Um grito atravessado na garganta
O Globo de Ouro gerou gritos de comemoração, atravessados na garganta. É como se a população reconhecesse que sua hora chegara, dando um basta à opressão
Alguns instantes na vida comportam significações para além dos fatos. É como se algo da ordem dos acontecimentos, como se houvesse um cansaço do mesmo, desencadeasse elementos de ruptura e de inauguração, projetando augúrios para adiante. O filme Ainda estou aqui, dirigido por Walter Salles, com Fernanda Montenegro, Fernanda Torres e Selton Mello, entre os atores, ademais de suas qualidades, inclui ingredientes de vastas proporções. O Globo de Ouro gerou gritos de comemoração, atravessados na garganta. Surpreendida favoravelmente, é como se a população reconhecesse que sua hora chegara, dando um basta à opressão e seus golpes contra a cultura.
Qualquer nação que se preze reserva espaços destinados à reflexão, à criação artística e literária, com balanços ficcionais ou não pelos quais os que pertencem ao seu destino se reconhecem. O Estado, com leis de incentivo, e os que se dedicam a narrativas de todas as espécies, realizam um papel. O resto advém como consequência, com maior ou menor impacto do ponto de vista da sociedade. Ora, passamos por um período de silêncio sombrio. Ocupando a posição de Presidente da República havia alguém que pouco se lixava para a sensibilidade e não cedia recursos para que se fizessem as contrapartidas. Enquanto isso, assistíamos a filmes de qualidade produzidos na Argentina, na Europa e nos Estados Unidos, como se o mundo pretendesse nos humilhar, já que nos faltava criatividade. Verdadeiramente, estávamos às voltas com um talento que nunca nos faltou, como demonstra o Ainda estou aqui. As carências eram, de conteúdo político ou ideológico. Quem comandava a administração não lia, não ia ao cinema, abominava teatro, pintura, escultura e outras irreverências. Eis por que se pode dizer, sim, que, com Fernanda Torres e sua premiação, um grito atravessado na garganta explodiu, em uníssono, de Norte a Sul do país.
Para enfatizar o que se acabou de dizer basta um olhar nos nomes e a declaração dos que protestaram, destacando-se entre eles um tal de Frias. Tomamos conhecimento de que o rapaz ocupara o cargo de secretário da cultura, num governo que não hesitara em rebaixar a dignidade da função, como se praticamente não tivesse lugar na alta cúpula. Ali ficara ele, de mãos vazias, sem nada que o notabilizasse, a não ser como representante de coisa nenhuma. No que divulgou de suas opiniões, novamente não se destacou, a não ser como expressão do despeito e da pobreza de espírito. Enquanto isso, crescíamos no cenário internacional como contemporâneos de todos os homens.
Com uma assistência que rapidamente reuniu mais de três milhões de pessoas, nós, o diretor e os atores transformamos um filme em símbolo das lutas contra o fascismo. Tudo o que uma parcela dos quadrantes políticos ainda ativos gostaria de perpetuar e teria perpetuado, não fosse o fracasso de suas iniciativas golpistas. O grito serve como um desabafo. E vai além. Traz uma advertência: a de que a história sabe quem valorizar e repudia os torturadores.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




