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Gustavo Conde

Gustavo Conde é linguista.

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Tumulto, desorganização e caos

"E bate aquela impressão terrível de que toda essa reação a mais uma quebra de decoro de Bolsonaro é só um jogo de cena para manter a plateia canibalizando a própria indignação, naquele eterno e fraudulento 'agora vai', diz Gustavo Conde, a respeito da nova quebra de decoro de Jair Bolsonaro

Discurso de ódio (Foto: Reprodução)
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E bate aquela impressão terrível de que toda essa reação a mais uma quebra de decoro de Bolsonaro é só um jogo de cena para manter a plateia canibalizando a própria indignação, naquele eterno e fraudulento "agora vai".

A internet, realmente, criou uma zona de conforto bestial, que nos convida ao texto de repúdio, à lacração, ao salvo-conduto que é defender a democracia protegidos da violência da polícia, mas que, por outro lado, nos aprisiona na mesmice sedutora do discurso.

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O fato de eu estar aqui escrevendo esse texto e não na rua com um megafone já diz tudo também sobre como me sinto e como irão me ver: um covarde que atrapalha a reação heroica de setores importantes da sociedade brasileira contra os desmandos de Bolsonaro.

Eu poderia ir para Brasília com minha barraca e acampar em frente ao STF com um cartaz de basta, mas esse gesto também só seria alçado ao real se alguma mídia alternativa fosse lá e fizesse uma matéria comigo de cara feia, no turbilhão do heroísmo abnegado que vira meme e vive de reiniciar o 'sistema'.

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A linguagem é importante, mas ela também cansa. Eu continuo achando uma abominação estúpida o gesto de tomar uma retroescavadeira e estourar amotinados assassinos, mas, sinceramente, eu entendo quem gosta.

Por duas razões: primeiro, porque quem gosta fica alardeando seu gosto pelas redes sociais ao invés de pegar a sua retroescavadeira e também partir para cima da bandidagem. Ou seja: é um gostar tão digital e inútil quanto o não gostar.

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Segundo porque a proliferação de notas de repúdio em defesa da democracia produz a sensação infame de que estamos todos adorando a estética da vitimização associada à inércia: são todas notas lindas, edificantes, históricas que, no entanto, vão se acumulando como registros burocráticos da nossa catástrofe institucional.

A língua e o sentido também precisam das instituições para produzirem o seu efeito prático. No atual estado de coisas, a linguagem também perde seu poder de significação e produzir notas exige um esforço a mais do que simplesmente repudiar o horror com a gramática bem comportada dos textos institucionalizados.

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É preciso mudar o tom, o ethos - e nenhuma dessas notas chegou perto de realizar essa mudança. Ou: é preciso gritar, não argumentar.

Daí, a deferência compreensiva dirigida aos "retroescavadeiristas": quem aguenta tanta falação inútil?

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Na minha covardia de escrever mais um texto e não pegar em uma metralhadora para resolver tudo isso de uma vez, sou obrigado a dizer: está todo mundo gostando.

Senão na cara lavada e digitalizada do ser, na cara suja que habita as profundezas de nosso inconsciente político.É bom ter um Bolsonaro produzindo o autoaniquilamento do humano para que eu possa dignificar minha identificação comigo mesmo: "estou do lado certo da história e não me curvei ao discurso de ódio".

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Bolsonaro é como o pai genocida da psicanálise: como elemento que me esmaga e me bloqueia, ele permite a minha entrada no universo simbólico, única forma de existência para quem perdeu a luta no campo selvagem dos instintos assassinos.

Bolsonaro é a minha garantia de que eu não sou um animal (como ele).

Chama-se isso também de síndrome autoconfirmatória: há uma imensa demanda por ouvir e ler aquilo em que já acreditamos de antemão - tanto na direta quanto na esquerda.

É por isso que este texto que aqui se desenrola deve estar provocando sensações desagradáveis nos leitores. Peço, covardemente, desculpas por isso.

A nossa condição político-simbólica é das mais complexas e limítrofes. Não venceremos a antissubjetividade bolsonara com palavras institucionalizadas, nem com retroescavadeiras animalizadas.

A condição de se dizer 'basta' também nos é tóxica - além de ser um gesto pequeno-burguês que habita o lodaçal da infâmia paralisante.

Quem leva a sério quem diz 'basta'?

Eu, tampouco, irei oferecer qualquer espécie de solução. Esse gesto de 'oferecer soluções' também já cavou os estertores da repetição estéril. Eu quero o tumulto, a desorganização, o caos.

O país está 'organizado' demais, 'bem comportado' demais.

Querer combater o bolsonarismo assim é como querer jogar xadrez com uma zebra: ela dará um coice no tabuleiro.

Este episódio de quebra de decoro, portanto, é só mais um capítulo da nossa caminhada agônica para o precipício.

A gente fala de Lula - o mais impressionante enunciador político da história - e quer multiplicar sua capacidade de gerar o sentido em uma sociedade selvagem como a brasileira, mas os patrulheiros da bestialização evocam 'culto à personalidade' e exterminam a possibilidade de virar o jogo com amor e esperança, essas duas palavras que causam calafrios nos progressistas céticos de bem.

A gente pede mais debate e os trogloditas semi democráticos emergem triunfantes em manada, rasgando contra a 'esquerda cirandeira', "que só gosta de problematizar as coisas".

'A gente' quem, cara pálida? A gente que não tem vergonha em falar de amor, de esperança e de democracia, A gente que não gosta de hegemonias de discurso digital. A gente que não tem medo de errar. A gente que não escreve ou fala para agradar plateias e sim para tirá-las do discurso modorrento da repetição infinita.

A gente que não quer autoconfirmação de nada, mas, justamente, a não confirmação de tudo, o novo, a zona desconhecida, aquilo que torna a minha condição de humano aprisionado no universo simbólico menos chata e previsível.

Vamos todos juntos para mais uma rodada de blefes, lacrações, defesas da democracia, ataques à democracia, besteiróis variados e textos glorificando a morte da esquerda.

A gente se mata mais um pouco e se diverte.

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