Todos os presidentes militares fracassaram
Com Tarcísio, as elites insistem em repetir erros do passado
É preocupante. As elites brasileiras insistem em repetir seus erros “ad eternum”. Já passamos (e sofremos) com dez governos militares desde a Proclamação da República. Incluindo o capitão Jair Bolsonaro, que trocou a farda pelo paletó, mas continuou sendo um homem da caserna, o que é fácil constatar pelo seu vocabulário chulo, gestos hostis, ameaças e chantagens, idolatria por torturadores. Clima de guerra. Conspirações. Ataques às instituições. À imprensa, às artes. Às mulheres. Às minorias.
A tentação do militar no poder é transformar o país num imenso quartel. No qual ele manda e todo mundo obedece. Se não obedecer, pau nos desobedientes!
Bolsonaro fracassou, tal como os dez presidentes militares anteriores. E, ainda assim, as elites apostam em Tarcísio de Freitas para 2026. Um simulacro de Bolsonaro.
Tal como seu “mestre”, ele tem uma sólida formação militar no Exército Brasileiro, iniciada ainda na adolescência, ao entrar na Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx), em Campinas (SP), para o ensino médio militar.
Cursou, a seguir, a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), em Resende (RJ), onde se formou em 1996 com bacharelado em Ciências Militares, em Engenharia.
Serviu no Exército por cerca de 17 anos, chegou a capitão, tal como seu “mestre”, atuou em engenharia de combate, supervisão de obras de infraestrutura e comandos de pelotões, até 2008.
Também serviu na Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH), entre novembro de 2005 e junho de 2006, criticada por organizações internacionais devido a incidentes como abusos e violência em favelas haitianas.
Tal como seu “mestre”, seu vocabulário é limitado, sua formação, mais limitada ainda, seus gestos são toscos e agressivos, seu governo tem preocupação social zero, a educação está achincalhada, a política econômica é desastrosa e a espinha dorsal do governo é a repressão desproporcional a “bandidos”, reais ou imaginários. Sangue, muito sangue mancha a bandeira paulista.
Tal qual seu “mestre”, ele foi treinado para mandar em quem está abaixo e obedecer quem está acima. E ponto final. Sem dialogar. Militares, quando entram no mundo político, repetem essa tradição. Não foram treinados para conversar, e sim para mandar. E quando têm poder e não são obedecidos, respondem com repressão. E se não são reeleitos, tentam dar golpe para continuar. Ou derrubam ou são derrubados.
Desde a fundação da República, os presidentes militares fizeram mais mal que bem ao país. Não trouxeram nem ordem nem progresso, como apregoa o lema da nossa bandeira. Muito ao contrário. Todos fracassaram.
O marechal Deodoro da Fonseca é o primeiro da lista. Embora exaltada nos livros de História, a proclamação da República foi um golpe militar. Os militares não perguntaram se o povo queria derrubar D. Pedro II. Temiam, vai ver, que a resposta fosse “não”. Como o uso do cachimbo faz a boca torta, Deodoro governou por decretos, com poderes centralizados, dissolveu assembleias estaduais e nomeou governadores. Mais imperial que o imperador. Enganou-se quem pensou que o fim da monarquia seria o começo da liberdade política e os brasileiros teriam seus direitos civis.
Vá lá, a imprensa teve relativa liberdade no início, mas quando Deodoro fechou o Congresso, aí a censura aumentou, jornais monarquistas e oposicionistas foram empastelados. Em vez de o governo censurar, capangas do governo quebravam as tipografias.
Incapaz de governar pacificamente, Deodoro decretou o estado de sítio, um tiro no pé, pois, sob pressão de revoltas como a Revolta da Armada, ele teve que ir para casa.
É evidente que, desde que o mundo é mundo, a instabilidade política sempre gera crises econômicas (como a do Encilhamento, uma bolha especulativa, no caso de Deodoro). Todo governo militar, como veremos adiante, produz crises políticas, sociais e econômicas. E não só no Brasil. Não porque os militares sejam maus; é que não foram preparados para governar democraticamente.
O vice Floriano Peixoto assumiu a presidência após a renúncia de Deodoro. Sua alcunha - “Marechal de Ferro” - dá uma ideia de seu perfil autoritário, o que ele foi desde o início, pois não convocou eleições depois da renúncia de Deodoro, como previa a constituição de 1891.
Revoltas militares, como a Revolta da Armada e a Revolução Federalista no Sul ensejaram longos períodos de estado de sítio, sem garantias civis mínimas, repressão pesada a monarquistas e outros dissidentes republicanos, prisões e exílios de políticos e de jornalistas.
Jornais oposicionistas, especialmente monarquistas, foram censurados, e jornalistas, perseguidos. O governo controlava a narrativa pública, limitava críticas. Sua imagem de “Marechal de Ferro” dividia opiniões: para alguns, ele era um defensor da República; para outros, um ditador. Estou com estes. Ninguém tem apelido de “Marechal de Ferro” impunemente.
A repressão violenta às revoltas e a crise econômica (continuação do Encilhamento) resultaram num governo instável. A falta de legitimidade democrática e a polarização política enfraqueceram a coesão nacional. Floriano conseguiu preservar a República, mas a custo de repressão e instabilidade, sendo seu governo mais bem-sucedido em manter o regime do que em promover progresso amplo.
Sobrinho de Deodoro, o marechal Hermes da Fonseca foi eleito presidente durante a Primeira República, em um período de consolidação do regime, mas também de tensões sociais e políticas. Seu governo enfrentou a Revolta da Chibata (1910) e conflitos regionais, como a Guerra do Contestado.
O governo de Hermes operou dentro do sistema oligárquico da Primeira República, com eleições manipuladas pelas elites (o “coronelismo”). Embora formalmente democrático, com eleições e Congresso a todo vapor, sua administração usou medidas repressivas contra movimentos sociais, como a violenta repressão à Revolta da Chibata e à Guerra do Contestado. O estado de sítio foi decretado em algumas ocasiões, limitando liberdades.
A imprensa tinha mais liberdade do que nos governos anteriores, mas ainda enfrentava pressões. Jornais oposicionistas podiam criticar o governo, mas em momentos de crise (como a Revolta da Chibata), houve censura e perseguição a publicações críticas.
Em “O Pirralho”, jornal cujo dono era seu pai, Oswald de Andrade brindou Hermes da Fonseca com palavras como essas:
“Mais tarde quando passar esta nuvem que ameaça o nosso céu azul, com os seus prenúncios de desgraça e loucura, quando uma serena paz consoladora fizer quase esquecida esta situação de capangas ao poder, hão de vir os curiosos da história documentar o que foi Hermes da Fonseca, o “Marechá”:
Dormindo de espora e relho
num grato sonho me embalo
domar a pátria querida
como quem doma um cavalo!”
E mais essas:
“Hermes vai reunindo na carcaça de hemorroidário típico, todas as desgraças do corpo e todas as decadências da idade. Hermes fala fanhoso, dando mais ideia de um fazendeiro chinfrim”.
O marechal Eurico Gaspar Dutra, eleito em 1946, depois da deposição de Getúlio Vargas, fechou os cassinos, o que desempregou tanto artistas de escol, como Carmen Miranda, como humildes garçons, maitres e outros brasileiros que do dia para a noite começaram a comer - e as suas famílias - o pão que o diabo amassou. E ainda por cima deu prejuízo à cidade, cuja maior atração noturna era essa. Os turistas sumiram.
Ele cassou o registro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1947 e reprimiu movimentos trabalhistas, sucumbiu aos tempos de Guerra Fria, se apoiou na muleta do anticomunismo. Sindicatos foram controlados, e greves, reprimidas.
A imprensa teve relativa liberdade, não havia mais o DIP de Getúlio Vargas, pero no mucho: O Globo e o Correio da Manhã, até criticar o governo podiam, mas publicações comunistas enfrentaram censura e proibições, especialmente após a ilegalidade do PCB.
Dutra teve apoio inicial por representar a volta da democracia, mas sua popularidade caiu, para variar, devido à crise econômica que não conseguiu controlar. Hoje é mais conhecido pela estrada que une Rio a São Paulo, a Via Dutra, palco do acidente que matou o ex-presidente Juscelino Kubitschek, em 1976, em circunstâncias até hoje nebulosas.
Como me propus falar de presidentes militares e não de governos militares, deveria ignorar os cinco generais que governaram entre 1964 e 1984. Mas não custa lembrar que todos eles foram responsáveis por interromper o progresso e o clima de otimismo que o país estava vivendo desde a inauguração de Brasília, Juscelino, Cinema Novo, Bossa Nova, Miss Universo.
De repente o Brasil saiu da luz para a escuridão, das praias para os porões, dos sorrisos para os gritos e o resultado foram crises econômicas, inflação galopante, escândalos financeiros, isolamento do país, retrocesso na tecnologia, na arte, na cultura, na educação, prejuízos que jamais serão repostos. Se ainda faltava alguma prova de que os militares não servem para a política, não faltava mais.
Autores brasileiros destacam como o currículo das academias militares (como a AMAN - Academia Militar de Agulhas Negras) reforça uma visão hierárquica e ideológica que colide com a democracia, e, portanto, inviabiliza militares no mais alto cargo político do país.
Ana Amélia Penido Oliveira, pós-doutoranda em ciências políticas, Unicamp, em seu livro "Como se Faz um Militar? A Formação Inicial na Academia Militar das Agulhas Negras de 1995 a 2012" (2024), afirma que o treinamento militar brasileiro, focado em disciplina física, doutrina anticomunista e "superioridade técnica", cria oficiais despreparados para governança democrática.
Os currículos da AMAN, segundo ela, ignoram noções de Estado de Direito e diálogo civil, fomentando "golpismo" e rigidez ideológica. Oliveira liga isso a falhas históricas, como a repressão na Ditadura, e alerta para riscos atuais, como a tentativa de golpe de estado em 2022.
O historiador e ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, José Murilo de Carvalho, em artigos como "Recuperando o Tempo Perdido: O Estudo das Forças Armadas e a Política no Brasil" (2020), critica o "isolamento cognitivo" dos militares, resultado de treinamento autocentrado em guerra e ideologia conservadora. Ele argumenta que isso leva a fracassos em governos, como na Primeira República e na Ditadura, onde militares priorizaram repressão sobre reformas sociais, erodindo a legitimidade. Carvalho enfatiza que o recrutamento e treinamento das Forças Armadas criam uma "realidade paralela" incompatível com a democracia.
Paulo Ribeiro da Cunha, professor de Teoria Política da Unesp, em análises sobre anistias e golpismo (2024), afirma que a má gestão civil sobre militares, combinada com treinamento inadequado para governança, perpetua ciclos de fracasso.
Ele cita como exemplo a anistia de 1979: militares de direita foram reintegrados sem questionar sua formação bélica, enquanto progressistas foram marginalizados, fortalecendo narrativas golpistas. Cunha liga isso a falhas estruturais em regimes militares brasileiros, onde o foco em "inimigos internos" ignora desafios civis como economia e direitos.
Wendy Hunter, cientista política da University of Texas, com foco na América Latina, referência em estudos brasileiros, diz, em "Erosão ou Retirada? A Influência Militar na Política Brasileira", que governos militares fracassam por "prerrogativas institucionais" herdadas de treinamento hierárquico, que resistem à competição eleitoral e à governança civil. Hunter analisa o pós-Ditadura, mostrando erosão gradual, mas persistência de falhas devido à formação marcial.
Esses estudiosos convergem na ideia de que o treinamento militar — hierárquico, focado em obediência e guerra — gera "incompatibilidade estrutural" com governança democrática, levando à repressão (ex.: Ditadura Militar brasileira), crises econômicas e instabilidade (ex.: Primeira República).
Estudiosos internacionais frequentemente analisam governos militares em contextos globais, incluindo América Latina, destacando o "paradoxo" da formação marcial: enquanto eficaz em cenários de crise bélica, ela é inadequada para a governança cotidiana, promovendo autoritarismo e falhas em adaptação civil.
O britânico Peter M. Stirk, historiador de relações internacionais, em seu trabalho sobre "Military Government as a System of Rule: Peculiarities and Paradoxes" (2023), argumenta que estruturas militares, moldadas por treinamento para guerra, criam paradoxos em governos civis.
Elas priorizam controle hierárquico e recrutamento interno, mas falham em lidar com sociedades complexas, levando a repressão e isolamento de instituições civis. Ele cita exemplos de ocupações pós-guerras mundiais, onde militares impuseram "governos de força" que colapsaram por falta de legitimidade democrática. Essa tese se aplica a regimes latino-americanos, onde o treinamento bélico gera "autoridade marcial" temporária, mas fracassa em transições para a estabilidade.
A cientista política Jessica Weeks, da Universidade de Cornell, EUA, em "Dictators at War and Peace" (2014) e artigos subsequentes, endossa que regimes militares, especialmente aqueles com treinamento focado em doutrina anticomunista e guerra interna, são propensos a erros estratégicos e repressão excessiva.
Ela diferencia tipos de autoritarismo, mostrando que governos militares fracassam em democratizações por "empoderar elites marciais" que veem a política como extensão da guerra, levando a golpes e erosão institucional. Seu trabalho influenciou análises sobre por que, entre 1789 e 2008, a causa do colapso de 61% das democracias foram intervenções militares.
Risa A. Brooks, professora de ciência política da Marquette University, EUA, em "Making Military Might: Why Do States Fail and Succeed?" (2003), analisa falhas estatais em construir forças armadas eficazes para governança. Ela argumenta que o treinamento militar, centrado em "condução de guerra", ignora habilidades de "governança civil-militar", resultando em ineficiência e crises de legitimidade. Exemplos incluem ditaduras latino-americanas, onde militares, sem preparo para economia ou direitos humanos, geram instabilidade crônica.
Se os militares querem o bem do Brasil - e tenho certeza que assim é - devem se afastar da política e se concentrar em suas tarefas mais indispensáveis, como a proteção das nossas fronteiras - terrestres, marítimas e aéreas - e das nossas riquezas naturais, sobretudo na Amazônia.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




