língua inglesa), como por exemplo Dark, La Casa de papel, O poço, Parasita, Merlin etc., mas ainda são os programas americanos – com seu American way of life – a maioria do que consumimos por aqui. Por isso, acho pertinente utilizá-los para exemplificar o que falo.

Você sabe qual o percentual de pessoas negras nos EUA, país que possui a segunda maior população negra fora da África? Eles são 13% da população (aproximadamente 43 milhões de pessoas), mas quando assistimos os programas produzidos lá (séries, filmes, etc.), já nos deparamos centenas de vezes com pessoas negras em papel de destaque. Presidente dos EUA, ainda hoje o cargo político mais importante do planeta, eu lembro de vários (Dany Gloover, Jamie Foxx, Morgan Freeman, Chris Rock, Samuel L. Jackson, James Earl Jones, Sammy Davis Jr., Tommy Tiny List etc.). Profissionais de destaque? Milhares de médicos, advogados, juízes, chefes de polícia, agentes do FBI, etc. Lembrou? Então agora tente lembrar de um programa televisivo nacional, seja ele qual for, que o papel de destaque é dado a uma pessoa negra? Um? Dois? Nada!

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O fato de termos pessoas negras em papel de destaque na TV americana, não quer dizer que o racismo lá acabou. Não, longe disso. Esse fato está relacionado com a luta dos movimentos negros daquele país, e com a força de algumas de suas maiores vozes (Malcon X, Martin Luther King, Angela Davis etc.) que lutaram  - e lutam – por um país mais igual; com ações afirmativas (sim, as tão temidas cotas estudantis estão presentes lá) que há décadas ajudam a juventude negra estadunidense a ter acesso à educação superior; o sucesso nos esportes etc. Essas ações promoveram a ascensão do negro na sociedade estadunidense e colocou as pessoas negras em locais de destaque. Essa minoria que ascendeu quis se ver representada na TV e conseguiu, com muita luta, é claro!

E no Brasil? A TV chega no país no início dos anos 50 e os negros começam a aparecer na metade dos anos 60, e desde então, fomos (e somos) muito bem representados quando falamos de qualidade. Podemos citar Mussum, Grande Otelo, Antonio e Camila Pitanga, Léa Garcia, Ruth de Souza, Zezé Motta e muitos mais. O problema nunca foi a qualidade. 

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Sabemos que para se destacar em qualquer profissão o “negro” precisa trabalhar mais do que o “branco”. Quando o assunto é programa de TV esse desempenho precisa ser extraordinário pois ali, há uma reserva de mercado ainda mais explícita para pessoas brancas. Enquanto fizemos papel de escravo, motorista, cozinheira, faxineira, bandido etc., tudo bem, servíamos para o papel. Mas foi só o negro querer sair do quarto de empregada, da cozinha, da favela, que o Brasil mostrou a sua cara. Colocaram o dedo na nossa cara e falaram: não. Assim não! 

Vejamos dois casos para entendermos como as coisas funcionam aqui.

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Primeiro caso é o da atriz Taís Araújo. Em 1996 ela foi a primeira atriz negra a ser protagonista em uma novela, “Xica da Silva”, na extinta TV Manchete. Em 2004, a mesma atriz, protagonizou “Da cor do Pecado”, na Rede Globo, sendo a primeira protagonista negra da história das novelas da emissora. Nesta novela ela viveu Preta e fez par romântico com Reynaldo Gianecchini. Ela era uma jovem humilde, nordestina que vendia ervas com a mãe na feira e que se apaixona por um homem branco, rico e do Sudeste: Paco (Reynaldo). Um homem branco e uma mulher negra, na sociedade brasileira, é sempre muito mal visto porque na cabeça do “cidadão de bem” as coisas acontecem assim: a mulher negra está sempre atrás de dinheiro, ou “clarear” a família utilizando a única qualidade que uma mulher negra pode ter: o sexo. Senão isso, o que um homem branco ia querer uma mulher negra? 

Tá bom, é muito chato ter de “engolir” ideia que quando um homem branco chega (principalmente no Nordeste) toda mulher fica louca por ele, eu sei. Mas Preta era a protagonista, isso era um avanço. Mas as pesquisas realizadas pela emissora, o público disse que o casal não combinava, faltou química eles disseram.

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Vamos direto ao ponto! Se a novela tinha problemas, com certeza esse casal era o menor deles. Pois se a intenção era mostrar uma outra realidade do negro na sociedade, por que então o nome "a cor do pecado"? A cor do pecado é um clichê racista histórico, e será que ninguém percebeu a grande mancada ao dar o nome à novela? Porém isso, o público (o mesmo de antes) não percebeu ou não se importou.
O segundo caso é o de Lázaro Ramos (hoje casado com Taís Araújo) na novela “Insensato Coração”. André, personagem de Lázaro Ramos, teve um dos maiores índice de rejeição nos grupos de discussão (reunião de pessoas comuns, cidadãos de bem, que assistem a novela) que a emissora realiza sobre suas novelas. O grupo achou que ele não era um galã para conquistar tantas mulheres. Sim, o personagem era o típico galã padrão global: rico, bonito, solteiro, bem sucedido, elegante, com um lindo apartamento, carro caro e etc. Mas por alguma razão, ele não podia ter tantas namoradas como outros que interpretaram o mesmo personagem: Fábio Assunção, José Mayer, Antônio Fagundes etc. Fica a pergunta: o que levou o público a rechaçar André, ou Lázaro Ramos como macho alfa? Não podemos interpretar um conquistador em novelas? Na maioria das vezes esse conquistador é um mal caráter, mas é uma personagem como qualquer outra. Esse privilégio também é dos homens brancos? 

A sociedade brasileira convive há séculos com a hipersexualização dos corpos negros, mas por favor, não mostre isso nas novelas. 

Para fecharmos o assunto das novelas, vamos citar a inacreditável Segundo Sol. Uma novela que foi ambientada em Salvador que não tinha pessoas negras no núcleo central. O Brasil é o país – fora da África - com a maior população negra e Salvador é uma cidade onde 80% da população se declara negra. Isso quer dizer que a cada 10 (dez) pessoas que vivem em Salvador 8 (oito) pessoas são negras. Estranhamente na novela parecia que vivíamos em outra cidade, em que a proporção era inversa. Aqui a Globo passou dos limites, não tenho muito o que dizer. Salvador sem negros? Senão fosse racismo a gente podia até rir, mas é racismo sim.

Ao fazer essa rápida análise, não quero que ela soe como um ataque a Rede Globo, ou as suas novelas. Eu, como qualquer outra pessoa acima dos 40 anos, tive nas novelas da Globo uma das principais fontes de entretenimento durante a minha vida.  Pra mim, já não é mais assim já tem duas décadas, mas foi. É preciso reconhecer que as novelas da Rede Globo possuem ótima qualidade técnica e, muitas, possuem histórias que fizeram críticas sociais, tocaram em temas considerados tabu etc. Mas também temos de dizer: as novelas são majoritariamente brancas em um país com mais da metade da população negra. E, infelizmente, essa não é uma exclusividade das novelas e nem da Rede Globo, todas as emissoras são majoritariamente brancas. Seja TV aberta ou fechada. 

Por último quero trazer um caso mais recente, e talvez o mais emblemático. Ele mistura EUA com Brasil. O assassinato de George Floyd, um afro-americano que foi assassinado em Minneapolis no dia 25 de maio de 2020, estrangulado por um policial branco que ajoelhou-se em seu pescoço durante uma abordagem. George Floyd falou aos policiais, mais de 20 vezes, que não conseguia respirar, mas de nada adiantou ele faleceu. O fato chocou o mundo e reascendeu a discussão racial e impulsionou a luta dos movimentos negros nos EUA.  O mais famoso deles é o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em tradução livre) fundado em 2013, que ganhou força e adeptos pelo mundo e até hoje – mais de 60 (sessenta) dias após o assassinato de George Floyd - continua organizando protestos contra o racismo nas cidades americanas. 

A GloboNews (canal jornalístico da Rede Globo na TV fechada) faz um programa para comentar a repercussão da morte de George e a fala de Sérgio Camargo (Presidente da Fundação Palmares) que para desdenhar do movimento Black Lives Matter, afirmou que o movimento negro é “uma escória maldita”. Atenção, caso você não saiba, Sérgio Camargo é negro. Para este programa exibido no dia 2 de junho de 2020, ela colocou no ar 7 (sete) pessoas brancas para tratar de racismo. Sim, repetindo: sete pessoas brancas para falar de racismo do qual nós, pessoas negras, somos vítimas. Na minha opinião, a maioria daquela bancada não possui conhecimento ou isenção para tratar de determinados assuntos. São pessoas que reproduzem (sempre) a fala dos seus empregadores em todos os assuntos: política, economia, meio ambiente etc. E com o racismo não seria diferente. Só para dar uma noção que estou falando, um dos presentes na bancada da GloboNews escreveu (e falou) diversas vezes, contra a adoção das ações afirmativas nas universidades públicas brasileiras. As cotas estão mudando a realidade da juventude negra brasileira, e uma pessoa que milita contra essa realidade foi convidada para falar dos males do racismo.  

O programa foi (com toda razão) muito criticado nas redes sociais – o termômetro da vida contemporânea. A repercussão foi tanta que no dia seguinte (3 de junho de 2020) a GloboNews fez outro programa pra tratar do mesmo assunto, só que dessa vez com 6 pessoas negras. Foi preciso correr para achar 6 (seis) jornalistas negros na emissora para comentar racismo. O programa começou com uma autocrítica (muito fraca, para quem vive pedindo para aos adversários autocritica extremas) dizendo que apesar de existirem muitos (sei!) profissionais negros e negras em frente às câmeras e por trás delas, eles cometeram esse equívoco. Sei, equivoco. Mas como se equivoca a Rede Globo (e todas as outras emissoras do país) na hora de montar o elenco de suas novelas e telejornais né!? Nossa, e como se equivocam as agências de publicidade em seus comerciais. Racismo? Não, equivoco!  

Não se trata de colocar “cotas” para todos os programas na TV brasileira, mas temos de parar e repensar esse privilégio branco da “competência”. Há, mas não dá pra fazer, você está exagerando, está de mimimi. Você quer que que coloquemos pessoas negras sem talento? Só por serem negras? Vamos escalar as pessoas que merecem, nos baseamos no mérito. Sim, lá vem a famigerada meritocracia. Pessoas brancas adoram essa palavra. Algumas usam essa palavra para não ter de usar a palavra correta: privilégio. 

Não. Eu não estou dizendo isso! Olhem o exemplo de Fernando Meirelles com o filme Cidade Deus. A equipe responsável pelo elenco foi buscar atores e atrizes junto ao grupo Nós do Morro, grupo de artes cênicas nascido entre moradores/as de favela. Eles encontraram as pessoas que queriam, mas consideraram que elas não estavam prontas. O que fizeram? Colocaram pessoas brancas para fazer o filme? Não! Apenas preparam, treinaram, estas pessoas para fazer o filme. Resultado: Cidade de Deus foi indicado a 4 (quatro) categorias no Oscar e é considerado um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos.

Então Globo, SBT, CNN, Band etc., quando um jovem negro, ou uma jovem negra, chegar até vocês com as qualificações mínimas para trabalharem por trás das câmeras ou em frente a elas (preferencialmente) dê essa chance a elas e eles, se não estão, totalmente, prontos é só preparar. Vocês fazem isso com os iniciantes brancos não é mesmo? E as vezes nem precisa ter estudado teatro, jornalismo ou algo do gênero, basta uns meses de reality show.  E vamos ser sinceros, mesmo vocês preparando estas pessoas, muitas ainda não estão prontas (e algumas nuca ficarão) e não deveriam estar atuando ou trabalhando com jornalismo, mas estão. No Brasil a mediocridade é permitida quando se é branco e na TV, não é diferente.

Ao fazer estas observações acerca da composição da TV brasileira, não faço isso achando que no caso de uma mudança radical (ou suave que seja) nos seus quadros mudará o país e seremos menos racista. Não isso não é papel da TV brasileira. No entanto, se tivéssemos outra postura dos meios de comunicação – inclusive os impressos, não podemos esquecer do papel das revistas e jornais - teríamos um aliado no combate à desigualdade racial (que acentua a desigualdade social) no país. Mas hoje, ao contrário, além de não nos ajudar ela atrapalha dando voz a atores, atrizes, apresentadores/as e jornalistas assumidamente racistas. E agora ainda temos de nos preocupar com uma centena de Youtubers que destilam ódio em seus canais. 

Discutir a representação negra na TV é muito importante, embora para alguns não pareça, pois a TV (ainda) é o principal veículo de comunicação de massa do Brasil e, a falta de representatividade do negro (ou sua participação estereotipada, que acaba por reforçar uma ideia de negro subalterno na sociedade brasileira) influencia a sociedade na constituição da identidade desta população e na forma como ela é vista pelos demais. Esses estereótipos existem na TV porque estão presentes na sociedade, e eles se retroalimentam. 

Na nossa sociedade há uma mudança lenta no perfil sócio econômico da população negra, que em parte se deve as políticas de ações afirmativas. Estas políticas trazem, hipoteticamente, maiores chances de ascensão e inserção social e, portanto, os coloca na condição de sujeitos históricos que compõe a diversidade brasileira. Contudo, essa nova realidade negra ainda não está presente na TV. Precisamos, com a ajuda da TV, desconstruir a ideia de que negras e negros não são belos, bem-sucedidos economicamente, profissionalmente e produtores de conhecimento. Por conta das estruturas racistas de nossa sociedade não são milhares, para isso precisamos de tempo, mais já existe um número considerável que precisa de visibilidade.

Por isso precisamos incrementar a participação de negros e negras em produções audiovisuais, para que a população negra possa se ver representada em peças publicitárias, programas de televisão, etc. de maneira positiva, para que possa se reconhecer como parte importante da construção social, cultural, política e econômica do Brasil.

Do Oiapoque ao Chuí a televisão brasileira mostra um país branco (eles ainda sonham com isso, ainda desejam a euro-norte-americanização), pessoas com cabelos loiros, pele clara, olhos verdes ou azuis etc. O Brasil das novelas, filmes, séries e propagandas se assemelha a um imenso Leblon ou a Winden (você pode escolher), mas definitivamente não é o Brasil real. 

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