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Chris Hedges

Jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

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Ucrânia: a guerra que deu errado

O apoio da OTAN à guerra na Ucrânia não está indo de acordo com o plano. Os novos equipamentos militares sofisticados não ajudarão

Everything Must Go (Foto: Mr. Fish)
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Artigo de Chris Hedges originalmente publicado no Substack em 29.01.23. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247

Impérios em declínio terminal saltam de um fiasco militar para o próximo. A guerra na Ucrânia, outra tentativa frustrada de reafirmar a hegemonia global dos EUA, se encaixa neste padrão. O perigo é que, quanto mais terríveis as coisas parecem ser, mais os EUA escalarão o conflito, potencialmente provocando uma confrontação aberta com a Rússia. Caso a Rússia faça ataques retaliatórios às bases de suprimento e treinamento dos países vizinhos da OTAN, ou se ela usar armas táticas nucleares, a OTAN quase certamente responderá atacando as forças russas. Nós teremos deflagrado a Terceira Guerra Mundial, a qual poderá resultar num holocausto nuclear.

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O apoio militar dos EUA à Ucrânia começou com coisas básicas – munições e armas de assalto. O governo Biden, no entanto, logo cruzou diversas linhas vermelhas autoimpostas para prover uma maré de maquinarias letais de guerra. Sistemas antiaéreos Stinger; sistemas anti-blindagens Javelin; morteiros móveis M777; foguetes GRAD de 122mm; lançadores de foguetes múltiplos M142, ou HIMARS; mísseis lançados em tubos, oticamente rastreados e teleguiados (TOW); baterias de defesa antiaérea Patriot; sistemas de mísseis avançados National terra-ar (NASAMS); veículos blindados para transporte de tropas M113; e agora, 31 tanques M1 Abrams – como parte de um novo pacote de US$ 400 milhões. Estes tanques serão suplementados com 14 tanques Leopard 2ª6 alemães, 14 tanques Challenger 2 britânicos, bem como tanques de outros membros da OTAN, incluindo a Polônia. Os itens seguintes na lista são munições de urânio empobrecido (DU) que perfuram blindados e jatos caças-bombardeiros F-15 e F-16.

Desde a invasão russa em 24 de fevereiro de 2022, o Congresso dos EUA aprovou mais de US$ 113 bilhões de ajuda à Ucrânia e países aliados que apoiam a guerra na Ucrânia. Três-quintos desta ajuda, US$ 67 bilhões, foram alocados para gastos militares. Há 28 países que estão transferindo armamentos para a Ucrânia. Todos eles, com exceção da Austrália, do Canadá e dos EUA, situam-se na Europa.

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A rápida atualização de equipamentos militares sofisticados e da ajuda provida à Ucrânia não é um bom sinal para a aliança da OTAN. Leva muitos meses, senão anos, de treinamento para operar e coordenar estes sistemas de armamentos. Batalhas de tanques — eu estive como repórter na última grande batalha de tanques nas aforas de Kuwait City, durante a primeira guerra do Golfo — são operações complexas e altamente coreografadas. Os blindados devem trabalhar em combinação próxima com o poder aéreo, os navios de guerra, a infantaria e as baterias de artilharia. Levará muitos, muitos meses, senão anos, até que as forças armadas ucranianas recebam o treinamento adequado para operar estes equipamentos e coordenar os diversos componentes de um campo de batalha moderno. Efetivamente, os EUA jamais conseguiram ter sucesso em treinar os exércitos iraquianos e afegãos para fazerem manobras combinadas de guerra, apesar das duas décadas de ocupação.

Em fevereiro de 1991, eu estive com as unidades dos Marine Corps (fuzileiros navais) que expulsaram as forças iraquianas da cidade saudita de Khafji. Supridos com equipamentos militares superiores, os soldados sauditas que ocupavam Khafji ofereceram uma resistência ineficaz. Quando entramos na cidade, vimos tropas sauditas em caminhões de incêndio conscritos fugindo em alta velocidade para escaparem dos combates. Todo o equipamento militar sofisticado, que os sauditas haviam comprado dos EUA, provaram-se inúteis, porque eles não sabiam como usá-los.

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Os comandantes militares da OTAN compreendem que a infusão destes sistemas de armamentos na guerra não alterará aquilo que é, na melhor das hipóteses, um impasse — definido na sua maior parte por duelos e artilharia sobre centenas de quilômetros de linhas de frente. A compra destes sistemas de armas — um tanque Abrams M1 custa US$ 10 milhões quando se inclui o treinamento e a manutenção — aumenta os lucros dos fabricantes de armamentos. O uso destas armas na Ucrânia permite que estas sejam testadas em condições de batalha, fazendo da guerra um laboratório para os fabricantes de armamentos — como a Lockheed Martin. Tudo isso é útil para a OTAN e para a indústria de armas. Mas não é muito útil para a Ucrânia.

O outro problema com os sistemas avançados de armas, como o tanque M! Abrams — que tem motores de turbina de 1.500 cavalos de força alimentados com combustível de jatos — é que eles são temperamentais e requerem manutenção hábil e manutenção quase constante. Eles não perdoam erros daqueles que os operam; efetivamente, erros podem ser letais. O cenário mais otimista para a alocação de tanques M1-Abrams na Ucrânia é de seis a oito meses, ou muito provavelmente mais tempo. Caso a Rússia lance uma ofensiva maior na primavera, como se prevê, os tanques M1-Abrams não farão parte do arsenal ucraniano. Mesmo quando chegarem, eles não alterarão significativamente o equilíbrio de poder — especialmente se os russos conseguirem tornar os tanques, manuseados por tripulações inexperientes, em carcaças carbonizadas.

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Então, para que serve esta infusão de armamentos de alta tecnologia? Podemos resumi-lo em uma palavra: pânico.

Tendo declarado uma guerra de facto contra a Rússia e conclamando abertamente pela remoção de Vladimir Putin, os cafetões de guerra neoconservadores assistem com pavor a Ucrânia ser espancada por uma implacável guerra de atrito da Rússia. A Ucrânia sofreu quase 18 mil baixas civis (6.919 mortos e 11.075 feridos). Ela também viu cerca de 8% do total das suas habitações ser destruídos ou avariados e 50% da sua infraestrutura energética diretamente impactada, com cortes frequentes de suprimento de eletricidade. A Ucrânia requer pelo menos US$ 3 bilhões por mês em ajuda externa para sustentar a sua economia funcionando, disse recentemente o diretor-gerente do FMI. Cerca de 14 milhões de ucranianos foram deslocados das suas residências — 8 milhões na Europa e 6 milhões internamente — e até 18 milhões de pessoas, ou 40% da população ucraniana, logo necessitarão de ajuda humanitária. A economia ucraniana se retraiu em 35% em 2022 e 60% dos ucranianos agora se sustentam com menos de US$ 5,50 por dia — segundo as estimativas do Banco Mundial. Nove milhões de ucranianos não têm eletricidade nem água, em temperaturas abaixo de zero — diz o presidente ucraniano. Segundo estimativas dos Chefes de Estado Maior dos EUA, foram mortos 100.000 soldados ucranianos e 100.000 soldados russos na guerra até novembro último. 

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“A minha sensação é que estamos num momento crucial do conflito, quando o ímpeto poderia mudar a favor da Rússia caso nós não ajamos decisiva e rapidamente” — o ex-senador dos EUA Rob Portman foi citado como tendo declarado no Fórum Econômico Mundial de Davos — segundo uma publicação do Atlantic Council. “Faz-se necessário um surto”.

Fazendo a lógica virar de ponta-cabeça, os cúmplices da guerra argumentam que “a maior ameaça de guerra nuclear que nós enfrentamos é uma vitória russa”. A atitude arrogante sobre uma potencial confrontação nuclear com a Rússia, feita pelos animadores de torcida da guerra na Ucrânia, é muito, muito amedrontadora — especialmente dados os fiascos que eles supervisionaram durante vinte anos no Oriente Médio.

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Os chamamentos quase-histéricos em apoio à Ucrânia como um baluarte da liberdade e da democracia feitos pelos mandarins de Washington são respostas ao palpável apodrecimento e declínio do império estadunidense. A autoridade global dos EUA foi dizimada por bem-publicizados crimes de guerra, torturas, declínio econômico e desintegração social — incluindo o ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021, a resposta malfeita à pandemia, o declínio da expectativa de vida e a praga dos tiroteios em massa — e uma série de desastres militares, do Vietname ao Afeganistão. Os golpes de estado, assassinatos políticos, fraudes eleitorais, propaganda negra (sic), chantagens, raptos, campanhas anti-insurgência brutais, massacres sancionados pelos EUA, torturas em lugares secretos globais, guerras por procuração e intervenções militares operadas pelos EUA em todo o mundo desde o final da Segunda Guerra Mundial, jamais resultaram no estabelecimento de governos democráticos. Ao invés disso, estas intervenções resultaram em20 milhões de mortos e geraram uma repulsa global ao imperialismo estadunidense.

Desesperado, o império bombeia somas cada vez maiores na sua máquina de guerra. O mais recente projeto de lei alocando US$ trilhões de despesas nos EUA incluiu US$ 847 bilhões para as forças militares; o total é aumentado em US$ 858 bilhões quando se consideram contas que não estão sob a jurisdição do Comitê das Forças Armadas do Congresso dos EUA — como Departamento de Energia, que supervisiona a manutenção das armas nucleares e a infraestrutura que as desenvolve. Em 2021, quando os EUA tinham um orçamento militar de US$ 801 bilhões, representava quase 40% de todas as despesas militares totais do mundo, mais do que os próximos nove países da lista juntos gastaram com as suas forças militares combinadas, incluindo a Rússia e a China.

Como Edward Gibbon observou sobre a luxúria fatal do Império Romano sobre a guerra sem fim: “O declínio de Roma foi o efeito natural e inevitável da grandeza excessiva. A prosperidade fez amadurecer o princípio da decadência; a causa da destruição se multiplicou com a extensão da conquista; e, assim que o tempo ou acidentes removeram as sustentações artificiais, o estupendo tecido cedeu sob a pressão do seu próprio peso. A estória da ruína é simples e óbvia; e, ao invés de perguntar por que o Império Romano foi destruído, nós deveríamos ficar surpresos que ele subsistiu por tanto tempo”.

Um estado permanente de guerra cria burocracias complexas, sustentadas por políticos, jornalistas, cientistas, tecnocratas e acadêmicos complacentes, que servem obsequiosamente a máquina de guerra. Este militarismo precisa de inimigos mortais — os mais recentes são a Rússia e a China — mesmo quando os demonizados não têm nem a intenção, nem a capacidade — como foi o caso do Iraque — de causar dano aos EUA. Somos reféns destas incestuosas estruturas institucionais.

Mais cedo neste mês, por exemplo, os Comitês das Forças Armadas da Câmara e do Senado Federal dos EUA nomearam oito comissários para revisar a Estratégia de Defesa Nacional (NDS) do presidente Biden a fim de “examinar os pressupostos, os objetivos, os investimentos de defesa, a postura e estrutura das forças, os conceitos operacionais e os riscos militares do NDS”. Como escreve Eli Clifton do Quincy Institute for Responsible Statecraft, a comissão é “composta, na sua maioria, de indivíduos com laços financeiros com a indústria de armamentos e empreiteiros que servem ao governo dos EUA, levantando questões sobre se a comissão terá um olho crítico para com os empreiteiros que recebem US$ 400 bilhões do total de US$ 858 bilhões do orçamento de defesa para o ano fiscal de 2023.” O presidente da comissão, nota Clifton, é a ex-deputada federal Jane Harman (Democrata da California), que “faz parte do conselho da Iridium Communications, uma empresa de comunicações via satélite que ganhou um contrato de US$ 738,5 milhões por sete anos do Departamento de Defesa em 2019”.

As reportagens sobre a interferência russa nas eleições [dos EUA] e os robôs russos manipulando a opinião pública — que as recentes reportagens de Matt Taibbi sobre os “Twitter Files” expõem como uma elaborada peça de propaganda negra (sic) — foi amplificada acriticamente pela imprensa. Ela seduziu os Democratas e os seus apoiadores liberais para verem a Rússia como um inimigo mortal. O apoio quase universal a uma guerra prolongada com a Ucrânia não seria possível sem esta vigarice. 

Os dois partidos dominantes nos EUA dependem de fundos de campanha providos pela indústria da guerra e são pressionados pelos fabricantes de armamentos nos seus estados ou distritos, que empregam seus constituintes, para fazer aprovar [no Congresso dos EUA] orçamentos militares gigantescos. Os políticos são agudamente conscientes que desafiar a economia de guerra permanente significa ser atacado como antipatriota e geralmente é um ato de suicídio político.“

A alma que é escravizada pela guerra clama por libertação”, escreve Simone Weil no seu ensaio “The Iliad or the Poem of Force” [A Ilíada ou o Poema da Força], “porém a própria libertação parece para ela ser um aspecto extremo e trágico, o aspecto da destruição”.

Os historiadores se referem à tentativa quixotesca dos impérios em declínio de recuperar a sua hegemonia perdida através de aventurismos militares como sendo “micro-militarismos”. Durante a Guerra do Peloponeso (431 – 404 A.C.), os atenienses invadiram a Sicília, perdendo 200 navios e milhares de soldados. A derrota detonou uma série de revoltas de sucesso em todo o império ateniense. O Império Romano, que no seu auge durou dois séculos, tornou-se cativo de um homem do seu exército que, da maneira similar à indústria de guerra dos EUA, era um estado dentro de um estado. As antigas legiões poderosas de Roma na fase final do império sofreram uma derrota após a outra enquanto extraiam cada vez mais recursos de um estado empobrecido que se desmoronava. No final, a Guarda Pretoriana de elite leiloou o império para quem fez a oferta mais alta. O Império Britânico, já dizimado pela loucura militar suicida da Primeira Guerra Mundial, deu o seu último suspiro em 1956, quando atacou o Egito em uma disputa sobre a nacionalização do Canal de Suez. A Grã-Bretanha retirou-se em humilhação e se tornou um apêndice dos EUA. Uma guerra que durou uma década no Afeganistão selou o destino de uma decrépita União Soviética.“

Porquanto impérios em ascensão muitas vezes sejam criteriosos e até racionais na sua aplicação de forças armadas para conquistar e controlar domínios estrangeiros, impérios em desvanecimento inclinam-se a fazer imprudentes demonstrações de poder, sonhando com arrojados golpes de mestre militares que recuperem, de alguma maneira, o prestígio e o poder perdidos”, escreve o historiador Alfred W. McCoy no seu livro “In the Shadows of the American Century: The Rise and Decline of US Global Power”. “Muitas vezes, mesmo sendo irracionais desde um ponto de vista imperial, estas operações micro-militares podem produzir gastos hemorrágicos ou derrotas humilhantes que apenas aceleram o processo já em andamento”.

O plano para remodelar a Europa e o equilíbrio global de poder ao degradar a Rússia está resultando em algo parecido com o plano fracassado de remodelar o Oriente Médio. Ele está alimentando uma crise alimentar e devastando a Europa com uma inflação de quase dois dígitos. Ele está expondo mais uma vez a impotência dos EUA e a falência dos seus oligarcas dominantes. Como um contrapeso aos EUA, nações como a China, a Rússia, a Índia, o Brasil e o Irã estão separando-se da tirania do dólar enquanto moeda de reserva mundial, uma jogada que desencadeará uma catástrofe econômica e social nos EUA. Washington está dando sistemas de armas cada vez mais sofisticados e bilhões e mais bilhões em ajuda à Ucrânia, numa aposta fútil para salvar a Ucrânia — porém, ainda mais importante, para salvar a si próprios.

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