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Tiago Basílio Donoso

Mestre em Teoria Literária pela Unicamp e autor do livro no prelo “Terras Nacionais e Terras Estrangeiras”, pela editora Kotter

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Uma hipótese para a pergunta: o que é ideologia?

Ideologia é a bajulação que recebemos de desconhecidos ou, ainda, de coisas - de objetos, do mundo não animado. Ideologia é receber elogios sem a devida relação que os justifica

Atos da esquerda e do MBL (Foto: Roberto Parizotti)
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Muita gente relevante já respondeu a essa pergunta, mas não há resposta que possa esgotá-la. É por isso que vale sempre o esforço de tentar reformulá-la: o que é ideologia?

A interpretação que arrisco aqui é algo selvagem - no sentido de pouco rigorosa, sim, mas também de uma tentativa de espontaneidade. E vou direto à resposta: ideologia é a bajulação que recebemos de desconhecidos ou, ainda, de coisas - de objetos, do mundo não animado. Ideologia é receber elogios sem a devida relação que os justifica.

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Assim, quando um carro lhe diz que você é inteligente, refinado, rico - eis um procedimento ideológico. Quando uma roupa lhe diz que você é descolado; quando alguém desenha em uma tela uma arroba cujo centro é seu rosto; quando um comercial insinua que algo é “pra você”, mas também quando um jornal tenta agradá-lo com discursos anticorrupção, apelando a seu extraordinário senso moral; quando um âncora se finge de objetivo para agradar a seu senso crítico, ou grita apaixonadamente para mostrar que é “como você”, eis alguns dos procedimentos ideológicos. Em suma: ideologia é ser agradado por desconhecidos.

Que não se confunda elogio sincero com marketing, tampouco factóide com ideologia. Dar notícias falsas ou enviesadas não é um procedimento ideológico. Dizer que o programa de promoção da saúde menstrual é projeto de Tábata Amaral, não de Marília Arraes, é simplesmente mentira. Identificar antipetismo com consciência política é, descaradamente, ideológico.

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Há uma cena interessante em “Guerra e Paz”. Um pretenso camponês se encontra com Napoleão. Ele sabe quem é o general, mas finge não saber. Quando este lhe pergunta se conhece o famoso Napoleão, a resposta é um elogio vago. O líder francês entra em êxtase. Não sabe que, ao contrário da versão legendária, o camponês de Tolstói é um soldado, que analisa as linhas inimigas e sai-se facilmente, rindo, com o estratagema.

A cena é relevante aqui porque tem a ver com certa função do elogio. Afora seu uso em relações entre iguais, a bajulação serve para agradar um superior - mas com o intuito de que se contente consigo mesmo e deixe o sujeito distante de seu capricho, ou beneficiado por ele. O elogio é uma espécie de espelho, de anteparo, na relação entre classes. Aquele que está embaixo entrega ao superior aquilo apenas que lhe interessa: uma visão valorativa de si mesmo. Consegue com isso preservar seu íntimo, manter a relação sem profundidade, evitar violência e constrangimento. Um servo elogia um senhor para ser deixado em paz (ou conseguir alguma ascensão, no caso mais vexaminoso - de todo modo, é o subalterno quem engana e dá as cartas).

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O que a ideologia faz de assombroso é inverter essa relação. De uma arma do subalterno, passa a ser a munição por excelência dos superiores hierárquicos. O elogio ao inferior na escala social é uma arma cruel, uma usurpação.

E repare em volta. Veja como essa invenção relativamente recente colocou a realidade de ponta cabeça. Veja se as coisas em seu corpo, em sua casa, em seu quintal e em sua garagem - não importa quão pobre, remediado ou classe média se seja, há sempre um elogio falso e cruel à espreita - como essas coisas estão a todo momento dirigindo piscadelas a você. Perceba como sua televisão o elogia; como sua bicicleta não se contenta em ser bicicleta, mas quer tornar delicioso seu passeio; como um saco de cimento exalta a masculinidade do trabalhador; veja como você é mimado por coisas mortas, como é amado até a loucura pelo inorgânico. Como um pesadelo da Disney, os objetos estão sorrindo e cantando - e nós, de egos inflados, apaixonados por nós mesmos, perdemos a razão e sorrimos dentro da loucura.

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Não é à toa que Tio Sam com o dedo apontado para o espectador é um símbolo forte e, por assim dizer, paradigmático. Assim como não à toa a meritocracia é pura perversão ideológica: se nos disseram que os melhores e os mais esforçados “chegam lá”, porém eu ainda não cheguei, não posso abandonar o elogio que me fizeram - antes, abandono a realidade. Posso me sentir culpado ou culpar alguém mais abaixo na linha da opressão, mas nunca recusar o elogio dirigido diretamente a mim.

É, ao mesmo tempo, natural e inconcebível. Como fomos acreditar que um banco sente afeto por nós? Que só aqueles que merecem - eu - têm direito a um sabonete que espuma e desliza em câmera lenta? Uma garrafa de tubaína, de algum modo grotesco e tortuoso, nos ama. E elogiados todos os dias e a todo o momento, nos desligamos dos outros e nos ligamos a nós mesmos e aos objetos que se fascinam conosco. É por isso que o grau máximo da ideologia é a extinção da crítica.

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A Globonews está o dia todo chamando seu “assinante” de cidadão instruído, consciente, de cidadão de bem. Quando se fala de justiça social ou ecologia, o intuito não é o pobre ou o meio-ambiente, mas o bem-estar moral daquele que assiste. O bolsonarismo é o elogio descarado feito a pessoas que não são elogiadas por ninguém - essa a sua força passional.

Mas, como se diz, nada é ruim que não possa ficar pior. Dentro dessa “teoria”, dessa especulação tateante, imagine o que seriam as redes sociais: a bolha, o elogio permanente, o sorriso no rosto de quem está sendo elogiado e está… gostando. Diz-se que, para se convencer a população nativa do Brasil no princípio do colonialismo, foram dados espelhos. Talvez isso seja menos uma questão factual que um símbolo assombroso (até porque, quem teria espelhos em abundância no século XVI?). Nessa imagem algo anedótica - dá-se espelho, pega-se ouro - está o princípio inconfesso da ideologia. Dê um celular, um pedaço de vidro refletor, e a submissão surge; dê a imagem elogiosa de alguém e tome-lhe o espírito; crie um universo virtual à imagem e semelhança de seu usuário, que ele não verá no mundo outra coisa senão ele mesmo. Dê o espelho que bajula a madrasta da Branca de Neve; dê a um homem uma representação positiva de si: e - pronto - ele estará fatalmente perdido, perdido para sempre.

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