CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
Carlos Fraga avatar

Carlos Fraga

Jornalista e mestre em Educação

7 artigos

blog

Três riscos para a retomada da construção democrática

"Sabemos que, na política, nada é possível além da correlação de forças existente. Não adianta colocar o desejo acima da realidade. Isso costuma dar em nada. Vencer o fascismo de Bolsonaro e a direita liberal será, sem dúvida, um grande feito, considerando o quadro atual do País"

(Foto: Midia Ninja)
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

A conjuntura política apresenta-se hoje de forma favorável ao campo democrático e progressista. É cristalino o desgaste de Bolsonaro com a escalada sem fim da pandemia no Brasil, ampliado pela CPI da covid-19 que tem exposto diariamente a corrupção no processo de compra de vacinas e a atuação deliberada do governo, sob o comando inequívoco do presidente, para que o vírus contamine um número cada vez maior de pessoas. A maioria da população, incluindo muitos dos que há pouco tempo apoiavam Bolsonaro, já percebeu a responsabilidade dele nesta tragédia que, além de sanitária, é econômica, política, institucional, social e ética. 

É evidente também a dificuldade que a direita liberal enfrenta para emplacar um nome que represente o que ela chama sorrateiramente de 3ª via, mas que, em última instância, tendo em vista o projeto econômico e social, é a própria primeira via com feições menos assustadoras que a do atual mandatário, eleito com sua ajuda decisiva.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

A recuperação dos direitos políticos de Lula o colocou rapidamente como a principal, se não a única, alternativa viável para a vitória de um projeto de caráter popular e democrático nas próximas eleições. A notória habilidade do ex-presidente associada à fragilidade da representação política da burguesia liberal produz um ambiente favorável a um grande arco de alianças em torno da candidatura petista.

Tudo parece transcorrer para um desfecho revigorante a recolocar o País no rumo da construção de uma nação com alguma soberania, democracia e justiça social. Pode ser que o roteiro dos acontecimentos nos leve mesmo a isso. Mas pode ser que não, caso não nos vacinemos contra alguns riscos.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Risco 1 – subestimar Bolsonaro e a chance de golpe aberto

 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Um deles é achar que a vitória de Lula nas eleições de 2022 é certa. Não é. Bolsonaro está de fato em seu pior momento, como observou seu testa-de-ferro na Câmara Federal, Arthur Lira, semanas atrás. Mas os 14 meses que nos separam das eleições podem ser uma eternidade. O tempo político é traiçoeiro. Recordemo-nos das eleições de 1994. Até maio/junho daquele ano, todas as pesquisas cravavam a vitória de Lula sobre qualquer candidato com ampla vantagem. Em julho, veio o Plano Real e Lula foi atropelado por FHC e pela mídia do grande capital.

Mesmo com a tragédia sem precedentes que o País está vivendo e com a evidente responsabilidade sobre ela, Bolsonaro ainda possui certa margem de manobra para recuperar popularidade. Apesar de pouco provável, caso consiga se segurar no cargo, é possível que em pleno ano eleitoral resolva mandar às favas a responsabilidade fiscal e o teto de gastos exigidos pelo mercado e conceda um auxílio emergencial robusto ou aumente o valor e a abrangência do bolsa família para milhões de brasileiros. 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Paralelamente, em que pese todo o esforço palaciano para espalhar o vírus e não proteger a população, podemos chegar ao ano que vem com uma cobertura vacinal que traga de volta a segurança para o convívio social, permitindo alguma recuperação econômica, ainda que tímida. Nesse contexto, a partir da fidelidade da base fanática mantida por meio de um repertório fascista, não é improvável que o presidente atinja um patamar de intenções de voto entre 35% e 40%, avançando sobre parte dos eleitores-pêndulos que hoje estão com Lula e recuperando outros tantos desgarrados. Nesse cenário, delineado pelo malogro da falaciosa terceira via, Bolsonaro contaria com a reedição do apoio da direita liberal no segundo turno, o que colocaria em risco a vitória do campo popular com Lula.

A outra vertente do risco Bolsonaro está na sua proposta golpista de adoção do voto impresso. A bravata de cancelamento das eleições após a derrota na Câmara Federal da alteração, supostamente singela, no sistema de votação não pode ser menosprezada. Bolsonaro contaria com a adesão de setores das Forças Armadas e das polícias militares, além de milicianos urbanos e rurais. Mesmo sem força para se sustentar, a aventura causaria estragos, colocando vidas em risco e bagunçando as instituições a ponto de instar as oligarquias a novos golpes travestidos de legalidade contra a vontade popular sob o pretexto de proteger a democracia de investidas autoritárias. 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

A revelação, pelo Estado de São Paulo, da ameaça de intervenção feita pelo ministro da Defesa, general Braga Neto, ao presidente da Câmara, Arthur Lira, é apenas uma leve amostra do ânimo da parte golpista das FFAA. A negação de tal ameaça, por ambos, não foi suficiente para desanuviar o ambiente de instabilidade institucional, uma vez que os chefes das Forças já manifestaram alinhamento com a estratégia golpista do presidente e já deram demonstrações de sua disposição em rejeitar a vontade popular caso ela recaia sobre Lula.

Mesmo com a derrota da proposta de emenda constitucional da deputada bolsonarista Bia Kicis, o campo democrático deve esclarecer a população sobre o tema. O principal argumento não pode ser apenas o de que o voto eletrônico é seguro e auditável. É preciso demonstrar o que está por trás da proposta de impressão do voto. A emenda de Bia Kicis pretendia que o voto de cada eleitor fosse impresso no momento em que a escolha fosse assinalada na urna eletrônica. O pretexto era permitir que o eleitor verificasse instantaneamente que o voto dado por ele ao apertar o botão seria o mesmo que apareceria na impressão. De acordo com a proposta da deputada, essa impressão não passaria pelas mãos do eleitor, sendo depositada diretamente em outra urna, que foi vendida como “indevassável” pela redação da emenda.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Aparentemente inofensiva, o que a proposta visa, de fato, é à possibilidade de realizar a conferência dos sufrágios após o encerramento do pleito, confrontando os votos assinalados eletronicamente com a sua suposta cópia fiel em papel. Os bolsonaristas dizem que esse procedimento seria o mais normal e corriqueiro do mundo em um processo democrático. Se a urna eletrônica é confiável, argumentam eles, o voto de cada eleitor que sairá impresso dessa urna e será depositado em uma outra urna também seria. Apesar de a medida ser desnecessária, pois já há o registro impresso dos votos eletrônicos, o argumento seria válido até esse ponto, se não escondesse outras intenções. O problema está exatamente no que viria depois. 

Quando o voto era realizado em cédula de papel, após o encerramento do pleito, as urnas eram transportadas para as seções de apuração. A instituição responsável pela vigilância e transporte dessas urnas era a Polícia Militar de cada estado. Ao se reeditar essa logística, reinstituindo-se as urnas com votos individuais em papel, separadas e independentes das urnas eletrônicas, os tais votos impressos voltariam a ficar vulneráveis.

Derrotado nas eleições, Bolsonaro entraria imediatamente com pedido de recontagem dos votos, que nada mais é do que a contagem dos votos impressos. Caso esses votos não correspondessem aos registrados nas urnas eletrônicas, por sofrerem “mutações” entre a seções de votação e os locais de apuração, estaria estabelecido o caos. 

Com essa armação, Bolsonaro acionaria suas milícias para dar o golpe e permanecer no poder. É isso que precisa ser dito com toda a clareza para a sociedade. Mesmo com a derrota da emenda de Bia Kicis, é importante fazer esse esclarecimento aos eleitores para que eles saibam quais são as verdadeiras intenções golpistas por trás da proposta de voto impresso e não pairem dúvidas sobre o resultado das eleições de 2022 a alimentar a base bolsonarista e os incautos, que sobreviverão a Bolsonaro.  

O campo democrático precisa demonstrar que a possibilidade de fraude estaria na adoção da impressão do voto tal como preconizado pela emenda de Kicis e não na manutenção do sistema de votação atual.

Caso Bolsonaro não seja retirado da presidência, a crise institucional alimentada por ele deverá permanecer até às vésperas da eleição. Não está descartada outra manobra para instituir o voto impresso. Caso ela ocorra e tenha êxito, estará aberto o caminho para a fraude. Se o sistema de votação atual for mantido, ficaremos sob a ameaça do cancelamento das eleições imposto por um golpe armado.

Risco 2 – subestimar a direita liberal e a chance de golpe disfarçado

Outro risco é considerar que a direita liberal não tem nenhum poder de recuperação eleitoral. Essa é uma falsa impressão dada pela conjuntura atual. Se tem uma coisa que a direita liberal sabe fazer é mudar o cenário político à força para atingir seus objetivos. Golpes, militares ou midiático-judiciais, e eleições precedidas por campanhas políticas midiáticas travestidas de jornalismo estão aí para comprovar. 

A manter-se o quadro de polarização entre Lula e Bolsonaro, a direita liberal corre mesmo grande risco de ficar sem protagonismo na disputa. Mas já é possível identificar movimentos com vistas a tornar o cenário um pouco mais favorável aos liberais, recolocando-os no jogo eleitoral com força competitiva. 

A movimentação é traduzida pelo aumento da fervura em torno das possibilidades de impeachment e de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão pelo TSE.  Até aqui, essas espadas, afiadas pela CPI do genocídio, estão colocadas sobre a cabeça do presidente como forma de chantagem para que seu governo continue aprovando as reformas econômicas e as privatizações infames do ministro banqueiro Paulo Guedes, defendidas e comemoradas pela grande burguesia. Têm tido também a função de minar sua base eleitoral. A partir de agora, a direita liberal viverá o dilema entre fazê-lo sangrar até o pleito, desidratando a sua popularidade, e retirá-lo já da presidência, tornando-o inelegível.
A decisão do TSE de quebrar o sigilo de empresários ligados à chapa Bolsonaro-Mourão para investigar o ataque hacker sofrido pelo grupo “Mulheres unidas contra Bolsonaro” no processo eleitoral de 2018 e o compartilhamento com o tribunal eleitoral, pelo ministro Alexandre de Moraes, das provas obtidas no processo que tramita no STF sobre fake news são alguns indícios de que algo se move nos bastidores para reintroduzir a direita liberal na arena principal da disputa pelo poder central. 

A escolha do TSE como novo campo de batalha coloca-se como alternativa ao impeachment, inviabilizado até aqui devido à cooptação do presidente da Câmara, Arthur Lira, por Bolsonaro, ao custo de cerca de 11 bilhões de reais em emendas parlamentares no chamado orçamento secreto. Contudo, as recentes denúncias de favorecimento do filho de Lira em contratos relacionados ao governo e a repentina aparição do desconhecido primeiro vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), dizendo que os pedidos de análise de crimes de responsabilidade de Bolsonaro precisam ter andamento, mostram que o impeachment ainda não foi totalmente descartado.
Em termos econômicos, sociais e éticos, no entanto, o impeachment não mudaria praticamente nada tendo em vista as características quase idênticas entre o capitão e o general que assumiria o posto.  No âmbito político-eleitoral, Mourão seria cooptado pela direita liberal com o objetivo de fazer uma transição que tentasse criar um ambiente favorável à via do grande capital e desfavorável à via popular e democrática, facilitando toda a sorte de casuísmos e golpismos contra a candidatura Lula. Apesar disso, e paradoxalmente, a saída imediata de Bolsonaro é tudo o que a esquerda e todo o campo democrático e popular desejam, por se tratar de uma necessidade humanitária, de medida para salvar vidas e reestabelecer um clima minimamente civilizado no País. Mesmo que seja apenas pelo simbolismo contido na interdição de alguém tão ousado na maldade.

A cassação da chapa, com a antecipação das eleições, seria o melhor dos mundos para o Brasil. Mas essa operação é de alto risco para os interesses da direita liberal, uma vez que o retrato atual da corrida para presidente revela uma imagem minúscula de seus candidatos e um Lula turbinado. Se essa for a única saída para a direita liberal, só deverá ocorrer em meados de 2022, quando os articuladores desse campo político esperam ter uma candidatura consolidada e anabolizada pela mídia hegemônica. 

Está ficando claro que a via do grande capital - antidemocrática, concentradora de riqueza e entreguista, mas pretensamente limpinha e cheirosa - ampliará suas chances se a sua versão fétida e tosca ou a via democrática e popular for inviabilizada dentro ou fora das leis. Com uma delas fora do tabuleiro, a burguesia liberal jogará todas as suas fichas na criação de uma candidatura forte o suficiente para chegar ao segundo turno, por meio de uma grande frente de centro-direita-ultradireita, caso seja contra Lula, ou de uma grande frente de direita-centro-esquerda, caso seja contra Bolsonaro. 

O descarte de Bolsonaro torna-se mais provável não porque a burguesia liberal quer acabar com a matança e a fome do povo, mas porque precisa retomar o controle total da gestão do Estado para dar continuidade ao seu projeto ultraliberal de maneira mais competente que o fascismo do atual mandatário. Esse caminho ganha força também em razão das dificuldades encontradas, até agora, de tornar Lula inelegível por meio de novo golpe judiciário, o que não está, todavia, descartado. O relatório assinado pelo economista Victor Candido, do banco Santander, e a sua defesa desavergonhada de um golpe de Estado para impedir a vitória Lula nas eleições não representa um estado de espírito isolado no universo do capital financeiro, como creem alguns analistas. Talvez, Victor Candido destoe de parte dos donos do Brasil apenas na tática e nos métodos. Mas o seu objetivo estratégico é generalizado entre essa gente.

A perda dos direitos políticos por Bolsonaro mexeria muito no jogo eleitoral. Uma parte de seus eleitores poderia até migrar para Lula, outra anularia o voto, mas outra parte, talvez a maior, sobretudo no segundo turno, embarcaria na candidatura que essa burguesia liberal venha a chamar de sua. Parcela significativa do centro e da centro-direita, que hoje está sendo articulada por Lula e tem grande chance, a permanecer o cenário atual, de apoiá-lo em 2022, se bandearia para essa mesma candidatura liberal a encarnar outra vez o espírito anti-Lula e anti-PT, que a mídia tentaria reconstruir artificialmente. 

Falta, contudo, um nome de peso para ocupar esse espaço. Têm sido testadas, sem sucesso, várias alternativas para representar esse projeto. Simone Tebet e Datena parecem surgir como mais dois nomes a serem postos à prova.  Mas entre todos os balões de ensaio realizados até agora, o nome que demonstrou maior densidade foi o de Sérgio Moro. O ressurgimento dele no cenário político há cerca de um mês não é um movimento voluntarista e isolado do ex-ministro de Bolsonaro nem do partido que deseja abrigá-lo, o Podemos. As oligarquias já perceberam que, a ser mantida a estratégia inicial de apenas fazer Bolsonaro sangrar na presidência até o pleito do ano que vem, as chances de Lula vencer no primeiro turno são grandes.  

Moro, que já havia sido descartado na época em que a opção pelo sangramento de Bolsonaro era mais forte, volta a despontar como possível solução para a burguesia liberal exatamente porque ganhou força a possibilidade de retirar o fascista da disputa. Em um pleito com a presença de Bolsonaro, Moro teria pouquíssimas chances de passar para o segundo turno, porque ambos navegam no mesmo leito político e ideológico. Sem o capitão, a coisa muda de figura. 

Para um candidato da direita liberal ganhar corpo é necessário que Bolsonaro seja removido da disputa ou que seu sangramento vire uma grande hemorragia. Na perspectiva de uma eleição sem Bolsonaro ou com ele nocauteado, o ex-juiz que golpeou a democracia e a economia brasileiras, sob o comando do império estadunidense, tornar-se-ia o centro de gravidade capaz de aglutinar bolsonaristas arrependidos e uma parcela importante do eleitorado que é, ao mesmo tempo, antibolsonarista e antilulista/antipetista.  

Engana-se quem avalia que Moro foi destruído eleitoralmente por causa dos crimes que cometeu nos processos da Lava Jato. Apesar de sua aura de cavaleiro anticorrupção ter sido manchada para uma parcela mais bem informada, grande parte dos setores que o veneraram durante seus tempos de herói absoluto sequer tomou conhecimento desses crimes, devido à blindagem feita por sua parceira de primeira hora e que nunca o abandonou, as Organizações Globo. E entre aqueles que sabem o que ele fez, muitos o aplaudem e sonham com sua candidatura. 

Em um cenário de disputa entre Lula e Moro, até mesmo boa parte dos bolsonaristas fanáticos, de raiz, que se voltaram contra o ex-ministro após seu rompimento com o governo, optariam por ele para derrotar Lula. A recompensa do agente da inteligência estadunidense que se disfarçou de juiz para corromper o sistema de Justiça brasileiro, desde o início, seria a presidência da República ou uma vaga no STF. 

O plano da presidência, inicialmente descartado em razão da demonstração da farsa que foi a Lava Jato e o julgamento de Lula e também devido à polarização entre o ex-presidente e Bolsonaro, volta a ser aventado nas altas rodas de whisky da burguesia transnacional. Se Bolsonaro for tirado da disputa ou chegar às eleições em frangalhos, Moro passa a ser o candidato dos setores mais reacionários, golpistas, entreguistas e violentos da sociedade brasileira, tendo ao seu lado a direita liberal a dar-lhe o verniz dos “bons modos” burgueses.

Se a burguesia liberal não tiver força suficiente para afastar Bolsonaro - que continuará resistindo com militares, milícias e centrão - a polarização entre o ex-presidente e o atual será mantida. Nesse caso, uma parte dos liberais pode até buscar uma aliança com Lula para, em face da ameaça de perpetuação e recrudescimento de um governo fascista, tentar cooptá-lo e comprometê-lo com políticas moderadas e conservadoras. Mas o mais provável é que, em último caso, Bolsonaro seja considerado o mal menor para essa burguesia escravocrata.  Isso explica por que está sendo preparado um cardápio variado de opções de onde, na hora H, será escolhida a mais conveniente para as famílias Setúbal, Trabuco, Marinho, Lemann, Sterrebeeck etc.: sangramento de Bolsonaro, impeachment, cassação da chapa e até o resgate moral do fascista.
Para minar a força da candidatura de Lula, a direita liberal guarda na manga algumas opções golpistas. Seguindo a linha ditada pelo império estadunidense, as suas investidas não seriam materializadas em golpes clássicos, com o uso da força militar, como pretende Bolsonaro.  As estratégias seriam semelhantes ao golpe de Estado que destituiu Dilma Rousseff, em 2016, e ao lawfare, que culminou com a prisão de Lula e sua retirada das eleições em 2018.

Conseguindo ocupar o lugar de Bolsonaro ou se aliando a ele no processo eleitoral, a direita liberal promoverá o retorno de falsas denúncias contra Lula, acompanhadas de intensas campanhas midiáticas lideradas pelas Organizações Globo, com a finalidade de mais uma vez deformar a imagem do ex-presidente com contornos de um gangster que rouba descaradamente dinheiro público. Esse é um plano que já deve estar sendo urdido nos porões da classe dominante brasileira, com a orientação e insumos caluniosos fornecidos por seus mandantes nos Estados Unidos. 

A aposta da direita liberal será uma nova desmoralização do maior líder popular brasileiro, tentando fazê-lo chegar ao pleito com grande queda de popularidade ou até mesmo com sua reinclusão na Lei da Ficha Limpa, retirando-o novamente da disputa. Apesar de a população já estar em grande medida vacinada contra essas campanhas de difamação e, a despeito delas, ter percebido a grande diferença entre um governo comprometido com os interesses populares e um governo a serviço do grande capital, não se pode menosprezar o poder de fogo da burguesia liberal e de sua mídia. 

Outro golpe aos moldes da guerra híbrida lançada contra o Brasil desde o início da operação Lava Jato que a burguesia liberal ensaia tirar da cartola é o semipresidencialismo.  A adoção desse sistema de governo visa à retirada de poder de Lula, caso seja eleito. Inicialmente prevista para entrar em vigor em 2026, a proposta de virada de mesa pode passar a visar ao próximo mandato, que se iniciará em 2022, a depender do apetite e da falta de vergonha golpista das oligarquias brasileiras. 

Risco 3 – cooptação pela chantagem da governabilidade 

O terceiro risco surgirá caso as articulações de Lula evoluam e ele encarne o candidato antifascismo, antimorte, antidestruição e antiautoritarismo, representando uma ampla frente política capaz de gerar energia suficiente para impedir qualquer tentativa de golpe por parte de Bolsonaro e de sua turma de militares e milicianos ou por parte da burguesia liberal, com sua cruzada hipócrita contra a corrupção. A armadilha reside justamente no terreno da ampla composição para viabilizar a vitória e a posse de Lula como presidente. 

É certo que, mesmo com a fragilização crescente de Bolsonaro e com a manutenção da inviabilidade de um candidato da direita liberal, a vitória de Lula no próximo pleito e a posse dele no cargo de presidente dependem de alianças com o centro e a centro-direita. A legislação eleitoral, o poder econômico e a relação simbiótica da mídia hegemônica com o grande capital sempre favoreceram as oligarquias nas eleições, sobretudo quando a esquerda entra na disputa isoladamente. No entanto, se concretizada uma grande aliança que vá da centro-direita à esquerda a garantir a vitória de Lula, precisamos perguntar que programa de governo será possível realizar. 

Sabemos que, na política, nada é possível além da correlação de forças existente. Não adianta colocar o desejo acima da realidade. Isso costuma dar em nada. Vencer o fascismo de Bolsonaro e a direita liberal será, sem dúvida, um grande feito, considerando o quadro atual do País. Por outro lado, precisamos avaliar melhor as reais forças acumuladas em cada momento político decisivo para utilizá-las adequadamente. Um dos erros cometidos por Lula e o PT enquanto ocuparam o Poder Executivo, seja por avaliações equivocadas ou mesmo por limites políticos e ideológicos, foi subestimar o amplo apoio popular que detinham e a conjuntura favorável em âmbitos nacional e internacional, resultando em perdas de oportunidades históricas para promover transformações estruturais na sociedade brasileira. 

Qualquer força contra-hegemônica que assuma uma parte do poder de Estado precisa cuidar, e muito, da governabilidade para não ter vida curta. Contudo, se governos de coalizão hegemonizados pela esquerda não avaliam bem a força que têm, conferida pelo povo, e não criam as condições para continuar acumulando forças permanentemente e ampliando a democracia e o poder popular, inevitavelmente, acabam cavando a própria cova. São engolidos pelos aliados de ocasião. O golpe sofrido por Dilma e a prisão de Lula são os exemplos mais recentes e evidentes disso.

Uma conquista não pode ser desculpa para a estagnação da ação política. Todo avanço precisa ser imediatamente seguido por seu aprofundamento e por novas conquistas. É esse processo dinâmico que permite aos grupos contra-hegemônicos, em um Estado burguês, o acúmulo de forças necessário para a construção de um poder efetivamente democrático e popular. Sequer as pequenas melhorias obtidas são mantidas se não forem permanentemente ampliadas, aprofundadas e seguidas de novos avanços. 

Governabilidade para transformar

Um eventual próximo governo de Lula e do PT, mesmo que seja fruto de uma ampla aliança eleitoral, não pode cometer o erro de não aprender com a experiência histórica recente. Em que pese a importância das alianças com forças diferentes do espectro político, a maior garantia de governabilidade está na aliança permanente e crescente com o povo. E isso pressupõe não uma relação personalista entre líder e liderados, mas uma construção coletiva de poder.

Será crucial para o futuro da esquerda e da população pobre, explorada e discriminada que um eventual governo Lula encare, com toda a força e determinação, os desafios históricos que estarão colocados a partir de 2022. Isso significa que será necessário colocar em prática um programa de governo voltado para mudanças estruturais sustentáveis, tendo como horizonte a construção de uma democracia popular capaz de inaugurar novas relações econômicas na sociedade. 

Entre as medidas que devem ser consideradas por um eventual governo Lula, estão o enfrentamento decidido ao capital financeiro parasitário, com a realização de uma auditoria da dívida pública, acompanhada da renegociação da parcela que for legítima, com vistas à redução significativa da drenagem de recursos públicos para o setor especulativo e improdutivo da economia; a revogação imediata do teto de gastos; a reforma tributária que promova a tributação progressiva, a taxação das grandes fortunas e a adoção da tributação de lucros e dividendos; a adoção de uma política de juros que estimule o investimento na produção, em geral, e na indústria de alta tecnologia, em particular; uma reforma agrária ampla, que acabe com o latifúndio improdutivo e com as grandes propriedades de terra que não possuem função social, não contribuem com a segurança alimentar do povo brasileiro e promovem a destruição ambiental e o extermínio das populações indígenas; a reforma profunda na comunicação social, quebrando o monopólio midiático concentrado, hoje, nas mãos de sete ou oito famílias; o aumento significativo dos investimentos no SUS para ampliar o acesso da população à saúde pública de qualidade, por meio do cancelamento de benefícios e isenções fiscais que direcionam recursos públicos às operadoras privadas de saúde; a revogação de todas as medidas de destruição do Estado brasileiro, começando pela revogação das reformas trabalhista e previdenciária, pela retomada do pré-sal, pela reestatização das refinarias e distribuidoras de petróleo, da Eletrobrás e de todas as empresas e setores estratégicos fundamentais para a soberania nacional e para o desenvolvimento econômico e social do País; a mudança na doutrina das Forças Armadas, com a adoção de um amplo trabalho de formação que tenha como fundamento os Direitos Humanos e a construção de uma sociedade democrática; a adoção de uma política de segurança que induza a reforma estrutural nas polícias estaduais e promova o combate real e feroz às milícias e ao tráfico de drogas, sobretudo aos núcleos dirigentes e financeiros que não se encontram nas favelas, para pôr fim à matança da população negra das periferias urbanas etc.

Para que isso aconteça, Lula e o PT devem evitar a reedição da “carta aos banqueiros” de 2002 e lançar uma verdadeira carta ao povo brasileiro. Por certo, essas medidas devem ser adotadas de forma processual, progressiva, avaliando-se sempre as condições objetivas e subjetivas para a sua implantação.  É certo também que essas condições só serão alcançadas se houver forte determinação por parte de um eventual governo Lula/PT, mesmo que comprometido com uma ampla coalisão, para promover, em conjunto com os movimentos sociais e outros partidos de esquerda, a organização e mobilização permanente da população. 

Essa linha de ação pressupõe a abertura de canais efetivos de participação nas decisões governamentais e a criação de comitês de resistência por todo o País, fundamentais para a manutenção e o aprofundamento das conquistas e para o acúmulo constante de forças transformadoras. É preciso ter coragem para não deixar as oportunidades históricas escaparem novamente. 

Por sua vez, os movimentos sociais e populares devem fazer a sua parte, estabelecendo uma relação dialética, autônoma e independente com o governo, com muita organização e mobilização para pressionar por mudanças, tendo como referência um claro projeto de sociedade. Para tirar o Brasil da porta do inferno, as tarefas imediatas primordiais colocadas para os movimentos sociais e partidos de esquerda são retirar o fascista do poder o quanto antes e contribuir para a eleição de Lula. Para que o ex-presidente e o PT não sucumbam ao pragmatismo de uma governabilidade forjada sob a chantagem permanente do grande capital nacional e internacional, esses mesmos movimentos sociais precisarão tensionar o governo no sentido de comprometê-lo cada vez mais com as necessidades e interesses das classes populares. É imprescindível, além disso, formar novas lideranças capazes de superar as limitações políticas e ideológicas dos partidos hegemônicos na esquerda atual, construindo alternativas para o povo trabalhador, pobre e periférico.

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247,apoie por Pix,inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Cortes 247

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO