Universidade em modo produtivo
Com milhares de novos PhDs anuais, Pequim transforma formação avançada em linha de inovação
A decisão tomada pelo Instituto de Tecnologia de Harbin e por dezenas de universidades estratégicas chinesas rompe um dos dogmas mais antigos da academia: o doutorado não precisa mais culminar, necessariamente, em uma dissertação. Em seu lugar, surgem tecnologias aplicadas, protótipos funcionais, sistemas industriais e soluções mensuráveis.
A China transforma o rito final da vida acadêmica em algo mais direto, quase brutalmente pragmático: resolver problemas reais antes de escrever sobre eles.
O modelo não é improviso nem experimento isolado. Ele nasce de um programa nacional lançado em 2022 pelo Ministério da Educação da China, em parceria com outras oito agências governamentais, envolvendo mais de sessenta instituições de ensino superior e cerca de cem empresas estratégicas.
A lógica é simples e profundamente política: reduzir gargalos tecnológicos em áreas sensíveis da corrida global, sobretudo diante das restrições impostas pelos Estados Unidos em semicondutores, computação avançada e sistemas industriais críticos.
No coração desse desenho está a integração radical entre laboratório, indústria e governo. O doutorando deixa de ser um observador protegido e passa a atuar dentro de cadeias produtivas reais, submetido a prazos, falhas, custos e exigências de escala. Muitos desafios de engenharia, como reconhecem dirigentes acadêmicos chineses, não cabem em artigos científicos tradicionais nem se prestam à lógica das revistas indexadas. Cabem, sim, em fábricas, linhas de montagem, salas limpas e centros de teste.
É exatamente aqui que a experiência chinesa oferece uma reflexão incômoda — e necessária — para o Brasil. Nossa educação universitária, especialmente na pós-graduação, ainda opera sob uma lógica excessivamente autocentrada, em que a produção de artigos se sobrepõe à solução de problemas nacionais concretos.
O país forma bons pesquisadores, mas frequentemente os distancia das urgências industriais, tecnológicas e produtivas. Um modelo que permita doutorados orientados por entregas reais — equipamentos, softwares, processos, patentes — poderia aproximar universidades brasileiras de setores estratégicos como energia, agroindústria avançada, saúde, defesa cibernética e transição verde, hoje carentes de inovação aplicada em escala.
O caso do Instituto de Tecnologia de Harbin tornou-se emblemático. Um de seus doutorandos, Wei Lianfeng, obteve o título não por uma tese convencional, mas pelo desenvolvimento de uma tecnologia de soldagem a laser a vácuo, aplicada diretamente à indústria. Adiciono aqui um irônico pensamento lateral: Tudo que usa solda já tem no Brasil uma legião de interessados, ao menos122.000 indivíduos que trazem no corpo uma resistente tornozeleira eletrônica!)
O HIT mantém hoje programas conjuntos com mais de sessenta empresas e laboratórios nacionais, envolvendo cerca de três mil candidatos a doutorado em projetos de impacto imediato.
As áreas priorizadas revelam a ambição do projeto. São dezoito campos considerados críticos, entre eles semicondutores, tecnologia da informação, computação quântica e manufatura avançada.
No setor quântico, por exemplo, a China já estruturou uma cadeia industrial completa, do design de chips ao software de medição, sustentada por investimentos públicos estimados em cerca de quinze bilhões de dólares. O laboratório deixa de ser fim e passa a ser plataforma de lançamento industrial.
Para o Brasil, essa arquitetura sugere mais do que inspiração: aponta uma rota possível. O país dispõe de universidades públicas robustas, institutos federais capilarizados e agências de fomento consolidadas.
Ainda assim, carece de um sistema que alinhe, de forma contínua, pesquisa avançada, política industrial e demanda produtiva. Adaptar o modelo chinês não significaria abdicar da autonomia acadêmica, mas redefinir critérios de excelência, incorporando impacto tecnológico e relevância social como métricas centrais de avaliação da pós-graduação.
O dado mais eloquente, porém, está no volume. Em 2025, as universidades chinesas devem admitir 152 mil novos doutorandos. Não se trata apenas de formar pesquisadores, mas de alimentar um ecossistema contínuo de inovação aplicada.
Projeções indicam que a China já ultrapassa os Estados Unidos na formação anual de PhDs em áreas STEM, consolidando uma vantagem estrutural de longo prazo. Ao substituir a dissertação pela solução, a China redefine o sentido do doutorado. Não abandona o conhecimento, mas o subordina a um objetivo maior: transformar saber em poder tecnológico.
Para o Brasil, a lição é clara e desconfortável: ou a universidade se conecta de forma estratégica aos desafios nacionais do século XXI, ou seguirá formando excelência que floresce, quase sempre, longe demais de casa. Será isso o que o Brasil precisa?
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

