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Luis Pellegrini

Luís Pellegrini é jornalista e editor da revista Oásis

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Tertulina, ex-escrava e portadora do samba

A resposta de Tertulina foi simples: Viemos trazer a alegria, o samba, o carnaval

Tertulina, ex-escrava e portadora do samba (Foto: Agência Brasil)

Minha primeira entrevista foi com uma ex-escrava chamada Tertulina que, na época, meados da década de 1960, afirmava ter mais de 100 anos de idade. Dizem que a primeira vez a gente nunca esquece.  Assim foi comigo. Até hoje, quando chega o carnaval, Tertulina me volta à memória. A mensagem que ela me legou determinou boa parte dos rumos da minha carreira e da minha vida pessoal.

Conheci Tertulina em São Carlos, onde nasci, quando eu tinha apenas 16 anos. Comecei a trabalhar cedo, na redação do jornal O Correio de São Carlos, como revisor. Um dia o diretor do jornal, José Maria Fontoura me chamou e disse: “Hoje você dará início à sua carreira de repórter. Vai entrevistar uma ex-escrava que está na cidade na casa de bisnetos, ou tataranetos, sei lá. Parece que ela tem mais de 100 anos e se lembra do momento da Abolição. Logo depois lá fui eu, acompanhado de um fotógrafo, dar início à minha carreira de repórter.

Na sala da casa do seu tataraneto me deparo com Tertulina, uma senhorinha de pele escura, pequena e franzina, cabeça coroada por cabelos brancos. No rosto, o que mais chamava a atenção era sua pele, bem esticada e quase sem rugas, e a cor dos olhos: eram quase azuis, como acontece com pessoas de etnias negras quando estão muito velhas e a melanina diminui.

“Sente-se aqui, meu filho”, ela disse, indicando uma cadeira quase a seu lado. “Preparem um café para o mocinho”, disse com voz firme aos da casa, mostrando claramente quem ali ainda segurava o bastão de comando. E a seguir, para mim: “O que você precisa? Por que veio me procurar?

Sem saber o que perguntar, pedi-lhe que me contasse um pouco da sua vida, do período em que fora escrava. Tertulina não se fez de rogada. Tinha uma memória prodigiosa. Contou que nascera na senzala de uma fazenda de cacau no sul da Bahia. A mãe morreu dias depois do parto, provavelmente vítima de uma infecção generalizada. O pai ela nunca soube ao certo quem era. Algumas escravas paridas assumiram os cuidados da recém-nascida. Ela foi instalada num cantinho da cozinha, e nas horas certas, as negras que amamentavam se revezavam e davam a ela um dos peitos.

“Fui criada assim, como um bichinho. Meus maiores mestres foram as criaturas da natureza, os pequenos animais. Observando os passarinhos aprendi a sobreviver no mato, pois tudo que o passarinho come a gente também pode comer sem perigo, as frutas, as ervas, raízes, sementes. Aprendi quando, no alto das árvores, uma passarinha acabara de por um ovo no ninho. E eu subia na árvore feito um sagui e ia comer o ovo ainda quente. Mas só podia fazer isso no máximo duas vezes. Se continuasse, a passarinha abandonava o ninho”. 

E como foi o momento da abolição da escravidão?

“Eu tinha 13 ou 14 anos, não sei bem ao certo, estava virando moça, quando o capataz da fazenda reuniu todos os escravos na senzala e disse que uma princesa no Rio de Janeiro assinara uma lei acabando com a escravidão. Agora estávamos todos livres, inclusive para escolher se queríamos continuar na fazenda, morando e trabalhando normalmente, sem salário nem direito algum. Ou então, quem quisesse poderia ir embora, por o pé na estrada, e todos sabíamos onde estava a porteira para entrar e para sair. Mas, disse o capataz, o conselho dele era que ficássemos na fazenda, pois da porteira para fora as chances de permanecer vivo eram muito poucas. Ele disse: Lá fora o mundo tá cheio de feras, de bandidos, sem falar nos monstros e fantasmas que espreitam atrás de cada árvore”.

E a senhora, o que fez? Ficou na fazenda?

“Não. Eu e mais uns quatro, todos órfãos, decidimos ir embora. Eu era a única menina. Ficamos juntos uma semana, até eles partirem e me deixarem sozinha. Fiquei andando sem eira nem beira, sobrevivendo graças ao que tinha aprendido na fazenda. Um dia cruzei na estrada com uma mulher, e ela me disse: ‘Você precisa ir para São Paulo, lá vai encontrar trabalho’. E como chego lá? ‘São Paulo fica no Sul. Toda manhã, quando o sol nasce, você estica o braço esquerdo na direção dele, e lá onde ele nasce é o Leste. O braço direito esticado aponta para o Oeste. Nas suas costas fica o Norte. O Sul fica à sua frente, para onde aponta o seu nariz. Vá sempre para o Sul, e você chegará a São Paulo.

Foi assim que Tertulina chegou a São Paulo, quase um ano depois. Passo a passo, a pé, descalça, comendo aquilo que encontrava pelas estradas.

“Aquela mulher tinha razão, meu destino apontava para São Paulo. Cheguei, comecei logo a trabalhar como empregada doméstica. Fui logo abençoada quando encontrei o homem da minha vida, com quem vivi muitos anos, depois nos casamos, tivemos filhos, netos, bisnetos... Fomos muito felizes. E nada disso teria acontecido se eu não tivesse posto o pé na estrada. Esse foi o propósito daquela viagem tão difícil, a pé, passando tantas necessidades, até chegar a São Paulo.”

Então, olhando firme nos meus olhos, disse Tertulina: “Porque tudo aquilo que existe, tudo aquilo que nos acontece de bom e de ruim, tem um propósito, meu filho. Tem a sua razão de ser. Nada é por acaso”.

Qual seria então, a razão de ser da vinda dos escravos africanos para o Brasil, com todo aquele sofrimento, as torturas, a perda da liberdade? perguntei.

“A resposta é simples: Viemos trazer a alegria, o samba, o carnaval. Tudo isso era muito necessário. Porque, que povo triste esses brancos que nos escravizaram, não é mesmo? Na senzala, lá na fazenda da Bahia, os escravos comentavam sobre os patrões. O fazendeiro, o dono, não sorria nunca. Parecia sempre enfezado. A mulher dele, a Sinhá, uma portuguesa, era um capeta, nem tanto conosco, os escravos, mas sobretudo com o marido e os filhos. Odiava estar no Brasil, só falava em voltar para Portugal. E tristes como eles era a maioria dos brancos, pelo menos naquela época. Alguém tinha de vir para cá e fazer alguma coisa. Trazer um pouco de alegria. Aos negros africanos tocou pagar o preço e cumprir essa missão”.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.