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Plínio Zúnica

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Um conto de balanço de Natal

Aos que pacificam pelas bombas, mostrei o fortalecimento das ideologias extremistas! Aos que defendem a ordem pela força, mostrei a tempestade que nascerá da raiva que brota e fermenta no estômago vazio de quem sofre brutalidade policial

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Era 27 de Dezembro, reunião de balanço do Natal, e o velho simplesmente não acreditava no que estava acontecendo. Estava acostumado com reclamações trabalhistas dos duendes, ou com o setor de marketing sempre enchendo a paciência com contratos de imagem, mas essa foi a primeira vez que os três Fantasmas vinham com aporrinhação.
 
Pouca gente se dá conta disso, mas espalhar a alegria do Natal é um empreendimento de grande porte, e fica cada dia mais exigente diante da crise permanente no mercado da tal “boa vontade”, e move todo um setorial imenso de pessoas. Noel era só o carro chefe.
 
Os Fantasmas dos Natais Passados, Presente e Futuros, conforme nos ensinou Dickens, eram encarregados de uma das missões mais difíceis: levar (e forçar goela abaixo, se necessário) o verdadeiro significado do Natal para os mais avarentos e duros de coração, os peixes grandes que apodreceram por dentro e empesteiam a vida ao redor. Era uma operação delicada, envolvia todo um planejamento pedagógico, pesquisa e muitos efeitos especiais, e a cada ano ficava mais difícil justificar os custos do departamento diante dos resultados desanimadores.
 
     — Mas eu não estou entendendo, qual é o problema? — perguntou o bom velhinho.
 
    O salão se iluminou quando o/a Fantasma dos Natais Passados se ergueu pra falar. De todas as figuras natalinas, não havia dúvida de que era ela/ele a mais impressionante. Tinha o rosto de um menino doce, mas que era também o rosto de uma velha mulher sábia por trás de um véu de luz, e os cabelos muito brancos e longos bruxuleavam como se estivessem embaixo d’água. No alto da cabeça, alguns fios se entrelaçavam formando um pavio de vela, que estava sempre acesa, como um farol a guiar os perdidos e os ignorantes. Sua voz era um eco, baixo e suave, como se viesse de um lugar e um tempo muito distante:
 
     — Bom…om…om, de acordo com o departamento de marketing…ing…ing , as
 

taxas de rejeição ao VSN (Verdadeiro Significado do Natal) tem crescido espantosamente, e se os números continuarem assim nós estaremos fora do mercado muito em breve. Precisamos modernizar, não dá mais pra fazer como fazíamos no tempo do Scrooge, perder tempo com uma maçã podre por vez. Por isso, elaboramos uma nova estratégia de abordagem, e organizamos um programa de tours pra setores sociais estratégicos…égicos…égicos.

    Veja o meu caso, por exemplo. Meu trabalho é lembrar às pessoas que quem esquece o passado está fadado a repeti-lo…i-lo…i-lo, e que se colhe hoje o que se plantou ontem. Por isso, esse ano, visitei os principais formadores de opinião do mundo e os guiei pelos natais passados nas colônias de África e do Oriente Médio e nos porões das ditaduras latino-americanas, pra que testemunhassem e entendessem as razões iniciais das crises políticas e econômicas dessas regiões, o nascimento tanto de grupos fundamentalistas extremistas quanto de movimentos de libertação…ação, e pra que parem de pedir intervenção militar, porque isso é burro..urro..urro pra caramba. Escolhi jornalistas, artistas e escritores, porque eles podem, melhor do que eu, reavivar o passado, dar-lhe forma e alma para ser visto e sentido por todo o seu povo, e assim manter acesa a chama da memória para as pessoas durante o ano todo.
 
     — Pois me parece uma excelente estratégia! Qual foi o problema, então?
 
     — O problema é que eles riram de mim..im..im! Essas não são apenas pessoas que não sabem o que dizem, e sim gente que vive de esquartejar o passado e fabricar novas realidades de acordo com as necessidades de quem pagar mais. São mercenários ideológicos. Eles vendem verdades simples, sedutoras e coloridas, e mentem tanto que passam a acreditar nas mentiras que vendem. No fim das contas, eu sou só um professor de história… como competir com toda essa mídia sensacionalista… fascista… fascista… fascista?
 
Espalhando o inverno no eco infinito de seu suspiro fraco, o primeiro Fantasma se recolheu e apagou. Tomou a palavra o Fantasma do Natal Presente.
 
Aquele era um homem que entendia de ostentação. O Fantasma do Natal Presente era um gigante de barba espessa e vermelha sentado sobre uma cornucópia de prata, da qual escorriam torrentes de frutas exóticas, tortas, presuntos, perus assados, garrafas de vinho e também ouro, dólares, diamantes de sangue, títulos da Bolsa e barris de petróleo. Pela manhã, quando a reunião começara, ele aparentava ter vinte e poucos anos, mas envelhecia anos em horas, porque a efemeridade é a sina do Presente. Escorado no luxo e opulência, o gigante vestia um roupão simples e muito largo, embaixo do qual viviam, escondidos e assustados, os frutos da ganância do Homem. Duas crianças esfomeadas, com ossos pontudos que quase rasgavam a pele, e olhos confusos e injetados. Chamavam-se Ignorância e Miséria.
 
O colosso falava de modo pontual, enquanto marcava a passagem dos segundos batendo a mão pesada na coxa.
 
     — Eu sou o Hoje. Sou matéria, fato e ação. Aos mortais, parece curto o meu domínio. Eles não entendem a vastidão do presente. O Agora não se mede pela duração do instante. Mas pela soma de todos as realidades. Simultâneas de todos os seres. Que compartilham o mesmo presente. De maneiras tão diferentes. Uma rede infinita de contradições. Que se alimentam, parasitam, sustentam. O horizonte do presente se mede pela extensão. De seu conhecimento e coração. Meu trabalho é ampliar esse horizonte.
    Esse ano, reuni as maiores fortunas do planeta. Levei os patrões pra provar a ceia dos servos. Os que se engordam em frente às lareiras de suas mansões conheceram a fome e o frio. Sujaram seus sapatos nos campos de refugiados. Senhores feudais do Morumbi caminharam de cabeça baixa por Paraisópolis. Grandes industriais viram seus semi escravos alimentando as máquinas das fábricas com sua carne e suor.
 
     — Ah, magnífico! Queria estar lá quando eles finalmente entenderam as repercussões da sua ganância! Ah, o arrependimento, as lágrimas, a culpa…- disse São Nicolau, transbordando euforia cristã.
 
     — Noel, segura esse ho-ho-ho aí. Eu nunca fui tão ridicularizado em toda a minha vida. Eu deveria mostrar aos opressores que, no capitalismo, a fortuna de uns poucos se alimenta da miséria de muitos. Mas onde eu mostrava miséria, eles viam oportunidade. Os patrões que foram às favelas e campos de refugiados e tiveram seus corações (e carteiras) tocados. Não pelos pobres, mas pela estética da pobreza. Maquiaram a miséria com moda, música e festa. Higienizaram a dor. Abriram ONG’s. Nomearam embaixadores da Paz fotogênicos e ingênuos. Embalaram, perfumaram e venderam Miséria. Semearam e distribuíram Ignorância. Chamaram isso de filantropia. Eu não entendo mais este tempo. Ficamos pra trás.
 
O gigante, agora já ancião, limpou os olhos, recostou-se na cadeira e dormiu, babando levemente na barba agora longa e grisalha.
 
O terceiro irmão, o Fantasma dos Natais Futuros, era um cara estressado. Ao contrario do que o conto clássico nos leva a crer, ele não era mudo, apenas preferia não falar com humanos, porque não acha que vale o trabalho. Ademais, é fácil ser respeitado sem dizer uma palavra quando você sabe causar o efeito correto. No caso, o Futuro parecia ser um amontoado de trapos imundos envolvendo o que parecia ser um amontoado de sombras sólidas e selvagens lutando violentamente umas contra as outras, como o mar quebrando-se contra si mesmo durante a pior tempestade da pior noite do apocalipse, ou como uma sessão do Congresso que trate de Direitos Humanos.
 
     — Eu sou a Consequência! O anunciador da colheita! A encarnação profética da porcaria das decisões estúpidas desses sacos de carne inúteis! Eu reuni os grandes engenheiros da ruína dessa lástima de mundo moderno! Os políticos e militares que detém o poder de assinar papéis que assassinam pessoas! E eu lhes mostrei fogo, Noel, todo o fogo e toda a fúria ali, desenhadinha do jeito mais didático pra esses boçais!
    Aos que pacificam pelas bombas, mostrei o fortalecimento das ideologias extremistas! Aos que defendem a ordem pela força, mostrei a tempestade que nascerá da raiva que brota e fermenta no estômago vazio de quem sofre brutalidade policial, crescendo e se armando e esperando pra se libertar! Aos que pregam o racismo e a xenofobia, o ultra nacionalismo e a paranoia, mostrei linchamentos, perseguições étnicas, guerras!
    Mostrei a luta! A paciência dos povos se esgotando, as vozes silenciadas reivindicando ouvidos, tomando seu espaço, marchando juntas por justiça, dizendo NÃO MAIS!… e os cães… cegos, sedentos de sangue, os cães enrolados em fardas e bandeiras, correndo soltos e loucos a se banquetear no sangue dos bravos! Um festim de carnificina entre explosões e nuvens de gás. Só tiro, porrada e bomba, Noel. Tiro, porrada e bomba pra todo lado…
    Por fim, os fiz caminhar sobre uma estrada pavimentada com os corpos de todos os palestinos mortos pela colonização sionista, todos os negros assassinados pela polícia, todos os árabes mortos por bombas americanas e europeias, todos os homossexuais assassinados em nome de deus e de uma insegurança masculina patética, todas as mulheres mortas por machismo, todos os indígenas assassinados por latifundiários! Eles peregrinaram por quilômetros de culpa, os pés afundando entre os rostos e corpos sem vida, sangue coagulado cobrindo seus ternos caros e pesando sobre seus ombros! Então, no fim da estrada perguntei a esses néscios o que haviam aprendido do seu futuro quebrado!
 
     — E o que eles disseram?
 
     — Bandido bom é bandido morto. Eles… eles disseram que bandido bom… é… nossa… eu odeio esse trabalho.
 
O clima era pesado no Polo Norte. Papai Noel também tinha seus próprios problemas. As crianças estão cada dia mais exigentes, e foi preciso trocar todo o setor de brinquedos educativos de madeira por linhas de produção de tablets e smartphones, gerando um custo enorme em modernização de equipamentos e cursos de reciclagem profissional para os duendes. Não bastasse isso agora chegavam cartinhas pedindo estoques de Ritalina e cirurgias plásticas. E o velho nem queria lembrar do desastre que foi entregar presentes em São Paulo vestido todo de vermelho. No ano seguinte seguiria o conselho de Rudolph e se vestiria de entregador de pizza, que é bem mais seguro.
 
     — Senhores, eu entendo que vocês estejam abalados, são tempos difíceis pra todos nós. Se já era utópico falar sobre paz e amor nos anos sessenta, hoje é praticamente impossível pregar conceitos básicos de solidariedade e respeito, e talvez essa coisa de trabalhar pela paz na terra aos homens e mulheres de boa vontade esteja mesmo ultrapassado, mas é esse o nosso sentido de ser, não podemos simplesmente nos afundar em desilusão todo fim de ano. Eu realmente não sei o que fazer.
O silêncio era constrangedor, e foi o pequeno Quebra Nozes quem disse:
    — E se falássemos com o aniversariante? Esse fuzuê todo não é sobre a festa dele? O cara tem recursos, tem contatos, tem prestígio na praça.
 
     — Ah, eu realmente não acho uma boa ideia — disse Noel. — Afinal, se vocês se sentem frustrados com o seu trabalho sendo desrespeitado, distorcido, ridicularizado, parodiado, comercializado e usado pra justificar a opressão e o poder durante uma noite por ano, imaginem como ele se sente todos os dias. Deixa o rapaz quietinho lá no canto dele, deixa…

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