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Gustavo Conde

Gustavo Conde é linguista.

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O fosso ético abissal entre as famílias ricas e pobres

"Famílias pobres interagem entre si,, têm mobilidade, alto poder de interação e permuta virtuosa de valores. Famílias ricas se aglutinam numa interminável concentração consanguínea, repleta de fetiches e síndromes de ostentação. São 'duros', impermeáveis, egocêntricos.", diz o colunista Gustavo Conde, sobre a crise ética que se abate sobre os ditos "valores da família" no país

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A involuntária coincidência histórica de se associar os conceitos de família e de milícia vem muito a calhar. É preciso falar desse significante tão surrado e tão fraudulento que é a porção lexical ‘família’.

A onda fascista lhe restituiu o verdadeiro significado: um depositário de ódio e egoísmo travestido de núcleo social.

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Os entes familiares são coagidos a conviverem juntos por mera consanguinidade. É uma espécie de milícia.

O decantado afeto familiar também não passa de hipocrisia barata. Basta um ente morrer para que se dispare a disputa por herança.

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Traição, inveja, sabotagem, omissão, blefe, mentira. Tudo encontra seu grau zero no glorioso e idílico seio familiar.

Dói, eu sei. Mas para quem assiste o genocídio que impera nas “famílias”, fica difícil calar a respeito.

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O maior foco de violência letal da sociedade brasileira não é a favela. Não é o trânsito. Não é o trabalho escravo da Havan. É a família.

É o lugar mais perigoso para as mulheres, para LGBTs, para crianças e para idosos. Os agentes agressores de sempre são os machos brancos em idade “produtiva” (produção de violência). Machos brancos que ora podem ser negros, pardos ou indígenas, contaminados pela branquitude doentia dos patrões que os pisoteiam.

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A branquitude não é a melanina, caras pálidas. Nem a autoidentificação pura e simples. A branquitude é um estado de espírito, um projeto de dominação, um foco irradiador de violência.

Quando um negro é violento, ele é branco. Quando uma mulher é violenta, ela é macho. Quando um LGBT é violento, ele é hétero. E quando eles encarnam a identidade heteronormativa branca para produzir violência, são acusados sem piedade pelo jornalismo igualmente branco que defende a ‘família’. A ideologia faz o resto: inocenta machos brancos da urbe e criminaliza mulheres negras da periferia.

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Família é milícia. É um núcleo de coações que potencializa o terror latente dentro de cada um de nós.

Natal, Páscoa, Ano Novo, são desaceleradores dos processos de violência embutidos - e estruturantes - em toda e qualquer família. É o grau zero da lógica elementar dos enunciados: se se fala tanto de amor, de solidariedade e de paz é para compensar a monumentalidade de violência física e simbólica que grassa nas famílias no restante do ciclo translacional do planeta.

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Conselhos tutelares são poucos diante de tanta violência familiar no Brasil. São poucos e, em parte, instrumentalizados, tal é o grau de patrulha sangrenta que a heteronormatividade branca e familiar exerce em sua órbita social.

O que fazer? Educação. Educação e cultura. A única saída para a monstruosidade familiar são as escolas, nem tanto pelos professores - peças de uma mesma engrenagem em boa parte das vezes - mas pelo convívio espontâneo entre crianças e adolescentes, entes ainda não estragados pela máquina de moer carne ideológica que brota, primeiro da família, depois das instituições fortemente viciadas e mantenedoras de privilégios, como a Justiça, a Polícia e o Estado.

É Althusser na veia, sem meias palavras e sem citações normativas para impressionar gente branca. Trata-se de um “aparelho ideológico” subserviente à lógica do andar de cima e, por isso mesmo, muito mais violento que os produtores habituais de violência, como a polícia e a justiça (que chancela a lógica punitivista dos homens de pistola).

Por isso há tantos conflitos entre família e escola. Quando a criança aprende a ser gente e a pensar com alguma independência, a família mergulha em espirais de ódio. Querem ser os proprietários da ideologia dos filhos, dos valores, dos desejos. E diz-se isso abertamente na mesa de jantar, sem qualquer tipo de contestação crítica. Ai de quem contestar.

A família é uma instituição falida. É chegada a hora de enfrentar essa fatalidade.

Óbvio que tenho boas lembranças da família (mas também tenho péssimas). O que se está em discussão aqui é de natureza social, abstrata, conceitual, teórica (essa palavra que causa calafrios em gente intelectualmente preguiçosa).

A família é o núcleo irradiador de toda a experiência de violência social, simbólica, física e institucional. A psicanálise já identificou essa onipresença tóxica da família há mais de cem anos.

Não chama a atenção de vocês que todos aqueles que falam em “nome da família” são extremistas fanáticos como Damares Alves, Jair Bolsonaro e Wilson Witzel?

Como linguista, eu poderia propor: é preciso re-significar a palavra “família”. Mas como cidadão eu digo: é uma palavra morta.

Quem defende a vida não pode defender a “família”. Quem defende a espécie, não pode defender a “família”. Quem defende a liberdade, não pode defender a “família”. São contrassensos escandalosos.

Por isso, ademais, o bolsa-família deu tanta polêmica nos interstícios do pensamento branco. O significante ‘família’ lhes havia sido ‘expropriado’. Mas não só. O bolsa-família não é um programa que defende a família: é um programa que defende a vida.

Está associado à mulher, à criança, à vacinação (à saúde), à alimentação e à educação. O macho branco e seu infame estereótipo de violento, neste programa inteligente e prático, é um “problema a ser vencido”. E foi, em grande medida. Mais uma razão para a gritaria da boçalidade macha.

O preço de se lutar, de fato, no mundo dos sentidos é alto, meus infamiliares leitores. É doloroso combater o sentido de ‘família’ sabendo que ele reverbera com tantas cifras de afeto e memória no coração de vocês.

Mas é por isso mesmo que vale a pena lutar nesse campo sangrento das relações semânticas. É o campo a ser conquistado, sempre. Luta-se na rua, por sentido. Luta-se nas redes sociais, por sentido. Luta-se na arena da significação conceitual também por sentidos.

É preciso mexer no sentido de ‘família’. É preciso mexer na ideia de ‘família’. É preciso não se contentar com a ração semântica que nos é imposta todos os dias, todos os anos, todos os séculos.

Liberdade, na acepção máxima da palavra, é libertar os sentidos de suas amarras viciadas e reprodutoras de violência.

Há um adendo, no entanto, que merece atenção. Famílias pobres têm outra configuração social, diferente das famílias remediadas, com transferência de poder e riqueza de gerações em gerações. Não poderia ser diferente.

Tudo entre esses dois tipos de família é diferente, a começar pelo número de filhos (característica ridicularizada pelas famílias ricas, com seus ‘casais’ e filhos únicos). Mas isso é quase um detalhe.

As famílias pobres são o depositário real do ideal ético que as famílias ricas jamais conseguiram cumprir. Isso está em praticamente toda a literatura ocidental. Shakespeare, Dostoiévski, Dickens, Victor Hugo, todos eles retrataram a bestialidade da família aristocrata versus a real dimensão moral dos despossuídos, em alguma medida.

Famílias pobres interagem entre si (entre as famílias pobres da comunidade), têm mobilidade, alto poder de interação e permuta virtuosa de valores. Famílias ricas se aglutinam numa interminável concentração consanguínea, repleta de fetiches e síndromes de ostentação. São “duros”, impermeáveis, egocêntricos.

Do chão pobre do trabalho assalariado ainda emergem talentos absolutamente insuperáveis pelo conforto cognitivo que reveste o berço social. Negros, pobres, mulheres, gays, índios, são muito mais talentosos, criativos, solidários que a elite fina que manda seus filhos para a faculdade de medicina e advocacia (para clinicar entre ricos e advogar entre ricos).

Família rica - ou que se enquadra na faixa conceitualmente branca da sociedade - é uma bolha, um núcleo de acumuladores compulsivos que prejudica a economia. Família pobre compra e paga. Faz o dinheiro circular. Faz jus ao conceito mais básico de vida social, que é socializar a riqueza, os valores e o afeto.

Talvez, por isso o conceito de ‘família’ não esteja de todo perdido. A esperança, como sempre, reside nos pobres, naquilo que a civilização nos legou e lega como reserva humanística real.

A datas comemorativas extraídas do calendário pagão, que servem como excludentes de ilicitude para nossas elites genocidas, são, de fato, experimentadas em sua plenitude espiritual, nas famílias pobres que, com todas as dificuldades, as vivenciam com o sonho legítimo de um mundo melhor e com mais esperança.

Quando o pobre deixar de se influenciar pela ética apodrecida da elite - via novelas de quinta categoria da Rede Globo de Televisão e afins - quando interromper o processo vicioso de se deixar usar pela indústria da religião, quando acreditar verdadeiramente no seu poder revolucionário e na sua força social descomunal, poderemos sonhar com menos violência nessas datas comemorativas.

O rico contamina o pobre com sua indigência moral.

Que nos libertemos dessa maldição ancestral e possamos ascender a, pelo menos, um novo ciclo de tentativas. Quem sabe não tenha chegado o momento?

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