Trump: A nova Guerra Fria
Há 3 meses, em cerimônia de posse, Trump anunciava que a sua vitória iria lhe permitir retomar o papel da primazia americana no mundo
Há 3 meses, em cerimônia de posse na presidência dos Estados Unidos da América, Donald Trump anunciava, de forma agressiva e arrogante, que a sua vitória acachapante iria lhe permitir retomar o papel da primazia americana no mundo, resolveria as guerras em dias, baixaria a inflação e as empresas de bens duráveis e de consumo populares iriam, em pouco tempo, produzir nos EUA. Na sua visão, os EUA voltariam a ter o papel de palmatória do mundo. Veja a forma como ele tratou Zelenski, presidente da Ucrânia, como ele ameaçava aqueles que ousassem a enfrentar a “fabulosa” economia norte-americana. Deixou claro, tudo iria mudar, algumas coisas estavam claras, outras nas entrelinhas: O mote: “America First”, tema usado em vários momentos da história estadunidense, na maioria deles expressando políticas populistas e outras vezes reacionárias, como a que se posicionava contra a entrada dos EUA na segunda guerra mundial. Diga-se de passagem que os EUA saíram da guerra como a nação mais rica do planeta e como país central do capitalismo mundial, ante uma Europa arrasada. Algumas horas depois da sua posse, como um furacão, anunciou o seu desejo de anexar o Canadá como o 51º estado americano, de comprar a Groenlândia, realizando o velho sonho do imperialismo americano, cultivado desde o século XIX, logo depois da compra do Alasca, que apesar de dar acesso ao Ártico, não é suficiente para quem quer tudo. De quebra, anunciou ainda, sua visão de que os demais países do mundo estão há muito tempo explorando os EUA com taxas altas de importação, então, ele iria, com o poder que a presidência lhe confere, aumentar estratosfericamente as taxas para todos os países que exportam para os EUA, distribuiu ameaças a quem ousasse enfraquecer o papel do dólar e sobre a nova política de defesa, anunciou quase um tipo de “lei de murici”, expressão popular muito conhecida entre nós: como que cada um cuide de si, uma mensagem direta para os países da OTAN, Japão e Coreia que, desde o final da segunda guerra, habitaram sob o “guarda-chuva” dos EUA.
Em apenas três meses, sem nenhuma grande guerra, sem nenhum acidente gigantesco, geográfico ou climático, Trump conseguiu fazer um trabalho extraordinário, mudou definitivamente a geopolítica mundial. Com suas medidas, reconfigurou a diplomacia americana, transformou para pior em relação ao ocidente o equilíbrio do poder mundial e criou as condições para a China se apresentar ao mundo como um esteio da segurança para garantir, pela voz do seu presidente, Xi Jinping, a defesa do livre comércio, o combate às guerras tarifárias, que prejudicam os interesses de todos os países, e as políticas isolacionistas, que minam o sistema mundial de comércio e impactam negativamente a ordem econômica.
A revista The Economist diz que Trump lidera a nova ordem global focada em Geopolítica Mafiosa, alguns dizem que ele não tem política de governo, somente financeira para bilionários, outros dizem que, na realidade, ele é um nacionalista que tem um método de negociar próprio, mas que no final ajustará tudo e assim por diante. Veremos. O fato é que, em pouco tempo, ficou claro que os EUA não são tão fortes como pareciam, que Trump tem mais problemas para viabilizar o seu “America first” e que ele avaliou mal tanto a sua força interna quanto as mudanças que houve no mundo nestes últimos 35 anos, depois da queda da União Soviética.
Os gigantes do oriente, em particular a China, são forças reais que se projetam para o mundo e não obedecerão aos EUA; a Europa, mesmo em crise, tem história e se a Inglaterra acompanhar cegamente os EUA poderá ir sozinha; internamente, os mecanismos de peso e contra-peso da democracia americana somados aos interesses econômicos de segmentos empresariais, ainda que trumpistas, umbilicalmente ligados à globalização e alguns dependentes de importação da China, poderão ajudar desdentar o Leão americano. O seu governo já começa a dar sinais de fraqueza. Elon Musk, que parecia todo poderoso, já está abrindo o bico e pode pular fora do barco, é muito cedo para uma baixa num governo forte. Trump errou na avaliação da correlação de forças internas e externas, tendo de recuar diversas vezes; o principal recuo foi o enfrentamento com o Banco Central americano quando avisou que iria demitir o seu presidente, depois afinou.
O “Livro Bege”, que é um relatório econômico do Federal Reserve, publicado em 8 edições por ano, na última, destaca um quadro de crise econômica, com os seguintes itens:
1- as empresas estão correndo para realizar compras antecipando estoques.
2- os preços estão aumentando em todos os Distritos, são 12 Distritos que abrangem todo o território nacional.
3- as expectativas pioraram na maioria dos Distritos com o aumento da incerteza econômica em relação às tarifas.
4- incerteza generalizada em torno da política comercial internacional.
Lembre-se que um dos temas importantes para a vitória de Trump foi o combate à inflação e aos juros altos. O Livro Bege, publicado no dia 23/04, é uma bomba, diz que a inflação vai aumentar, que, na melhor das hipóteses, os juros ficam onde estão com viez de alta e crítica à política de tarifas do governo.
Apesar de Tump ter um estilo próprio de negociar, fazer uma bravata para colher uma posição de vantagem e, às vezes, passar dos limites na arrogância, ele expressa um pensamento de parte significativa do establishment dos EUA, independentemente de ser democrata ou republicano. O conceito/objetivo de ampliar o império americano, derrotar ou subjugar os inimigos externos, a China em primeiro lugar, a Rússia “putinista”, as ditaduras a eles hostis, apoiar Israel e firmar os EUA como o epicentro e o esteio do mundo é a base do pensamento americano. A partir daí cada governante exercerá o seu poder. É claro que existem grandes diferenças entre Republicanos e Democratas, e mesmo no interior de cada um destes partidos, elas situam-se na forma de materializar as políticas econômica, cultural, internacional e militar. O problema é que Trump e seu governo radicalizaram demais. Muitos avaliam que isso pode comprometer a posição futura dos EUA ou os próximos anos de Trump . Essas diferenças são evidentes na guerra tarifária generalizada, na guerra da Ucrânia/Otan e Rússia, nas relações com as Organizações Internacionais construídas no pós-guerra, como a ONU, na política ambiental e etc; o tratamento com emigrantes, o apoio irrestrito a Israel, o bloco anti China, as diferenças são de pequenos detalhes.
A situação internacional está muito complexa, a situação dos EUA, apesar das derrapadas de Trump, ainda é muito estável. Se compararmos o PIB, o dos EUA supera a somatória dos PIBs da China, Japão, Alemanha e Índia; com relação ao poderio militar, acredito que o dos EUA ainda supere a somatória de todos estes países e mais Rússia e França; no que diz respeito às novas tecnologias, os EUA, além de se destacarem pela capacidade própria, têm forte poder de intervenção sobre quase todas as Nações do mundo, com exceção da Rússia, China, Irã e, talvez, França e Índia.
Foi olhando somente para este lado que Trump se atrapalhou, parodiando um jogo de cartas popular em São Paulo, o truco, Trump trucou sem ter o zap, que está na mão da China.
A China deu uma pequena amostra do seu poderio, que passou despercebido, quando efetivou, em 2022, a compra, por vários bilhões de dólares, de inúmeras máquinas holandesas de alta tecnologia de litografia e de chips avançados para modernizar a sua indústria. O governo democrata americano pressionou a Holanda para revogar as licenças de exportação dessa tecnologia para a China, a Holanda aquiesceu, as máquinas e tecnologia compradas por bilhões viraram sucata. A China, sem chiar ou fazer cara feia, rompeu o contrato com a ASML, a holandesa que é a maior empresa fornecedora de sistemas de litografia para indústria de semicondutores e com a TSMC, taiwanesa, empresa do mesmo ramo e resolveu criar o seu próprio sistema; investiu mais de 75 bilhões de dólares para a construção do setor de semicondutores, convocou mais de 50 mil engenheiros que estavam na China e espalhados pelo mundo e, em apenas 2 anos, estruturou o seu sistema próprio. Nenhum país do ocidente avaliava que a China fosse capaz de tamanho feito. Depois avançou para um sistema de litografia DUV (deep ultraviolet, tecnica de litografia que utiliza a luz ultravioleta de onda com maior capacidade), para a produção de chips de 8 nanômetros e tudo indica que aponta para uma nova era.
Voltando às tarifas, Trump já demonstrou muitas fragilidades, com suas idas e vindas e os anúncios desmentidos de negociação com a China. A China também demonstrou alguma fragilidade ao recuar das tarifas anunciadas aos EUA, mas mostrou, por outro lado, que continua com o zap. Integrou oficialmente o yuan digital aos sistemas de pagamentos de 10 países do sudeste asiático e 6 do oriente médio, isso representa 38% do comércio mundial e enfraquece significativamente o sistema SWIFT; os BRICS podem caminhar para adotar o yuan digital como referência para trocas entre os países e também para as suas reservas cambiais. Esta situação cria tensões com Trump, que já está falando em autorizar Israel a bombardear o Irã. Muitas pessoas consideram que, diante de um debacle eminente ou perda de hegemonia no mundo, um governo como o de Trump pode provocar uma guerra mundial, eu, pessoalmente, acho muito remota esta hipótese, os republicanos e os democratas não querem esta saída, guerra agora é por procuração e a China não entra fazendo guerra, vai, como se diz na linguagem popular, comendo pelas beiradas. Hoje, dos 54 países africanos, 46 têm a China como sua principal parceira comercial; dos 193 países que compõem a ONU, 150 tem sua corrente de comércio favorável com a China, mesmo a Argentina, com todo o discurso de Miley, ainda não deu nenhum passo para se afastar da China, e vai sofrer nesta conjuntura.
O nosso Brasil, a meu ver, está numa posição confortável, não tem alinhamento automático com nenhum país, tem boas relações com os EUA, com a China e com a Europa. Deveremos continuar assim, manter o que já estamos fazendo há um certo tempo; fortalecer o Mercosul, fazer todos os acordos necessários com a China, sem entrar para a “rota da seda”; ter parcimônia na discussão com os EUA, sem ceder às suas pressões contra os BRICS, e evitar confrontos desnecessários; tentar ampliar significativamente os negócios com a Europa. O Brasil tem condições de suprir necessidades mundiais de soja, pois é responsável por quase 40% da produção mundial, é o segundo maior produtor de carne bovina e goza de uma boa posição para garantir a segurança alimentar, por ter a maior fronteira agrícola do mundo, tem a terceira maior reserva de terras raras do mundo e tem grandes reservas de petróleo e de outros minerais. Deveremos, neste período de turbulência internacional, fazer como o velho marinheiro da Música de Paulinho da Viola.
“Sem preconceito
Ou mania de passado
Sem querer ficar do lado
De quem não quer navegar
Faça como um velho marinheiro
Que durante o nevoeiro
Leva o barco devagar”.
Sem preconceito, mas vamos levar o barco.
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