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Elisabeth Lopes

Advogada, especializada em Direito do Trabalho, pedagoga e Doutora em Educação

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Tributo à Memória - Ditadura Nunca Mais – Sem Anistia!

Os criminosos ainda estão aqui e até o presente não foram punidos por seus crimes continuados desde 64

Ex-deputado federal Rubens Paiva (Foto: Secretaria de Estado da Cultura/SP)

“A tática do desaparecimento político é a mais cruel de todas, pois a vítima permanece viva no dia a dia. Mata-se a vítima e condena-se toda a família a uma tortura psicológica eterna” (PAIVA, Marcelo Rubens. Ainda Estou Aqui. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015, p. 165).

Vencemos finalmente o prêmio mais cobiçado pelas grandes produções cinematográficas. O país tropical é notícia no plano da cultura, da dramaturgia nacional e internacional desde domingo passado. Primeiro Oscar de melhor filme internacional, entre outros que mereceram a estatueta. Com direção impecável de Walter Salles, a excelência das atrizes Fernanda Montenegro, Fernanda Torres e demais atores e atrizes que brilharam na tela do longa Ainda Estou Aqui que fez história no país e no mundo.  

A enorme repercussão do filme amealhou prêmios internacionais, como Globo de Ouro para Fernanda Torres na categoria de melhor atriz em filme de drama, melhor roteiro no Festival de Cinema de Veneza, Prêmio Goya de Melhor Filme Ibero-Americano e Festival de Cinema de Roterdã, Prêmio Gold Derby Film Awards em melhor filme, filme internacional, roteiro e atriz. 

Na medida em que as premiações surgiam, a bilheteria aumentava, tanto no Brasil como no exterior, confirmando a consagração da produção audiovisual brasileira.

O mundo está fascinado pela descoberta, ainda que tardia, que há no Brasil exímias produções da sétima arte desde sempre, como O pagador de Promessas – Anselmo Duarte (1962), Vidas Secas -adaptação de Nelson Pereira dos Santos da obra de Graciliano Ramos (1963), Deus e o Diabo na Terra do Sol – Glauber Rocha(1964), Macunaíma (1969) – adaptação de Joaquim Pedro de Andrade da obra de Mário de Andrade, Central do Brasil (1998) – produção de Walter Salles, indicada ao Oscar, Bacurau escrito e dirigido por Kleber Mendonça e Juliano Dornelles (2019), entre outras obras. Destas, o Pagador de Promessas foi o único filme brasileiro que ganhou a Palma de Outro no Festival de Cannes, além de ter sido indicado ao Oscar.

Por quase duas horas de projeção de Ainda Estou Aqui, o público brasileiro e estrangeiro compareceu às salas de cinema espalhadas pelos continentes e em pávido silêncio assistiu as cenas quase imóvel, com exceção dos movimentos de olhos e de olhares atentos e emocionados pela memória de um tempo sofrido que ainda teima em desejar estar aqui. Nas múltiplas exibições, as plateias comoveram-se diante dos movimentos catárticos das personagens, na medida em que a dramaturgia do real resgatou a memória da saga vivida por uma família que queria apenas continuar a ser feliz, mas que foi sentenciada pela crueldade de uma infame ditadura. 

O Brasil, apesar de seus 21 anos submetido às grades sombrias de um totalitarismo, passa a limpo, pelo menos no campo da cultura cinematográfica, os tempos cruéis de exceção em que homens e mulheres foram brutalmente assassinados mediante as torturas mais vis. No entanto, os criminosos ainda estão aqui e até o presente não foram punidos por seus crimes continuados desde 64. 

Recentemente passamos por uma tentativa de supressão de nossa debilitada democracia por militares formados pela ideologia dos heróis bandidos de 64, pelos militares alcaguetes que vestiam roupas civis, deixavam seus cabelos crescer, usavam jeans desbotados, tênis surrados, disfarces perfeitos para se aproximarem e espionar estudantes e professores nas universidades e escolas do país. 

Ao longo da tragédia golpista que acabou abruptamente o governo do Presidente Jango, universidades eram obrigadas a reservar vagas destinadas aos espiões do Serviço Nacional de Informação, os apelidados de “arapongas”, como uma analogia à ave de mesmo nome, frugívora de bico fino e cortante que se alimenta de pequenos frutos por onde anda.

Durante a ditadura, o ensino passou a ser um meio de difusão da ideologia do regime autoritário. Foram incluídas três disciplinas nos três níveis. No ensino fundamental - Educação Moral e Cívica (EMC), no segundo grau, atual ensino médio - Organização Social e Política Brasileira (OSPB), no ensino superior- Estudos de Problemas Brasileiros (EPB). 

Nas universidades, os professores de EPB eram selecionados por seu currículo isento de inclinações comunistas ou socialistas. Eram fiscalizados e monitorados pelos órgãos repressores. A cada final de aula, o professor solicitava aos alunos que fizessem um pequeno resumo. Estas anotações eram entregues ao professor como comprovação da presença e nota parcial. Por meio do que era registrado pelos discentes, o docente poderia ser demitido ou fichado como subversivo. 

Quantos homens e mulheres como o ex-deputado federal Rubens Paiva, torturado e assassinado no ano de 1971, foram massacrados e mortos pelas mentes insanas e petulantes, com egos absolutamente paranoides, como o do carrasco Cel. Brilhante Ustra. Quantos sobreviventes e familiares nunca puderam velar e enterrar seus parentes vítimas da ditadura. Há muitos corpos que jazem em fossos improvisados, ou assustadoramente lançados ao mar em pedaços. 

Somos um país rico, potencialmente pujante em inteligências, em saberes criativos, em ciências, em economia, em cultura, em iniciativas progressistas de bem estar social, mas também somos um dos países com maior desigualdade social, com limitações em educação, em saúde, em transporte, em trabalho. 

Temos um sistema de saúde universal, mas com dificuldades para alcançar o preconizado em suas origens no decorrer da Reforma Sanitária. 

O país vive numa corda bamba entre políticas progressistas e inclusivas e políticas excludentes e exploratórias de uma direita liberal gananciosa e de uma extrema direita que se arvora com avidez, reduzindo a esperança de quem pensa um país realmente justo.

Nos últimos anos, boa parte do povo tem eleito representantes fascistas, desprezivelmente oportunistas, que idolatram os opressores de dentro e de fora do país, estelionatários da verdade, que negam a ciência, a crise climática do planeta, que conspiram contra a soberania e as instituições de seu próprio país.  Almejam um Estado repressor e policialesco que elimina pretos e pobres a cada bala perdida ou a cada bala mirada nos corpos predestinados a morrer. Enriquecem com as emendas parlamentares direcionadas para seus próprios bolsos, a exemplo dos três deputados do partido do ex presidente Bolsonaro: Pastor Gil (PL-MA), Josimar de Maranhãozinho (PL-MA), e Bosco Costa (PL-SE), recentemente denunciados por organização criminosa e corrupção passiva.   

Essa realidade contraditória nos leva a refletir sobre os mecanismos que oprimem o nosso povo, que o impede de aprender a pensar e compreender as situações que o sufoca por meio de uma análise crítica de causas e consequências, para nunca mais ser enganado com populismos, com políticos corruptos opostos a sua vida, com pastores bandidos que usam a fé para angariar eleitores sofridos à base de promessas ilusórias de uma prosperidade que nunca virá.  

Nessa materialidade obscura, quando um filme é eleito pela mais importante academia de cinema do mundo, escolha movida pelo resgate sensível da história real de uma família brasileira atingida pela ditadura, com cenas emocionantes pela autenticidade do vivido, brota alguma esperança no coração dos brasileiros não somente pelo prêmio em si, mas pelo significado do reconhecimento mundial de um episódio horrendo que marcou a sociedade brasileira e ousa reincidir, sobretudo na atual configuração mundial ameaçadora das democracias, na era perversa de Trump, na era de avanços dos movimentos radicais da extrema direita fascista no mundo.

Em tempo, registro o imprescindível reconhecimento à primeira mulher presidente do Brasil, Dilma Rousseff, que teve a coragem de criar a Comissão Nacional da Verdade, que objetivou apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Esta medida possibilitou que a história de Eunice Paiva fosse contada.

Por fim, compartilho o trecho final de um discurso memorável do Deputado Rubens Paiva, transmitido pela Rádio Nacional em defesa da legalidade do Presidente João Goulart, no dia 1º de abril de 1964, em pleno curso do Golpe Militar: “[...] Está lançada inteiramente para todo o país o desafio: de um lado, a maioria do povo brasileiro desejando as reformas e desejando que a riqueza se distribua, os outros são os golpistas que devem ser repelidos e desta vez, definitivamente para que o nosso país veja realmente o momento da sua libertação raiar” (Disponível na íntegra pela Empresa Brasil de Comunicação - EBC). 

O desafio lançado por Rubens Paiva há 60 anos é atualíssimo, pois os golpistas ainda estão aqui!!! Contudo, apesar das tempestades, o sol volta a brilhar nos corações e mentes que não se rendem, que clamam e lutam pela paz, pela democracia, pela ditadura nunca mais e pelo não à anistia de quem ousa solapar a vontade do povo.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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