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Luciana Sérvulo da Cunha

Documentarista, diretora artística, terapeuta holística e ativista. Foi assessora da presidência da República e diretora de patrocínios no governo Lula. Trabalhou na EBC /TV Brasil e na TV INES. Atualmente é parceira do #MeTooBrasil e coordenadora do coletivo #RespeitoEmCena de combate à violência contra a mulher.

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Uma inimiga invisível

Em tempos e templos brutos, como perceber o imperceptível, denunciar e penalizar abusadoras (es) poderosas (os) e afamadas (os) que agem dissimuladamente?

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-Mas eu te avisei! 

De supetão me disse a amiga quando, angustiada, eu confessava o extenuante périplo em tratar das escoriações de uma relação de abuso emocional com uma pessoa pública.

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-Essa doeu, pensei!

Como esbraseantes flechas, as palavras foram, em silêncio, cortando minha carne e ecoando em um coro uníssono o veredicto final:

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-A ré sabia que estava em uma relação abusiva e é declarada culpada!

-A ré gostava de ser abusada: culpada! 

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-A ré escolheu conscientemente viver uma relação abusiva e por isso também declaramos: culpada!

Quem diria que pelas costas de um inofensivo bordão nosso de cada dia – “mas eu te avisei”- disfarçado de devoção, faria despontar uma lampejante dor e ainda revelaria o esconderijo secular “perfeito” de preconceitos estruturais enraizados em nosso inconsciente mas que, vorazmente, nos devoram dia a dia. Traduzindo em miúdos apenas um deles, como a crença popular martela a séculos: mulher gosta de apanhar e a culpa é sempre da vítima.

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No entretempo dessa nossa morredoura existência, que teima em negar sua própria natureza e sobrevive às custas do mecenato de um avarento ego, que se crê perpétua majestade em um reino de ludibriados, é preciso ter boceta e culhão para olhar aquilo que não se vê ou que não se quer ver e levantar nossos catinguentos e empoeirados tapetes pessoais e coletivos odorizados com perfume francês, para fazermos constantes investigações internas e externas e descobrirmos onde essas malquerenças e malevolências encontram cômodas moradas e assim podermos desconstruí-las. 

Urge também afinarmos as nossas percepções e conseguirmos olhar para além de títulos, cifrões, status, personas e aparências. São muitas as estatísticas provando que pedófilos, abusadores e abusadoras que cometem violências, nos frequentam, nos rodeiam e estão bem próximos e próximas de nós. Principalmente, visto que em maior número e constância, quando se trata de manipuladores e manipuladoras emocionais que carregam, com frequência, traços como o narcisismo exacerbado ou a perversão narcísica.

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“A violência exercida pelo (a) perverso (a) narcísico (a) é silenciosa e a vítima a sofre de maneira silenciosa, porque se trata de uma violência velada e insidiosa, não assumida pelo (a) agressor (a), negada e denegada por ele ou ela, que sutilmente inverte a relação, acusando o outro de ser o culpado pela situação. Desta forma, a vítima se sente confusa e acaba por sentir-se culpada, o que, por sua vez, inocenta o (a) agressor (a)… Não é uma perversão explícita, mas ao contrário, imiscui-se no dia a dia, nas pequenas relações, nos pequenos atos, tendendo, assim, a passar despercebida”. (André Martins)

Mas não contemos com esses nossos tempos para investigações e afinações em se tratando de violências mais sutis e subjetivas e, ainda por cima, que são aceitas e naturalizadas no nosso dia a dia. Essa é uma lapidação que depende da disposição interna, da coragem e do compromisso de cada uma e cada um de nós, pois na leal dieta de toxidades da Bozolândia, minguadas são as pesquisas, artigos, debates e estudos sobre a violência psicológica e a perversão narcísica. Pouco se fala sobre esses temas com suas tetras e tramas e este fato em si já reflete as próprias características desse tipo de violência: ela é velada, ou seja, não a vemos. Ela é disparada com emocionalidades e nos pega pelo coração. Ela é urdida em sutilezas e suas táticas são primorosas e isso significa que eu ou você podemos cair em suas armadilhas a qualquer momento, salientando que um (a) manipulador (a) psicológico atuará onde ele (ela) terá o que sugar e suas vítimas são mulheres fortes e compassivas, cheias de energia e vivacidade. 

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Como se não bastasse, ela ainda pode ser disfarçada de sedução, paixão, proteção e ciúmes, o que a faz ser naturalizada e popularmente benquista, aceita e alimentada todos os santos dias a cada minuto da sua e da minha vida. Na boa companhia do bônus extra-plus de ter se tornado o próprio tecido constitutivo de crenças individuais e coletivas que sustentam as nossas inter-relações, ela vem mantendo o topo do ranking da violência mais praticada contra as mulheres. Isso tudo com a proeza de ser a menos reconhecida, falada, confrontada, combatida e penalizada.

Vestida em “haute couture”, com seus chiques apetrechos de abusos emocionais e assédios morais, em época de coliseus contemporâneos onde ela pode ser degustada em horário nobre e utilizada como marketing em programas de Reality Shows com gigantes audiências, a violência psicológica é um portal aliciador para todos os tipos de violência: a sexual, a patrimonial, a física e a moral. E nesta metagaláxia, ela é onipresente e onipotente, perpassando e se metamorfoseando em todas elas. Sorrateira, ardilosa e inclemente, ela sabe como bombardear sem fazer barulho; é capaz de destruir sem deixar marcas físicas; e consegue aniquilar nossos grandes bens sem gerar prova alguma. Extremamente cruel com quem a pressente por perto, é uma inimiga silenciosa e invisível. 

Então, como lutar, superar e se libertar daquilo que não se vê e não se sabe?

“Para tampar seus problemas, uma pessoa com elevado nível de narcisismo costuma buscar uma ou duas vítimas próximas, não precisa mais do que isso, mas pode tornar-lhes a vida impossível” (Jean-Charles Bouchoux)

Um estuprador é um ladrão de corpos. E um (uma) manipulador (a) emocional é um (uma) sequestradora de almas. Após uma relação de violência psicológica, uma parte de nossa alma fica retida por um largo tempo nos domínios da pessoa agressora. E nesse circuito, como se não bastasse o sequestro em si e a luta para “vir a ser” novamente das vítimas, somos confrontadas com vãs desconfianças e acusações delirantes, advindas de uma sociedade fedorenta que vive enlameada e ensanguentada até o pescoço de preconceitos machistas, racistas, homofóbicos, transfóbicos e misóginos.

É importante introjetarmos que nenhum abusador ou abusadora chega dando murro na cara. Ao contrário. Eles e elas são inteligentes, encantadoras (es), atraentes, articulados (as), bem-humoradas (os) e mestres na arte da sedução, que posteriormente se converterá em todos os tipos de manipulação. Quando percebemos, já entregues para o amor, estamos completamente enredadas em uma teia e Inês é morta! Dependentes, com medo, culpadas, muito fragilizadas, sem forças ou energia, não conseguimos mais reagir e lutar. Quem assistiu a série “Maid” (Netflix) e passou por isso, soube bem reconhecer aquele terrível e fundo buraco sem saída. É preciso pedir ajuda. Mas nós também precisamos estar atentas às mulheres em nossa volta, abertas (os), dispostas (os) e organizadas (os) para ajudar.

Quando o (a) abusador (a) é uma pessoa pública, possuidor ou possuidora de capital artístico, político, financeiro ou social, o sofrimento e a dificuldade das vítimas em falar e denunciar se multiplica e perpetua ainda mais. Quando a abusadora se trata de uma mulher e o abuso se manifesta em uma relação homoafetiva, o buraco é mais embaixo ainda. 

Assuntos dolorosos não contemplados, assumidos, olhados ou debatidos à exaustão, acabam beneficiando o submundo das violências. E como a violência psicológica é feita de reticências, subjetividades, subentendidos e pelos não ditos, essa lacuna faz aumentar dores e sofrimentos. Uma vítima mulher, lésbica ou bissexual, passando ou que passou por violência em uma relação homoafetiva, sofre em total silêncio, desamparo e solidão. Já é tempo de abrirmos nossos olhos para isso e encararmos de frente, com a cuca e o peito aberto, esse problema.

Cutuquemos, falemos e olhemos, então, para assuntos tabus, polêmicos e desconfortáveis, que não queremos, conseguimos ou podemos ver e perceber. Voltemos ao capital. Uma (um) abusadora (or) empoderada (o) e afamada (o) contará com uma “boa” estrutura e o suporte pleno da sociedade, e suas tendências narcísicas serão alimentadas diariamente nas redes. Dependente, viciada e obcecada (o) pela própria imagem - que crê faz sua roda pessoal e profissional girar – é comum eles ou elas se fortalecerem com ações de caridade, engajamentos em causas sociais ou discursos contundentes políticos, e ao mesmo tempo que afirmarão publicamente manter seu ego e sua vaidade sob controle, necessitarão de suprimentos narcísicos constantes e sobreviverão graças ao uso e a manipulação dos sentimentos das pessoas que as (os) cercam.

"Para essas pessoas, o céu é o limite. Elas vão acabar com tudo o que significa a existência do outro, e o efeito é devastador: uma das relações mais destruidoras que pode existir para qualquer ser humano...As ações do (da) perverso (a) também podem levar à morte. Ele (ela) vai eliminar tudo o que constituiu o outro: sua moral, sua estética, seu trabalho e por aí vai. É comum a vida da vítima entrar em colapso”. (Silvia Malamud)

Egoístas, atormentadas e emocionalmente imaturas, são incapazes de olhar pra dentro de si, de aceitar, conviver e administrar a intensidade das emoções, dos sentimentos e da vida. Não suportando a própria existência acabam terceirizando seus problemas, dificuldades e responsabilidades pessoais para advogados (as), secretárias, assistentes, cozinheiros (as), médicas (os) ortomoleculares, diaristas, empresárias (os), produtores (as), cuidadores (as) de cachorro, dermatologistas, motoristas (nada contra essas honradas profissões e seus / suas profissionais). Quando surge um conflito - e a vida é repleta deles - ou um ex-membro de seu reino de ludibriados se rebela apontando algum hiato a (o) contrariando e mostrando que a vida é muito maior do que o seu próprio umbigo, prepare-se para ser intimidado (a), chantageado (a) ou ameaçado (a) a qualquer momento. A vida, nesse seu universo, se resume a poder, dinheiro, domínio e o controle que ela (ele) exerce com a objetificação e instrumentalização do outro para o seu próprio e único prazer.

“Uma pessoa perversa narcísica serve-se do outro para seus fins, e preocupa-se em fazer com que o outro se sinta culpado, a fim de que a vítima não a odeie por manipulá-la e usá-la, e para que, isto feito, não consiga tornar-se independente. A (o) perversa (o) narcísica (o) acredita (embora não o assuma ou admita) que, para sobreviver, é preciso usar o outro, sugá-lo, negá-lo e desrespeitá-lo.” (André Martins)

No documentário “Sobrevivi a R.Kelly” (Netflix) sobre o famoso cantor e compositor americano acusado pelo crime de tráfico sexual de mulheres e de menores de idade, essa dinâmica de manipulações, favorecimentos e cumplicidades fica transparente como a água. 

Chamou-me muito a atenção que, mesmo depois da circulação de um pavoroso vídeo, onde o cantor aparece abusando sexual e psicologicamente de uma menina de 14 anos, espantosamente as pessoas ainda o adoravam e consumiam sua música. A jornalista Anne Powers, uma das entrevistadas do documentário, diz: ‘Ninguém quer abrir mão da música que ama e ninguém quer pensar mal do artista que eles amam”. Mas a história de R.Kelly, infelizmente, não é a única. Elas sempre são muito parecidas, se desenrolam como se os (as) agressores seguissem um tutorial e bem debaixo do nosso nariz, existem adorados lobos e adoradas lobas em pele de cordeiro, que têm seus abusos impunes há anos e suas vítimas vêm sofrendo em um silêncio avassalador. Nada nesse país, nem o sistema judiciário (moroso, corrupto e preconceituoso), nem os seus profissionais (a grande maioria inacessível), nem a indústria de entretenimento (elitista e arrogante) e muito menos a sociedade como um todo, favorece o rompimento do silêncio de uma vítima e a reparação de todos os danos sofridos, ainda mais se a vítima é uma mulher, negra, lésbica, trans, pobre ou desconhecida. 

Em uma era de epidemia do narcisismo, com um consumismo galopante, a autopromoção nas redes sociais e a busca da fama a qualquer preço, de novo e de novo precisamos levantar nossos catinguentos e empoeirados tapetes para olhar o que nos move e o que move uma “sociedade do espetáculo”, com o empobrecimento, a subordinação e a negação da vida real. 

Por consequência, a nossa relação com a fama, com pessoas famosas e “celebridades” também precisa ser re-vista. A reação incessante de veneração, a negação de limites, falhas, tristezas e angústias e a cumplicidade de boa parte da sociedade com essa cultura da idolatria e glamorização, até mesmo quando uma denúncia com provas vem à tona, como no caso acima, beneficia a perpetuação de abusos e injustiças. 

Ou ainda favorece a ilusão de que essas “celebridades” e suas idealizadas “personas” são intocáveis. A cada post ou vídeo, o narcisismo será nutrido por milhares de comentários bajuladores e excessivos, que as fazem se acharem “deusas”, musas”, “perfeitas” e pior, acreditarem que é possível sentir satisfação o tempo todo, diminuindo assim sua capacidade de enxergar e suportar a realidade.

Todavia, o efeito desse “jogo das redes” é devastador “como matar a fome com gelatina: engana, mas por pouco tempo” (Hemir Barição) e a realidade prontamente baterá em suas portas, ou melhor, em suas macias e confortáveis camas onde elas afundarão, com grande estilo, em seus miseráveis mundos emocionais. Mas não sem antes arquitetarem vinganças, veladas ameças, perseguições e difamações que deixarão suas presas, mais uma vez, atônitas e sem reação para assim, “aliviadas”, provocarem o fechamento de suas pesadas pupilas com bolas de dormir, sem se darem conta de que a vida é implacável com a sua natural lei do retorno e, mais cedo ou mais tarde, suas máscaras cairão. 

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