"Teologia da absolvição": quando a religião vira escudo para contestar e deslegitimar decisões da Justiça Institucional
Já é possível perceber também a presença do que parece ser uma nova estratégia que amplia o campo de tensão entre fé, direito e política
Pergunta:
Para além das práticas de “judicialização da política” e da “politização do Judiciário”, é possível identificar a presença de uma espécie de “Teologia da Absolvição”, isto é, da utilização da religião como recurso discursivo e simbólico para contestar, vitimizar e deslegitimar decisões jurídicas junto à opinião pública?
Reflexão:
O Brasil vem convivendo com dois fenômenos complexos que desafiam as bases da democracia: a judicialização da política, em que políticos recorrem aos tribunais para resolver disputas que poderiam ser solucionadas pela via eleitoral, e a politização do Judiciário, quando juízes se deixam capturar pela lógica das disputas partidárias e produzem julgamentos supostamente baseados na lei para influenciar tais disputas. Embora tais práticas possam ser observadas em diferentes espectros ideológicos, no Brasil recente elas vêm sendo especialmente utilizadas por setores conservadores e reacionários para incriminar adversários, criminalizar lideranças políticas de esquerda e fragilizar governos eleitos democraticamente.
Não bastasse isso, já é possível perceber também a presença do que parece ser uma nova estratégia que amplia o campo de tensão entre fé, direito e política. Trata-se de uma crítica da justiça institucional baseada na utilização de discursos e símbolos religiosos destinados a questionar decisões jurídicas e justificar, ao mesmo tempo, uma inocência que, legitimada por Deus, questiona acusações formalmente apresentadas pela justiça. Esta prática pode ser apresentada como uma “Teologia da Absolvição” que se materializa nos discursos de quem faz uso dela, por meio de uma “liturgia da inocência” utilizada para mobilizar a fé das pessoas nas redes sociais e noticiários para sensibilizá-las em relação a acusações proferidas pela justiça.
Um episódio recente ilustra esse processo. Após ter seu celular apreendido pela Polícia Federal e ser proibido de deixar o país, o pastor Silas Malafaia reagiu publicamente apresentando-se como vítima de injustiça, afirmando que não poderia ser tratado como “bandido” por se tratar de um líder religioso. Um caso onde visivelmente a condição religiosa foi utilizada junto à opinião pública, como elemento de absolvição simbólica capaz de deslocar o debate jurídico para o campo da fé.
A utilização política da religião não é nova. Max Weber (1922) já havia observado que a religião funciona como poderoso fundamento de autoridade carismática, sobretudo em contextos de disputa política. Essa lógica aparece hoje no Brasil polarizado: de um lado, setores que defendem valores democráticos, com liderança atribuída principalmente ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva; de outro, setores ultraconservadores alinhados a Jair Bolsonaro e fortemente apoiados por igrejas evangélicas neopentecostais, que evocam em seus cultos a defesa da “civilização cristã” contra o “perigo comunista”. Estratégia retórica também observada nos Estados Unidos com Donald Trump, ao praticar discursos religioso-nacionalistas que procuram dar sustentação a políticas discriminatórias e protecionistas, tais como aquela relacionada com o recente tarifaço praticado contra o Brasil.
Norberto Bobbio (1987) já alertava que a democracia moderna só poderia se consolidar plenamente quando a sociedade reconhecesse a necessária laicidade do Estado como garantia de igualdade e liberdade para todos. Essa premissa, contudo, ainda não foi devidamente assimilada no Brasil.
Criticar a utilização da Teologia como prática de absolvição, não significa negar o valor da fé na vida das pessoas, mas questionar o modo como ela vem sendo instrumentalizada para manipular a opinião pública e enfraquecer princípios legais e republicanos. Se quisermos preservar a democracia, torna-se urgente fortalecer a compreensão social de que a fé não pode se sobrepor ao direito, sob pena de corroer a laicidade e abrir espaço para práticas autoritárias.
Referências
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: Editora UnB, 1999 [1922].
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




