Trump sufoca Harvard: retrocesso do conhecimento científico e humano, fuga de cérebros eleva Brasil e parceiros
Políticas da Casa Branca contra Harvard causam fuga de cérebros, beneficiando Brasil e países com visão científica estratégica
Quando um farol se apaga, o mundo não mergulha de imediato na escuridão. Mas os navegantes, privados de sua luz, começam a errar na rota, a colidir com rochedos ocultos, a duvidar do caminho. Harvard, por mais de um século, foi esse farol da ciência global. A decisão de Donald Trump de apagar essa luz não é apenas uma ruptura com a tradição acadêmica americana — é um convite ao caos na travessia do conhecimento. E, nesse cenário de sombras, outros países começam a acender suas próprias lanternas. Entre eles, inesperadamente, o Brasil.
Harvard no centro da tempestade - A Universidade de Harvard, um dos pilares da educação superior global, tornou-se alvo de um ataque político coordenado por Donald Trump. Em declarações recentes, o ex-presidente acusou a instituição de abrigar “ideologias antissemitas”, de manter “mais de 30% de estudantes estrangeiros” e de promover valores que seriam “contrários aos interesses americanos”. Como desdobramento, ameaçou cortar US$ 3 bilhões em subsídios federais, solicitou a entrega da lista de estudantes internacionais para “verificação de posicionamento político” e incentivou a revogação da certificação da universidade para receber estrangeiros. Harvard reagiu prontamente, acionando a Justiça e obtendo uma liminar, mas o episódio marca uma escalada preocupante no uso político de instituições acadêmicas.
Desde abril de 2025, a Casa Branca revisou US$ 9 bilhões em verbas federais destinadas à Universidade de Harvard, impondo condições rigorosas: o fim dos programas de diversidade, equidade e inclusão (DEI) e a adoção de critérios que levem em conta apenas o mérito em novas admissões. Diante da resistência da universidade, o governo congelou US$ 2,2 bilhões em fundos de pesquisa — especialmente os vinculados ao Departamento de Saúde e Serviços Humanos — atingindo diretamente estudos avançados em biomedicina e tecnologia de ponta.
Em maio, mais US$ 450 milhões em bolsas e contratos foram suspensos. As justificativas? Harvard seria, segundo aliados de Trump, um “reduto de liberalismo e antissemitismo”. Em um movimento ainda mais radical, o Departamento de Segurança Interna (DHS), sob o comando de Kristi Noem, revogou a certificação da universidade no Programa de Estudantes e Visitantes de Intercâmbio (SEVP). Com isso, novos alunos estrangeiros não podem mais se matricular, e 6.800 estudantes internacionais — 27% do corpo discente — foram obrigados a deixar os EUA ou buscar transferência.
Desinformação e distorções numéricas - Entre os argumentos de Trump está a suposta elitização e internacionalização excessiva da universidade, como se isso por si fosse uma falha. No entanto, a presença de estudantes internacionais — atualmente cerca de 31% do corpo discente — sempre foi um motor de inovação em Harvard, não um problema. Da mesma forma, circulam dados inflados sobre o número de prêmios Nobel ligados à instituição: embora frequentemente se repita que 161 laureados tenham alguma afiliação com Harvard, trata-se de um número que inclui ex-professores, pesquisadores visitantes e colaboradores temporários. Quando restrito aos que efetivamente cursaram Harvard, o número é significativamente menor, ainda que expressivo, com nomes como T. S. Eliot, Barack Obama, Henry Kissinger, Amartya Sen e Roger Kornberg entre os premiados.
Proporção global sob perspectiva crítica - Desde a criação do Prêmio Nobel, em 1901, foram entregues 626 prêmios a 978 pessoas e organizações no total. Mesmo considerando a estimativa generosa de 161 pessoas com algum tipo de vínculo com Harvard, isso representa cerca de 16,5% dos laureados no mundo. Um número impressionante, sem dúvida, mas que exige leitura cautelosa: a concentração de talentos e reconhecimento em uma só instituição reflete também uma desigualdade histórica na distribuição de recursos, oportunidades e visibilidade acadêmica no cenário global. O problema não está no mérito dos premiados, mas na lógica de centralização que muitas vezes marginaliza o conhecimento gerado fora do eixo EUA-Europa.
Uma ordem judicial temporária bloqueou a medida, mas a disputa legal continua. Paralelamente, o governo eliminou US$ 60 milhões em subsídios do DHS e ameaçou retirar a isenção fiscal da universidade. A pressão é clara: dobrar Harvard aos desígnios ideológicos da Casa Branca.
Fuga de cérebros e ameaças à liderança científica dos EUA - As consequências são imediatas: cientistas e pesquisadores, inseguros, começam a buscar alternativas em países como Canadá, Alemanha, França e Austrália. Governos e instituições acadêmicas desses países oferecem condições e programas especialmente elaborados para receber esse contingente qualificado.
Em 2024, os Estados Unidos investiram cerca de US$ 1 trilhão em pesquisa e desenvolvimento — 40% desse montante oriundo do setor público. O ataque atual ao coração do sistema universitário ameaça essa posição hegemônica, pondo em risco os avanços em inteligência artificial, biomedicina, física aplicada e tecnologias verdes.
O paralelo histórico mais evidente remonta à década de 1930. Perseguidos pelo nazismo, gênios como Albert Einstein, Leo Szilard e Wernher von Braun migraram para os Estados Unidos, impulsionando o Projeto Manhattan e consolidando a supremacia científica americana. A história pode agora se inverter. Ao invés de atrair talentos, os EUA podem se transformar em um território hostil à ciência, como já ocorreu na União Soviética sob Stalin ou, mais recentemente, na Rússia de Vladimir Putin, onde a perseguição ideológica afastou intelectuais de todas as áreas.
Vozes influentes da ciência internacional denunciam a política atual. Carl Bergstrom, da Universidade de Washington, declarou: “Estamos vendo uma liquidação do talento acadêmico americano”. A imunologista Yasmine Belkaid, ex-diretora de pesquisa do NIH, alertou: “Perder uma geração de cientistas é irreparável”. Leo Rafael Reif Groisman, ex-presidente do MIT, acrescentou: “Trump subestima o valor da liderança científica dos EUA, um erro estratégico grave”. Kevin Trenberth, ex-cientista do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica, lamentou: “Já sentimos um vácuo no fluxo de novos cientistas”.
A revista Nature apontou que 75% dos cientistas entrevistados consideram deixar os Estados Unidos. A China, com investimentos crescentes em ciência, tecnologia e inovação, já atua para absorver esse capital humano. A fragilidade da pesquisa americana, neste contexto, representa uma ameaça existencial ao seu papel global.
Uma universidade de presidentes e pioneiros - Ao longo dos séculos, Harvard formou oito presidentes dos Estados Unidos, entre eles John Adams, Franklin D. Roosevelt, John F. Kennedy e Barack Obama. Também foi o berço acadêmico de mentes decisivas nas ciências humanas, exatas e médicas — como Robert Oppenheimer, Leda Cosmides, Henry Louis Gates Jr. e Michael Sandel. Essa herança, em vez de ser exaltada, está sendo usada como arma política. A ofensiva atual tenta reverter décadas de valorização da liberdade acadêmica, do mérito intelectual e da pluralidade de pensamento. Transformar universidades em campos de batalha ideológicos é um risco não apenas para Harvard, mas para a própria democracia.
O real embate: ciência ou ideologia - O que está em disputa vai além da imagem de uma universidade. Trata-se da autonomia do pensamento científico, da proteção a estudantes estrangeiros e da integridade das instituições diante do populismo autoritário. Trump, ao mirar Harvard, sinaliza um projeto mais amplo de vigilância ideológica e submissão das universidades a agendas partidárias. Ao invés de fortalecer a educação, essas medidas a enfraquecem. O conhecimento científico e humanista, por natureza, precisa de oxigênio, liberdade e diversidade para florescer. E se a universidade mais prestigiada do mundo está sendo cercada, o alerta vale para todas as demais.
O Brasil aproveita o vácuo: ciência como projeto nacional - Diante da tempestade que assola Harvard, o Brasil enxerga uma rara janela de oportunidade. Em 24 de maio de 2025, o governo Lula lançou um programa estratégico, liderado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), comandado por Luciana Santos.
A proposta: atrair 500 cientistas estrangeiros, especialmente nas áreas de imunologia, biotecnologia e saúde pública. A iniciativa é respaldada por instituições como Fiocruz e Instituto Butantan e responde diretamente à crise nos Estados Unidos, agravada pela nomeação de Robert F. Kennedy Jr. — crítico das vacinas — para a Secretaria de Saúde americana.
O programa Conhecimento Brasil, do CNPq, prevê R$ 1 bilhão em cinco anos para repatriar 1.000 pesquisadores, incluindo brasileiros atualmente radicados nos EUA, Reino Unido e Argentina. Além disso, busca criar laboratórios de excelência em solo nacional. Ricardo Galvão, presidente do CNPq, comparou o plano às políticas adotadas pela Alemanha e Coreia do Sul durante grandes transições geopolíticas.
Em 2024, o Brasil investiu R$ 14,9 bilhões em ciência — seis vezes mais que na gestão anterior. A Capes recebeu aumento de 20% e o CNPq, 15%. Parcerias com empresas privadas, como a farmacêutica dinamarquesa Novo Nordisk, visitada por Lula em 2025, também fortalecem a infraestrutura científica nacional.
Segundo o infectologista Julio Croda, o foco em vacinas de RNA — ainda inexistentes no Brasil — pode colocar o país em novo patamar. A expertise vinda de Harvard e outras universidades dos EUA pode acelerar esse processo.
Desafios persistem, mas a oportunidade é histórica - Apesar do otimismo, o cenário brasileiro não é isento de críticas. Marcus Oliveira, da UFRJ, adverte para a fragilidade do financiamento à ciência de base e a dependência de vontades políticas. O biomédico Atila Iamarino aponta a ausência de um plano estratégico de longo prazo.
O episódio do desperdício de 8 milhões de doses da Coronavac, em 2023, a um custo de R$ 260 milhões, e os atrasos nas entregas de vacinas da Covid-19 abalaram a confiança do setor. A crise da varíola dos macacos também expôs a inexistência de estoques reguladores e logística eficiente.
No entanto, a conjuntura internacional reposiciona o Brasil. Como declarou Lula em discurso no Japão, em 2025, o país aspira ser uma “voz autônoma” no cenário global. A ciência é um dos caminhos mais sólidos para concretizar esse protagonismo. O momento exige planejamento, execução competente e proteção à autonomia das instituições.
Quando o farol de Harvard treme, outros se apressam a acender suas luzes. O Brasil tem, diante de si, a chance de não apenas iluminar seu próprio caminho, mas de tornar-se novo ponto de referência para o mundo. O conhecimento não tolera vácuos: ele migra, se instala onde é acolhido e floresce onde há liberdade, investimento e visão.
Nesta travessia incerta da ciência global, o Brasil pode deixar de ser passageiro para assumir o leme. Resta saber se terá coragem de navegar com ousadia, e não apenas com esperança. A hora é de escolher entre esses versos do nosso hino: “deitada eternamente em berço esplêndido” ou “verás que um filho teu não foge à luta”. Não apenas nas lutas pelo progresso científico, mas também em todas as outras lutas, igualmente importantes e igualmente inadiáveis.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

