Tiranos reeleitos pelo povo

“A reeleição de um autocrata ao poder acelera a degradação da democracia”, diz estudo

Entrevista de Bolsonaro ao podcast Colab
Entrevista de Bolsonaro ao podcast Colab (Foto: Reprodução / Youtube)


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por César Locatelli

O Brasil teve o privilégio de poder observar, antecipadamente, as ondas de infecção por coronavírus em outros países para adotar medidas que poderiam diminuir a mortandade. Lamentavelmente, não o fez. Embora represente 2,8% da população mundial, o Brasil teve 10,5% do total de mortes no mundo.

De forma semelhante, o Brasil tem, neste momento, a oportunidade de evitar a escalada autoritária em curso. Tem como exemplos países como Turquia, Índia e Hungria que passaram pela reeleição de líderes autoritários antes de serem classificados como autocracias eleitorais, em que a legitimidade das eleições foi arruinada por irregularidades e limitações à competição.

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Em artigo de 2020 para a revista Quatro cinco um, Conrado Hübner Mendes, explicou que “os trinta anos da Constituição de 1988 ajudaram a perceber que o entulho autoritário não era entulho, mas estoque. Renovar a metáfora, contudo, não basta. É necessário entender como e por que o estoque cresceu e se diversificou. Não houve somente a continuidade do velho, uma simples apropriação do entulho. No ventre da democracia de 1988 foram criadas formas renovadas e originais de autoritarismo”.
Estudo do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) compilou, entre janeiro de 2019 e dezembro de 2021, um total 1.692 ações, de diferentes esferas de governo, que ampliam o Estoque Autoritário do Brasil. A primeira parte do estudo, denominado O Caminho da Autocracia, classifica tais ações, que elevam o grau de autoritarismo no país, em cinco eixos e dá exemplos.

Redução dos Mecanismos de Controle e/ou Centralização (424 ocorrências)

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Ao inviabilizar as atividades dos órgãos e agências internas de controle, o poder político é centralizado no presidente da República e seu círculo. Alguns exemplos citados no estudo: o Ministério da Saúde passa a omitir total de mortes por covid-19 (06/2020); onze dos vinte e três ministérios são chefiados por militares; Tribunal de Contas da União revelou haver 6.157 militares da ativa e da reserva em cargos civis do governo (07/2020); Câmara dos Deputados muda Regimento Interno e diminui instrumentos políticos da oposição (07/2020); servidores do ICMBio e do Ipea passam a ter suas publicações controladas (07/2020).

Violação da Autonomia Institucional (198 ocorrências)

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Semelhante a uma “evisceração institucional”, esta prática, fundada em posições político-ideológicas e interesses partidários, conduz ao esvaziamento de instituições da administração pública. Os seguintes atos exemplificam tais violações: em um ano como Procurador Geral da República, Augusto Aras se alinhou ao governo em mais de 30 manifestações (07/2020); a maioria dos Superintendentes estaduais do Ibama é exonerada, o que é considerado irregular em 10/2020 pelo TCU (07/2020); decreto destitui representantes eleitos e reduz participação de entidades sociais em vários conselhos participativos (07/2020).

Construção de Inimigos (620 ocorrências)

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As ações assim classificadas buscam retirar legitimidade de quem quer que se oponha às visões de mundo dos detentores do poder. Dois exemplos desta prática são: Jair Bolsonaro, em solenidade no Palácio do Planalto, afirma que pessoas de esquerda “não merecem ser tratadas como se fossem pessoas normais” (01/2020); Kassio Nunes Marques, ministro do Supremo Tribunal Federal nomeado por Bolsonaro, aciona a Procuradoria Geral da República contra Conrado Hübner Mendes, professor da USP e pesquisador do LAUT, por conta de texto publicado no jornal Folha de São Paulo (06/2021).

Ataque ao Pluralismo e a Minorias (235 ocorrências)

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O objetivo de atacar o pluralismo e as minorias, há muito discriminadas, é fazer prevalecer políticas discriminatórias, baseadas em concepções restritas. Dois ataques, um aos direitos reprodutivos das mulheres e outro a direitos dos povos originários, exemplificam: ministra do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos denuncia revista ao Ministério Público por reportagem sobre aborto legal (09/2019); adiamento do julgamento do marco temporal pelo STF ameaça direitos indígenas garantidos pela Constituição (09/2019).

Legitimação da Violência e do Vigilantismo (215 ocorrências)

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Exibição de força e disseminação de sentimento de insegurança compõem a base dessa categoria de atos. Algumas ações desta categoria são: edição de uma série de decretos que flexibilizam porte e posse de armas (06/2021); aprovação, pelo Congresso Nacional, de lei que amplia permissão de armas na área rural (06/2021); permissão, dada pelo TRF-5, para comemoração do golpe militar na página institucional do Ministério da Defesa (06/2021); criação de obstáculos e possível interferência no MP-RJ na investigação do homicídio de Marielle Franco e Anderson Gomes enfrenta (06/2021).

Olhando para o Futuro

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Para fechar a primeira parte, o estudo apresenta um conjunto de “Sinais de um Projeto Autocrático para o Brasil”:

“Chamam a atenção as seguintes propostas, que constituem agenda de longa data do governo:

- Permissão do ensino domiciliar – homeschooling – (PL 2401/19)

- Proibição de saída temporária da prisão (PL 360/21)

- Permissão de mineração em terras indígenas (PL 191/20)

- Alteração da demarcação de terras indígenas – o chamado marco temporal – (PL 490/2007)

- Facilitação do licenciamento ambiental (PL 3729/2004)

- Ampliação do porte de armas para servidores públicos (PL 6438/19)

- Regulação das atividades de colecionador, atirador esportivo e caçador (CAC) (PL 3723/2019)

- Redução da maioridade penal (PEC 115/2015)

- Ampliação da regularização fundiária (PLS 510/2021)

- Instituição de garantias jurídicas a policiais (em elaboração)

- Ampliação de garantias ao agronegócio (MP 1104/22)”

Estratégias e táticas autoritárias em políticas públicas de educação, espaço cívico e segurança

A segunda parte do estudo aponta semelhanças entre as investidas autoritárias no Brasil, Índia, Hungria e Polônia nas políticas sociais da educação, do espaço cívico e da segurança pública. Os autores ressaltam que:

“Educação, espaço cívico e segurança pública são áreas de especial interesse aos líderes autoritários, sendo frequentemente cerceadas desde seus primeiros mandatos. Nelas, é possível observar a disseminação da autocensura, do medo e da desconfiança, que atrofiam o projeto democrático. Sem estudantes e acadêmicos críticos, uma esfera pública vibrante e políticas de proteção aos cidadãos, dentre tantos outros aspectos relevantes, as democracias vão perdendo seus lastros de legitimidade e confiança recíproca, sem os quais não sobrevivem.”

O quadro abaixo resume as principais estratégias e táticas autoritárias usadas na elaboração de políticas públicas nas três áreas.

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Quais são os possíveis efeitos da reeleição de Bolsonaro?

Respondendo à pergunta acima, formulada pela jornalista Carolina Azevedo para publicação no Le Monde Diplomatique Brasil, Adriane Sanctis, pesquisadora do LAUT, afirma:

“Em países com manutenção de autocratas no poder, as ações e omissões dos primeiros anos de governo se multiplicam e aprofundam com o  tempo. Além disso, uma reeleição é geralmente lida e usada pelos autocratas como uma espécie de aval majoritário que acaba servindo de motor para acelerar ainda mais o espiral autoritário e a implementação de medidas mais gravosas contra liberdade civis e políticas. Em outras experiências de autocratização, a reeleição é um momento central de consolidação de um regime autoritário, um ponto de não retorno.”

Advertência

“Não há receita pronta para se interromper ou reverter o processo de autocratização. A retomada da marcha de aprofundamento da democracia ainda não está no horizonte. O que se sabe, com base nas experiências relatadas, é que a reeleição do autocrata põe em risco a própria manutenção da competição democrática”, conclui o estudo.

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