Todos os corpos
Entre o avanço da crise climática, o controle moral dos corpos e as violências do imperialismo
Nunca na história desse país um ano pariu outro antes da noite da virada. 2026 nasceu em 2025 em meio à contração de acontecimentos. No Rio de Janeiro, o verão chegou lindo como sempre. A novidade é que as praias estão cheias de crianças vestidas. Por causa da forte incidência de raios ultravioleta, uma geração protegida com camisas, calças e chapéus anti-UV está crescendo sem sentir por inteiro a água do mar, e adultos também aderiram para evitar a intensa radiação solar, que causa câncer de pele, entre outras consequências decorrentes da alteração do clima do planeta.
Nos países islâmicos, o índice de câncer de pele é de 0,2 a 0,4 em cada 100 mil mulheres. O assunto já foi matéria aqui nos trópicos, que batizou de “burquini” a roupa de praia das muçulmanas. Enquanto os governos administradores do capitalismo discutem as providências para conter o problema do aquecimento, é provável que estilistas e a indústria de tecnologia têxtil desenvolvam modelos que protejam da cabeça aos pés os praieiros do Ocidente.
Quem também pega carona é o moralismo religioso e social. Há precedente no Brasil. Em agosto de 1961, o então presidente Jânio Quadros assinou o decreto 51.182, que proibia o uso de biquíni nas praias e piscinas públicas. “Tão graves como a situação econômica e financeira se me afigura a crise moral, administrativa e político-social em que mergulhamos”, declarou no discurso de posse. Hoje, a repressão escala em nome dos bons costumes, da segurança e da saúde. A regressão é ardilosa.
Faz frio na Palestina. Muitas crianças estão desnudas ou com pouca roupa para se aquecer. Fora as 50.000 assassinadas nestes quase três anos de massacre de Israel contra a população de Gaza. A essas não foi dado nem o direito de conhecer ou desfrutar de um ambiente quentinho.
Numa região do Saara Ocidental, há 50 anos, o êxodo de parte do povo saarauí em luta contra o Marrocos ergueu a RASD – República Árabe Saaraui Democrática. Desde então, o deserto não é mais deserto no território cedido pelo governo democrático popular da Argélia. Em cinco áreas chamadas acampamentos, o governo da RASD constituiu ministérios, universidade que tem convênio com instituição federal brasileira, faculdade de cinema e de teatro, hospital público, ensino fundamental e médio completos, com aulas regulares de língua inglesa, francesa, espanhola e árabe, as duas últimas de uso cotidiano.
A RASD é reconhecida pela União Africana e mais 46 países. Seus cidadãos têm status de refugiado pela Organização das Nações Unidas, o que assegura a assistência do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. A luta contra a apropriação colonial do Marrocos tem amparo da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Saara Ocidental, que permitirá ao povo saarauí decidir ou não pelo direito à autodeterminação. Cerca de 200 mil saarauís vivem distribuídos em cinco acampamentos. São homens, mulheres e crianças exilados da terra, organizados e prontos para voltar ao pedaço de chão que lhes pertence.
2026 nasceu no berço do imperialismo disposto a eliminar os corpos que não cabem na sua medida. Assassinos são presidentes de repúblicas. Jornalistas abastecem editorias de notícias plantadas de nefasta irresponsabilidade. Nas redes sociais, indivíduos convencidos de empoderamento por mais de trinta anos de discurso neoliberal legislam contra si próprios e cometem suicídio político.
2025, Annus horribilis. A expressão cunhada em 1992 pela rainha Elizabeth da Inglaterra para descrever um ano de grandes dificuldades se tornou corrente para marcar infortúnios significativos.
2026 não tem culpa. Recorrendo a Simone de Beauvoir: “ninguém nasce, se torna”. Então, somos nós. Feliz Ano Bom.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

