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Eugênio Bucci

Professor Titular da ECA-USP. Autor, entre outros livros, de Existe democracia sem verdade factual? (Editora Estação das Letras e Cores, 2019)

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Um banco laranja

O vil metal virou marca desejante, e o que ele deseja é você

Moedas de reais (Foto: REUTERS/Bruno Domingos)
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Quando era discreto o charme da burguesia, as casas bancárias eram discretas também. Seus donos se compraziam no anonimato. No máximo, permitiam que gravassem, em letras de bronze, pequenas, o nome do estabelecimento na fachada lateral do edifício, sem espalhafato. Bastava um sobrenome, um topônimo, nada mais. O comércio do dinheiro se fazia em silêncio. Banqueiros fugiam dos holofotes e dos logotipos vistosos. Não queriam nada com a fama. A fortuna os satisfazia.

Agora, a paisagem fiduciária mudou. Olhando para os comerciais de banqueiros na TV, a gente até se espanta. Há peças verdadeiramente espetaculares – espetacular, aqui, no sentido que o filósofo Guy Debord emprestou à palavra (emprestou sem juros): “O espetáculo é o capital em tamanho grau de acumulação que se torna imagem”. Os efeitos especiais de vídeo valem mais do que mil letras de câmbio. A pecúnia perdeu a inibição. O vil metal virou marca desejante, e o que ele deseja é você.

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As empresas que mercadejam bufunfa ofertam paixão para saciar a demanda do cliente. Desejam emprestar sentido à subjetividade do freguês (nesse caso, “emprestar” com juros). Pretendem carimbar um logotipo nos sonhos pessoais que você acalenta, nos seus projetos. Querem ser sócias das modestas cobiças dos milhões de seres que portam cartões de crédito no bolso ou no celular. Bancos, agora, têm sex appeal.

Nestes dias em que espoucam as fluorescências festivas de final de ano, uma dessas organizações privadas, com agências instaladas em cidades e cidadezinhas, vem divulgando filmes promocionais para nos dizer que seu coração é “feito de futuro”. A campanha é bem-feita. O slogan, realmente espetacular (com royalties imateriais para Guy Debord). Um achado publicitário, uma fórmula convidativa para celebrar o réveillon.

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Todo mundo tem, bem lá no fundo da alma endividada, a aspiração de ter lugar no futuro. Todo mundo almeja habitar o futuro. E, apresentada dessa forma tentadora, a ideia de um banco “feito de futuro” vem investida de força mágica, anímica, principalmente quando nos faz crer que ser “feito de futuro” é uma ambição que não cobra de ninguém o preço de jogar fora o passado. Futuro e passado se dão as mãos e se fortalecem, segundo o mantra do comercial, que, com isso, consegue fisgar a imaginação de quem quer perder nem o passado, nem o futuro e nem o presente.

Para melhor propagar sua receita de fusão temporal, o anunciante financeiro contratou a atriz Fernanda Montenegro, cuja magnitude paira acima do tempo. Com uma história pessoal mais rica do que todo o capital financeiro de todo o século XX, acrescido aí o primeiro quinto do século XXI, a grande dama das artes brasileiras declara que nasceu e renasceu muitas vezes, na pele das personagens que encarnou. Ela convence e arrebata. Como suas personagens fazem parte da memória afetiva de tanta gente, o espectador, sedento de esperança, ávido por uma fábula que dê conta de renovar suas energias depreciadas, aceita se emocionar.

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O comercial foi gravado num teatro espaçoso e sóbrio. O lugar está vazio. Não está propriamente às escuras; muitos pontos de luz em tons quentes, pontilhando as frisas, criam um ambiente de aconchego. Na fala cadenciada, a biografia da atriz vai se entrelaçando com a história do banco que a contratou. Ela declama frases fortes: “Eu me transformei muitas vezes para ser eu mesma”. O duplo sentido logo se estabelece. Será que fala de si? Ou será que fala da banca?

“Me fiz pedra”, ela diz, mas logo trata de qualificar: “Em movimento”. A ênfase que ela aporta a esse “em movimento” elucida tudo. Ela se refere a uma pedra que rola, que não se acomoda. O gesto das mãos, com os indicadores girando um em torno do outro, reforçam a mensagem já impregnada ao imaginário contemporâneo: rocha (rock) e mudança (and roll).

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A partir daí, a ambiguidade dá lugar a propaganda desinibida. A rocha tem menos a ver com a grande dama do que com a avantajada empresa bancária. Itaú, como se sabe, significa “pedra preta” em tupi-guarani. É essa rocha pretende “atravessar o tempo” – mudando cor. A pedra preta não quer mais ser preta. A pedra preta quer ser laranja.

A palavra “laranja”, porém, traz um constrangimento, por assim dizer, discreto. Quando associado a operações contábeis, o termo designa uma fraude: o “laranja” é alguém que empresta o nome (a troco de uma ninharia) para um negócio que beneficiará um espertalhão, cujo nome não vai aparecer. Se é assim, por que um banco faz tanta publicidade para ser visto como laranja? Muito simples: para ser dono de uma cor quente, positiva, e, com ela, simplificar sua comunicação. Você vai ver essa frequência cromática e vai pensar naquela agência bancária.

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Laranja, por que não? Há cores piores. Há concorrentes que são vermelhos, e não há correntista que proteste quando deposita seus caraminguás no vermelho. Ninguém liga que a conta fique no vermelho. Então, viva o laranja. Se você fizer as contas, verá que vai sair barato.

Feliz ano novo, seja qual for a sua cor.

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