Stela Guedes Caputo avatar

Stela Guedes Caputo

Doutora em Educação, jornalista e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ

2 artigos

HOME > blog

Um domingo para impedir a era de Grete Samsa bolsonarista

Nesse domingo, 30 de outubro de 2022, nós podemos impedir a consolidação da era da Grete Samsa Bolsonarista

Um domingo para impedir a era de Grete Samsa bolsonarista (Foto: Arte: Cláudio Duarte)

Há 110 anos, Franz Kafka escrevia sua clássica obra A metamorfose. Como se sabe, ao acordar depois de uma noite de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontra-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. De muitas formas, o bizarro enredo do escritor tcheco nos lembra o cenário das eleições brasileiras. Por causa de Gregor, sim, mas fundamentalmente por causa de Grete Samsa, sua irmã. No ensaio “O século de Grete Samsa: sobre a possibilidade ou a impossibilidade do trágico no nosso tempo”, o filósofo Karel Kosik lembra que o autor de A metamorfose descreveu a época moderna como sendo hostil ao trágico, instituindo em seu lugar o grotesco. Por isso, o século XX, lembra Kosik, foi, acertadamente, chamado de “o século de Franz Kafka”. Kosik argumenta, ainda, que o século de Kafka corporifica uma de suas principais figuras, a personagem Grete Samsa, uma espécie de anti-Antígona do século XX. Para Kosik, ao contrário do que sempre se entendeu, a personagem central de A metamorfose não é Gregor Samsa, uma vez que o caixeiro-viajante já vivia aprisionado em muitas insatisfações, inclusive em seu trabalho. Kosik afirma que a personagem central da citada novela de Kafka é Grete Samsa, a irmã de Gregor. “A transformação grotesca ocorre, de fato, no instante em que Grete deixa de enxergar em seu irmão um ser humano, já não sabe mais se ele é gente ou bicho e acaba chegando à conclusão de que sua presença se tornou, para ela, insuportável. A partir desse instante, ela renega a humanidade do irmão e se convence de que no quarto só existe um animal repulsivo”, propõe Kosik.

Na verdade, a intenção do pensador tcheco em seu ensaio, é refletir sobre a impossibilidade do trágico no século XX, justificando essa impossibilidade com duas ações. A primeira é a banalização de tudo o que se faz de bom, grande, corajoso, belo, poético e até heroico. A segunda é a banalização e domesticação da morte. “A morte perdeu o poder que tinha de abalar profundamente os seres humanos e é digerida com certa rapidez no dia a dia. A morte do outro, do próximo, não ameaça nos desestruturar: ela é cotidiana, superficial, pouco significativa. Ela nos chega no meio de múltiplas imagens, sucessivas informações e sensações confusas; em seguida, desaparece, sem deixar traços”, sentencia o filósofo. Quando Gregor morre, Grete encarrega a empregada de “varrê-lo”. Por que enterrá-lo se não era um cadáver humano, mas a carapaça de um inseto? Quando as relações humanas estão grotescamente desumanizadas, diz Kosik, seria grotesca a ideia de enterrar humanamente um ser humano. E Grete salta por sobre o corpo do irmão, digo, do inseto.

A morte e o horror não abalam mais?

Grete Samsa nunca foi figura exclusiva do século XX. Inspiração de nossos tempos, foi nela que pensei, mais uma vez, enquanto a TV Globo noticiava os resultados das eleições no Brasil. Assombrada, vi Grete Samsa saltando por cima dos quase 700 mil mortos pela covid-19 em nosso país — porque, sim, a morte perdeu o poder que tinha de abalar profundamente os seres humanos, sobretudo se avaliarmos que a pandemia não foi a mesma para todos: enquanto 55% de negros que contraíram a covid-19 morreram por causa da doença, a proporção de mortes pela mesma causa entre brancos foi de 38%. Mortes que não ameaçam nos desestruturar porque são corpos matáveis, já pensando aqui com o filósofo Achille Mbembe. Só o desaparecimento sem rastro da morte, que nos chega no meio de múltiplas imagens, pode explicar o desempenho de Bolsonaro, um presidente que riu da morte de milhares de pessoas. Só o fato de a morte ser digerida com tanta rapidez fez Bolsonaro eleger parlamentares com tanto desprezo pela vida.

“Enquanto as estruturas que permitiram o surgimento do fascismo não forem destruídas, ele sempre será uma ameaça”. Era o que pensava Theodor Adorno, outro filósofo. Tanto essas estruturas não foram destruídas, que o fascismo vem ganhando força na Europa, sobretudo com a última eleição na Itália. A eleição brasileira não pode ser vista apenas com um recorte do voto evangélico. A raiz da extrema direita brasileira que vandaliza a vida é muito mais arraigada do que parecia, e se espalha tão profunda quanto rapidamente. Tanto é assim que, ao longo desse mês em que nos preparamos para o segundo turno, vimos muitas atrocidades. Para citar apenas uma, vimos Bolsonaro assumir, em entrevista, que “pintou um clima”, ao ver meninas de 14 anos arrumadinhas. Ou seja, o presidente do Brasil, que tenta se reeleger, disse, em rede nacional, que se sentiu atraído sexualmente por crianças. E nada, NADA disso abala seus seguidores. Erra quem disser que entende essa nossa “extrema direita bolsonarista”. Ela precisará de muitos esforços nossos para ser entendida e combatida.

Quem pode deter Grete Samsa? 

Talvez Kosik nos ofereça uma pista. O filósofo, quer um contraponto para a fria Grete. Contra sua insensibilidade cruel, ele sugere Antígona, a figura da mitologia grega e personagem de tragédia de Sófocles, aquela filha de Édipo cujos irmãos Etéocles e Polinices se bateram pelo governo de Tebas em um combate em que ambos morrem. No clássico enredo, Creonte, o novo rei, manda enterrar apenas seu aliado, Etéocles, e ordena que o corpo de Polinice não seja sepultado. Antígona, porém, desafia a repressão, a violência, a punição e seu próprio medo, arriscando seu bem-estar individual, sua segurança e sua vida. Ela afirma que não nasceu para partilhar ódios, mas apenas amor, e se destaca pela coragem, enfrentando tudo para enterrar dignamente o irmão. Kosik, por fim, indaga: quem poderia se opor à poderosa Grete Samsa, contrapondo-se a ela como uma Antígona moderna? Quem?

E conclui ele mesmo que a dificuldade para a resposta é que o embate de Antígona contra Creonte é o embate contra o poder autocrático, implacável, vaidoso, cínico e onipotente não apenas de um rei, mas de todo um sistema. O desejo por uma Antígona moderna faz parte, para Kosik, do pensamento crítico que encara cada nova época, cada era, percebendo suas tendências, mas, em especial, suas contradições. Ainda que se empenhe em localizar uma heroína ou um herói, é para o coletivo que Kosik aponta ao final de suas reflexões. Saber se o grotesco, o bizarro, não dominarão, é saber se cada época possui força criativa para, nas suas singularidades, engendrar a comunidade e defender a democracia plena, participativa.

Voltando ao cenário brasileiro, nas cidades e nas aldeias, nos quilombos e nos terreiros, nas calçadas e nas ruas, nas escolas e nos teatros, nas artes e nas ações solidárias estão as forças criadoras e coletivas necessárias para enfrentarmos Bolsonaro. Nesse domingo, 30 de outubro de 2022, nós podemos impedir a consolidação da era da Grete Samsa Bolsonarista. Do contrário, ela continuará saltando cínica e bizarramente por sobre a fome, o desemprego, o racismo, as desigualdades, os crimes de ódio, a censura. Saltando, enfim, por sobre nossas dores cotidianas. E rirá, como Bolsonaro riu e ri, sobre os corpos matáveis de sempre, varrendo-os como bichos repugnantes para fora da vida.

Confira participação de Stela Guedes na TV 247: 

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.