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Alex Saratt

Alex Saratt, professor de História nas redes públicas municipal e estadual em Taquara/RS e dirigente sindical do Cpers/Sindicato.

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Uma esquerda conservadora?

Sem abdicar da crítica ao identitarismo, mas alerta sobre as confusões que a mesma pode resultar, talvez seja mais honesto se esforçar para acolher imenso contingente social que se identifica e se move por tais impulsos e politizá-los, organizá-los, trabalhá-los de modo a introjetar a perspectiva socialista e revolucionária, do contrário os deixaremos à mercê do combate ao fascismo sem guarida nenhuma e presas fáceis da sedução (neo)liberal tão ao gosto dos George Soros da vida

Porto Alegre/RS - Assembléia dos movimentos sociais marca o encerramento do Fórum Social Temático, em Porto Alegre (Marcelo Camargo/Agência Brasil) (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

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Não é sobre o Thammy - que, aliás, é bolsonarista. Nem trata-se de discutir preconceitos de ordem moral religiosa que invariavelmente resultam em exclusão, ódio e violência. Também não se refere ao dramático problema do abandono parental paterno - material e afetivo.

O que quero problematizar é sobre questões às quais a Esquerda brasileira parece ter perdido o prumo e a medida. É compreensível, ou melhor, explicável, porque a Esquerda patina num sem número de questões, mas preciso é que se faça um exame disso. O Golpe não foi ou é apenas uma inflexão política à Direita, mas talvez um trauma mal resolvido entre o pensamento e militância de Esquerda.

A "guerra cultural" frequentemente indicada como uma espécie de "cavalo de Tróia" no combate político e ideológico não deve ser desprezada, porém está longe de ser exatamente uma novidade - a propaganda anticomunista da Guerra Fria que o diga. Discursos e narrativas eivados na mentira, dissimulação, preconceitos, sensos comuns e alhures estão longe de serem fórmulas inéditas e originais.

Aliás, cabe pontuar que embora Política e Cultura sejam campos próprios e autônomos, é inegável que entre eles existem interseções, influências e intervenções. Qualquer análise estanque incorre num verdadeiro crime intelectual e teórico contra a concepção materialista histórica e dialética.

O fato de haver limites, lacunas e equívocos epistemológicos quanto a valoração da Cultura frente à Política - ou vice versa - não autoriza que a visão estreita seja admitida. Cabe aqui uma observação crucial: o espectro (ou emaranhado) das subjetividades - ideologias, mentalidades, imaginários, etc - ganha materialidade na práxis humana, não se aloja num mundo hipotético e idealizado.

Fossem as relações concretas, automáticas, tudo se daria de modo esquemático e a própria ação política perderia sua dinâmica e funcionalidade. É preciso reconhecer que as idiossincrasias e contradições do pensamento humano são as que formam a concretude - síntese de múltiplas determinações. Advogar incompatibilidade entre elementos políticos e culturais é empobrecedor e reducionista.

A existência - em fluxo contínuo - de identidades compõe fato inconteste e inerente à evolução humana. O advento da sociedade moderna - burguesa, capitalista e liberal - trouxe consigo um conjunto de transformações que, por imprescindível, forjaram novas condições e realidades.

O próprio proletariado transitou do "classe-em-si" para o "classe-para-si", portanto natural que outras identificações tomassem essa mesma medida e desenvoltura, ora articuladas, ora independentes. Ser "alguém" em vez de "algo" faz parte do processo de tomada de consciência de si e do mundo. Portanto, é falsa a proposição que opõe a centralidade da classe social com as expressões particulares de existência baseadas em sexo/gênero ou raça/etnia, por exemplo.

Mas parte substancial da Esquerda incorre num erro primário: confunde a crítica ao chamado "identitarismo", corrente teórica fragmentária, negacionista e assentada numa visão liberal de indivíduo e sociedade, com a generalização da luta emancipacionista, libertária e contrária às formas de opressão de segmentos a rigor articulados com a questão de maior fôlego.

Não pode haver dúvida - tampouco descuido - sobre essa aliança e é necessário fazer com que ambas convirjam. O pano de fundo, ao que parece, revela uma outra problemática: a de que a Esquerda, vivendo sua mais grave crise e refluxo desde o fim da Ditadura Militar (1964-1985/88), escolheu esse subterfúgio para expiar seus pecados.

A partir de uma leitura que descreve o "brasileiro médio" como um tipo conservador, moralista, avesso à radicalismos, preconceituoso, entre outras características, dá-se vazão a uma ideia de que se formos refratários às pautas polêmicas, indigestas e conflituosas, recuperaremos nossa autoridade, espaço e boa reputação.

Nada mais enganoso! Gesta-se uma Esquerda careta, rebaixada, alheia ao compromisso de reparar injustiças, desigualdades e exclusões históricas, acatando a "ordem" da nossa formação societária e civilizacional.

A Constituição da União Soviética se submeteu aos ditames e padrões da Rússia czarista e ortodoxa? Os amplos direitos assegurados às mulheres - inclusive o da interrupção voluntária da gravidez - acaso não chocava-se com os preceitos religiosos e não fora obra da luta das mulheres? Não foi Stalin o responsável pela definição de uma política sobre nacionalidades que abrangesse e reconhecesse as diferenças étnicas e culturais? Seria o Homem de Aço então um identitário? A Terceira Internacional não desenvolveu sua linha política combatendo o imperialismo, o colonialismo e as diversas formas de opressão baseadas no racismo, dando proeminência e protagonismo aos povos tidos por "inferiores"? Angela Davis não construiu uma síntese magnífica sobre Classe, Raça e Gênero? E o Socialismo/Comunismo, não é por sua vez uma ideologia que se propõe a romper grilhões e para isso se põe como expressão do enfrentamento aos valores arcaicos?

Ao que se apresenta, talvez seja antipático dizer, mas a Esquerda, atordoada e fragilizada pelos golpes sofridos, procura algo que não corresponde aos fatos, mas lhe serve de escape. Bobagem: fomos ou não co-responsáveis pela ideia do empreendedorismo, da ascensão social mediante o trabalho decente ou dedicação à formação técnica e intelectual ou pelo sucesso da conquista individual enquanto uma diretriz e exemplo do progresso social e econômico? Antes de abalarmos as estruturas ideológicas não raro as reforçamos? Ou a agenda reformista não criou despolitização e falsa sensação de que as melhorias, conquistas e avanços eram produto do esforço do sujeito?

Apontar o problema na promoção de grupos "minoritários" como a razão extrema de nosso quadro deletério não condiz com a realidade. Ou não perdemos a base social menos por apoiar mulheres, negros ou homossexuais e mais por abandonar sindicatos, associações de bairro, mutirões, cooperativas, grêmios juvenis em troca de funções estatais e governistas (e em razões de governabilidade) para igrejas, grupos de extrema-direita e políticos oportunistas?

Sem abdicar da crítica ao identitarismo, mas alerta sobre as confusões que a mesma pode resultar, talvez seja mais honesto se esforçar para acolher imenso contingente social que se identifica e se move por tais impulsos e politizá-los, organizá-los, trabalhá-los de modo a introjetar a perspectiva socialista e revolucionária, do contrário os deixaremos à mercê do combate ao fascismo sem guarida nenhuma e presas fáceis da sedução (neo)liberal tão ao gosto dos George Soros da vida.

Não é admissível uma Esquerda conservadora. Como asseverou com propriedade o sociólogo Cléber Custódio Duarte: toda luta contra a opressão converge para a luta de classes.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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